quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

UM DIA DEPOIS, COSAC & NAIFY.


O ano era 1978. Não muitas editoras concorriam na produção de acervo bibliográfico das humanidades. Era tempo em que a Civilização Brasileira editava mais de um livro por dia, dizem a lenda e a contabilidade de historiadores do ramo. Ênio Silveira fazia as vezes de aventureiro e capitão concorrendo com o nome de José Olympio. Em São Paulo era a Editora Pedagógica Universitária quem contratava garotos despreparados para traduzir Marcel Mauss e todo tipo de material didático. Em em Minas Gerais, Itatiaia e seus viajantes do Brasil colonial compunham a cena com uma outra série de publicações de tradução suspeita. Não muito longe dali, nem no tempo, nem no espaço, encontrávamos a Zahar Editores, a mesma que anos depois se converteu em Jorge Zahar, editora cujo espólio foi parar, parcialmente nas mãos da LTC – dado importante, porque se trata da transmissão, não de um legado, mas de uma maldição. É neste período que a Zahar cumpre um papel que até hoje é colocado em revista, a de criar uma coleção de antropologia social cuja única rival no período fora uma outra, dirigida por Roberto DaMatta no seio da editora Vozes, de Petrópolis. Esta coleção editou, além da tese de doutorado do próprio DaMatta sobre os apinajés, clássicos como As estruturas elementares do parentesco de Claude Lévi-Strauss, Os Ritos de Passagem de Arnold Van Gennep e O processo ritual de Victor Turner indicando uma lógica de publicação algo mais generosa do que o exercício narcisista. Os livros dispunham de um tema em comum, a saber, a teoria antropológica moderna a respeito da ação ritual.
            Descendo a serra encontramos no catálogo da Zahar uma outra coleção sob direção de Gilberto Velho, recentemente falecido. No seu primeiro catálogo trazia uma série de livros que seguramente foram muito bem-vindos, como História social da criança e da família de Philippe Ariès, Uma teoria da ação coletiva de Howard Becker – amigo de Gilberto Velho e professor visitante no Museu Nacional -, Estigma, de Erving Goffman e Bruxaria, oráculos e magia entre os azande, de Edward Evans-Pritchard, este recentemente re-editado na mesma Zahar não sendo cedido para a LTC. Não devem ter faltado congratulações da comunidade de antropólogos dado o salto na oferta de bibliografia. Na época os cursos de antropologia ofereciam apostilas por falta de material nas bibliotecas e, mais, falta de material vertido para a língua portuguesa. Se a antropologia é hoje uma disciplina pobre, nesse período se tratava de um exercício de sobrevivência abaixo da linha de pobreza. Mas que se desconfie da esmola se generosa demais, ou se dadas repetidas vezes pela mesma fonte. Isto se chama endividamento.
            Afora a publicação de trabalhos de final de cursos ministrados por Gilberto Velho nessa mesma coleção ( nos livros Desvio e divergência e Arte e sociedade), não faltou citar um livro em especial? Livro que pautou parte dos debates da antropologia no país, especialmente nos anos 1990, quando 7 em cada 4 trabalhos de antropologia faziam menção ao conceito de descrição densa? Está ausente da lista que eu fiz o livro A interpretação das culturas, de Clifford Geertz. E sua mera omissão dessa listagem seria uma injustiça com a história da coleção supracitada exatamente no período em que a Zahar vivia seus dias heróicos de desbravamento – pacificação? E que assim sejam, os livros, as publicações e suas listagens. Afinal, sem este elenco devidamente alinhado é difícil escrever a história, senão com justiça, ao menos com justeza.
            Como todos os livros do ramo, em especial os que se prestam ao exercício da coletânea, A interpretação das culturas tem um índice. É nele que contabilizamos 9 capítulos com os quais a Zahar beneficiou a juventude da antropologia papagali. Afinal, a cavalo dado não se olham os dentes. Mas esqueçamos isso. Não se trata aqui de cavalo dado, mas comprado – ainda que comprado, como bem sabemos, diretamente do padrinho. Fossem contados os dentes o candidato a leitor de Clifford Geertz saberia estarem faltando nada mais, nada menos do que 6 capítulos do livro editado pela a editora Basic Books de Nova York, em 1973. Cavalo desdentado é cavalo doente. Eis a lista dos capítulos desaparecidos e, então reencontrados por essa pequena Comissão da Verdade. Capítulos sem os quais se fez um longo debate sobre a obra de Clifford Geertz no Brasil, não me pergunte como:

Capítulo 06: Ritual and social change: a javanese example.
Capítulo 07: “Internal Conversion” in Contemporary Bali.
Capítulo 09: After the Revolution: the fate of nationalism in the New States
Capítulo 10: The integrative Revolution: primordial sentiments and civil politics in the New States.
Capítulo 12: Politics past, politics present: some notes on the uses of anthropology in understanding the New States.
Capítulo 13: The Cerebral Savage: on the work of Claude Lévi-Strauss.

            Com uma lista dessas, é ocioso discutir a quantidade generosa de trapalhadas da tradução, de Fanny Wrobel. E fora ela mesma quem acaba furando o engodo, produzindo um evento ímpar na história da tradução nacional. Isso porque a única forma de descobrir o exercício do estelionato sem cotejar a edição da Zahar com o original é lendo uma passagem simplesmente engraçada, de tão vergonhosa, na página 08 da mesma edição.

            Nos ensaios abaixo, há dois lugares em que essas considerações me parecem relevantes e nos quais fiz, portanto, algumas modificações no que havia escrito originalmente. O primeiro é nos dois ensaios da Parte II, sobre cultura e evolução biológica, onde a datação dos fósseis nos ensaios originais foram definitivamente superadas [sic.]. De uma forma geral, as datas foram situadas mais longe no tempo e, como essa mudança deixa meus argumentos centrais essencialmente intactos, não vejo qualquer prejuízo em introduzir novas estimativas. Não há qualquer sentido em continuar a dizer ao mundo que os arqueólogos estão encontrando fósseis de quatro a cinco milhões de anos. O segundo tem ligação tem ligação com o Capítulo 10, na Parte I*, “A Revolução Integradora”, onde o fluxo – se assim pode ser chamado – da história do novo Estado, uma vez que o artigo foi escrito no início dos anos 1960, torna a leitura de algumas passagens realmente esquisita.

*  Esse capítulo não consta desta coletânea. (N. da. T.)” (Nota da Tradutora).

            Ah!, a infinita ironia! Justamente na passagem em que Geertz informa ao leitor dados que alteram em algum grau o conteúdo e possivelmente o argumento de seus ensaios a postura injustificável da editora é revelada. Incorporaram ao texto publicado a citação de um capítulo que não fora, por fim, publicado. O leitor, contudo, não é informado sobre quantos capítulos, quais capítulos e mesmo qual a razão de uma edição tão radical e, como é evidente, porca. E que digam que isso foi em 1978, que já faz tempo, e então eu desafio o acusador a ir em qualquer Livraria Cultura de forma a investigar qual é o índice do livro então publicado pela LTC, sempre disponível e espelhado nas prateleiras.

(link para a décima terceira reimpressão da primeira edição, de 2008 :
http://identidadesculturas.files.wordpress.com/2011/05/geertz_clifford-_a_interpretac3a7c3a3o_das_culturas.pdf).

            Há quem diga que falar da Zahar deste período, em especial com relação a uma coleção de penetração tão pequena e em tempos de aventura editorial é equivalente a chutar cachorro morto. E que dizer que a LTC publicara o mesmo texto por oportunismo seria redundante. Pessoalmente eu considero a história desta edição o mais flagrante estelionato das publicações em antropologia do país. Especialmente porque alimentava, e ainda alimenta um grupo muito restrito de pessoas cuja profissão compõe um círculo pequeno de relações fortemente hierarquizadas, grupo ao qual pertenço. Ou pertencia, vai saber. Questionar abertamente os rumos deste tipo de publicação implica em geral em desemprego. Mas, fora o aparte, por que reviver uma história como esta? Por que agora?
            Ainda há pouco li Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX, de Jonathan Crary. Editado pela Contraponto, trata-se de um belo trabalho em que o ato de observar é posto em sua história a partir das formas objetivas de apreciação e instrumentalização da própria observação, seja ela científica, seja a partir de orientação. Obviamente que os aparelhos de correção e ampliação dos poderes de visão, assim como os estudos de psicologia da percepção fazem parte do ambiente conceitual do livro e, com eles, a visualização de esquemas, pranchas e objetos apresentados por uma extensa iconografia contabilizando 31 imagens apresentadas no corpo do texto. Não são meramente ilustrações, vale dizer, mas parte do argumento. A editora Contraponto, além de manter as ilustrações no livro, manteve-as no seu devido lugar preservando a emergência da imagem como parte do texto – alterar isso seria o mesmo que em um romance de W. G. Sebald, as imagens viessem num apêndice no fim do texto ou fossem simplesmente eliminados. Lido o livro de Crary pensei com meus botões que, ainda que seus argumentos fossem de um foucaultianismo entusiasmado que me incomoda, seu trabalho como historiador é algo que eu, nem mesmo nascendo de novo, faria. Decidi por bem ler um segundo livro dele que, felizmente fora publicado pela Cosac & Naify também neste ano de 2013. Felizmente?
            Editoras são empresas que vendem coisas. Nem sempre essa coisa funciona bem. Mas a queixa com relação ao produto frequentemente cai em uma fórmula esquizofrênica de comunicação. Quando algo vai mal com um leitor, com um crítico, a defesa se dá em nome da cultura e das letras – tudo feita em nome de um benefício público em que a editora é, obviamente, sua madrinha. Quando algo vai mal no seio de suas atividades internas, ela reconhece seu estatuto de empresa e as decisões são exclusivamente racionais e justificáveis porque são de ordem contábil. Como leitor, gosto de preservar a integridade do papel que me cabe, exatamente porque eu não tenho um setor que me defenda ao discriminar a pessoa física da pessoa jurídica. Leio e compro interessadamente. Leio e compro e, ao comprar sei que estou me aliando a uma empresa. Ao ajuda-la, ofereço algum suprimento de subsídios para que continue a fazer o que faz. Um exemplo. Não compro mais livros da Zahar, empresa que nunca fez retratação pública do caso em questão, e assim não quero que venha a se reproduzir como empresa. Caso precise de seus livros, o farei via sebos, bibliotecas, originais ou cópias irregulares – porque não quero correr o risco de sofrer estelionato de alguém que comprovadamente já o fez sem jamais tê-lo reconhecido. Não compro livros da Marin Claret, Landmark e, mesmo a Boitempo já deveria ter entrado na minha lista. Pela mesma razão. Hoje a Cosac & Naify entra nesta lista.
            Recebi o livro de Crary publicado pela mais moderna e arrojada editora nacional. A mesma editora que nos brindou com livros cujo desenho arrojado nos fez esquecer que estávamos lendo um livro. Um Bartebly que mofa com absoluta rapidez, um A fera na selva  de manejo ruim, um Zazie no metrô  com um papel frágil e uma encadernação de Guerra e Paz desenvolvido por quem seguramente não manuseia livros. Mas tudo isto são decisões editoriais que me fazem não comprar este ou aquele item especificamente. O problema foi que, ao ler o livro de Crary, ao menos as primeiras 100 páginas a situação é mais grave porque a editora me traiu como leitor de seus livros. Mas demorou para que eu me desse conta. No percurso da leitura,  vi-me tecendo analogias com um outro livro de um outro escritor, Martin Jay e seu Songs of Experience. O argumento de Suspensões da percepção, editado a preço alto (69 reais e 90 centavos, com papel inferior ao de outras publicações da mesma coleção) discute temas que tocam passagens da história moderna do conceito de experiência, tema de Martin Jay que, vale notar, não se utiliza de iconografia em seu trabalho. Mas em momento algum fiz conexões com o outro livro de Crary, e não tinha me dado conta da razão. A partir de uma conversa com Rafael Saldanha que fui informado que o livro publicado pela Cosac & Naify não continha a iconografia, que marca tanto o argumento de Crary quanto desenhos orientam a prosa de Valêncio Xavier. Repito. Fora Rafael Saldanha quem me informou da ausência da enorme lista de imagens que compõem o livro original quando quem deveria ter feito isso era a edição brasileira – não há sequer uma nota desastrada como a de Fanny Wrobel em A interpretação das culturas, um momento pândego de honestidade distraída. Nunca consegui traçar a analogia entre os livros do mesmo autor porque não são, obviamente, traduções de mesmo grau. Mas até qual ponto isso é, de fato, decisivo? Vejamos a partir de duas abordagens. Primeiro, quantitativa. Depois, qualitativa.
            Parte do expediente ao qual recorro daqui por diante segue necessariamente algo que Milton Ohata, editor da coleção Cinema, teatro, modernidade sugeriu. Segue abaixo a explicação dada pela editora, aquela que nos foi passada pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor, endereçada a Rafael Saldanha:

Olá, Rafael.

Foi uma decisão editorial: a maior parte das imagens na edição americana eram em preto e branco e baixa resolução, enquanto Crary entra muito nas questões das cores. Acrescentar imagens ao livro encareceria-o ainda mais (nos custos de produção, que inevitavelmente se refletiria no valor final do preço de capa que chegaria ao consumidor). Por fim, em tempos de internet, considerou-se que o leitor poderia procurar as imagens referenciadas no texto.

            Fomos à internet. Fomos aos russos e seus sites que servem ao leitor como mascates providenciais, os mesmos que as editoras grandiosas e cheias de premiações detestam – quase na mesma medida em que desprezam seus leitores. Num destes sites consegui o empréstimo digital de Suspensions of Perception, livro publicado pela MIT (Massachussets Institute of Technology), edição da qual a Cosac, pela pena de sua tradutora Tina Montenegro, verteu a pesquisa de Crary para o português. Com a edição em mãos fiz a contagem de quantas imagens o leitor brasileiro foi privado. É possível que eu tenha errado, mas não creio que por mais do que por 5. No final das contas foram 110 imagens subtraídas sem qualquer aviso ao leitor que, de outra forma jamais saberia que elas já estiveram ali. E por que isso? Porque a remissão às imagens não é episódica ou ilustrativa. Ela é argumentativa. Assim, se a imagem não está lá o leitor não sabe sequer que ela compõe o acervo mobilizado pelo livro. Explico.
            Há momentos em que Crary é bastante didático indicando a imagem por via de citação explícita. Tomo aqui a edição feita pela Contraponto. Frases como tomemos, por exemplo, o seu Cesto com morangos ao discutir a incorporação de dispositivos óticos na pintura de J.-B. Chardin servem de índice. Lá está a pintura Cesto com morangos ocupando espaço no meio do parágrafo que, na mudança da página 66-67 interrompe a leitura forçando o leitor a passar os olhos pelo quadro enquanto lê, fazendo conexão imediata entre legenda e figura. Mas essa correlação não se dá sempre desta forma. No trecho do livro Técnicas do Observador em que Crary discute o impacto da fisiologia na discussão acerca da confiabilidade do aparelho ótico humano – passando por obras como as de Schopenhauer e Goethe -, o desenho de Nicholas-Henri Jacob no Traité complet de l’anatomie de l’homme, de Marc-Jean Bourgery (1839) não é citado no texto. O autor nos apresenta o tipo de exercício feito na observação da observação, no caso, como investigar as córneas  desde um aporte da fisiologia (página 83). Um rosto parcialmente desenhado tem as pálpebras de seu olho direito aberto por pinças e sua cabeça segura por, no total, cinco mãos sugerindo todo um aparelho e uma organização de técnicas e pessoas dando clareza ao argumento de que a investigação do universo fisiológico implica numa organização política. Não há remissão à ilustração em particular, mas o tema é o logro da fisiologia em meio à emergência das questões que Michel Foucault sintetizara no conceito de biopolítica. A articulação entre texto e imagem não é indexada. Ela é conceitual. Todas estas informações a edição da Contraponto nos oferece. Resta saber então quais informações a edição da Cosac & Naify subtrai do leitor que comprou gato, mas levou uma lebre para casa.
            Antes de mais nada, o leitor não sabe por onde passeou o pesquisador ao fuçar arquivos os mais variados. Sem imagens não há remissão aos arquivos a partir do qual os créditos das imagens são registrados. Mas obviamente que só isso não basta. É preciso entrar no livro e descobrir aquilo que o texto oferece de bandeja relacionando legenda e argumento, e quais imagens estão dispostas por correlação de caráter conceitual, isto é, sem menção explícita.
            A primeira coisa a ser dita diz respeito à resposta da SAC da Cosac & Naify que justifica sua estratégia de limar as imagens da edição final. Diz a mensagem que não ser questão de encarar a ausência das imagens como perda maior,  erecorrer ao expediente de excluir todas as imagens é justificável porque muitas das discussões de Crary versam sobre cores e a impressão seria em preto e branco, exatamente como se deu na edição da MIT americana. Antes de mais nada, o tema do livro é o problema da atenção como um conceito não somente da psicologia mas como de uma dada ordem política da sociedade disciplinar no capitalismo de fins do século XIX. Até a página 105 não há uma discussão sequer sobre o cores. Na verdade, o problema das cores está mais fortemente presente, isso sim, em Técnicas do observador, em especial no capítulo 3 (editado pela Contraponto). A outra questão é que uma parte ínfima das imagens disponíveis no livro não é originalmente impressa em preto e branco, dado que são poucas as pinturas que Crary discute no percurso do seu argumento. Nas contas, quase 70% das ilustrações são originalmente compostas em branco e preto. Não são quadros, em sua maioria, mas diagramas, ilustrações de livros e publicidade de época. Dito de outra forma, a decisão não foi tomada, obviamente, em favor do leitor. E isto, além de colocar em questão a justificativa a partir de uma doutrina das cores tomada por emenda, chama atenção para outro aspecto. A fortuna iconográfica de Suspensões da percepção não faz parte do espólio artístico mais evidente da história da arte, o que faz com que sua disponibilidade na internet seja fortemente reduzida, ao contrário do que entende o recado recebido por meu amigo Rafael Saldanha. Aliás, este é um recurso interessante, o expediente de transferir o esforço de recompor o livro ao leitor.
            Entendendo que as imagens são elementos componentes do argumento do livro, e não meramente ilustrações; e que muitas das imagens não são citadas, mas são implicadas no argumento da passagem onde estão localizadas; eu me pergunto se o que temos em mãos após desembolsar R$69,90 é propriamente uma tradução, e não uma adaptação de um trabalho original. Adaptação produzida com finalidade meramente contábil, e não didática como o fez a Ediouro com suas versões infanto-juvenis, sem pé nem cabeça, de livros como O Corcunda de Notre Dame. Adaptação que entrega algo incompleto, como o que fora feito com a primeira edição de Clifford Geertz no Brasil que, mais adiante seguiu sendo mal tratado ininterruptamente. E em meio a este ambiente hostil, adapt or die, caro leitor.
            Não sendo propriamente uma tradução, ou ao menos uma tradução incompleta que não informa o leitor daquilo que falta à edição; e uma informação veiculada via SAC sugerindo que o leitor se vire para encontrar as imagens eliminadas da edição, cabe perguntar: 1) tendo a Cosac transferindo o ônus da oferta e edição do produto de algo que é nitidamente um produto adulterado para o leitor; 2) se cabe ao leitor terminar a edição por via da internet; será que não é possível adaptar esta informação de forma a entender que o leitor deve se resolver inteiramente via internet? Inclusive para a aquisição do livro, digamos, por empréstimo digital uma vez que é um produto adulterado que está em questão, em vias de ser completado pelo leitor? Esta é a mensagem que a empresa tem a oferecer? Complete a edição você mesmo? Ligue os pontos?
            Não é nenhum segredo de Estado que a Cosac & Naify tem passado por alguns percalços financeiros e editoriais. Que muita coisa mudou e que o dinheiro em caixa já não é mais o mesmo. Que aliava bom gosto e design inovador com traduções bem pagas feita por gente do ramo produzindo livros de preço igualmente diferenciado. Enfim, um percurso que buscava imprimir um outro padrão de excelência que seguramente carregava consigo determinado ônus. Foi assim que se constituiu uma aliança interessante entre leitores e editora. A coisa cresceu a ponto de, há anos vermos no estande da mesma editora, na Feira do Livro que se dá na USP anualmente a maior aglomeração de compradores do evento. O nome disso é credibilidade. A decisão de eliminar parte importante do material gráfico em uma edição que vise oferecer a tradução de um livro não é grave. Grave é ter sido feita à revelia do leitor que, por essas e outras, passa a desconfiar do produto oferecido, da lisura da editora que já vinha pecando na tradução das notas de rodapé de obras já traduzidas para o português, feitas por via de citação das edições consagradas criando um sistema de indexação de obras muito longe de ser inquestionável. Num momento de crise o fundamental é não esquecer o que você faz e com quem você faz. E não seria por falta de alternativas. Não seria caro, e tampouco espetacular, por exemplo, um blog com as imagens devidamente indexadas com remissão numerada no livro; ou a mera informação sobre a decisão editorial tomada, assim como suas razões. Enfim, com a honestidade, o que já não parece ser compatível com a imagem de editoras que nutrem de maior reputação e dinheiro. E assim o catálogo começa a congelar por falta de interesse. E aí... e a editora Brasiliense que hoje agoniza, sozinha, em um estande na Feira de Livros da USP? Digo, no último dos estandes, nos fundos do derradeiro pavilhão, esperando alguém comprar um de seus míseros volumes da coleção Primeiros Passos, notadamente aquilo que resta. Ao deixar o leitor de lado na composição de livros, o leitor pode decidir deixar de lado a editora na composição da leitura.
Adapt or die.

*          *          *

            Em 2003 a revista Carta Capital publicou uma resenha do livro Testemunha Ocular, de Peter Burke. Na resenha, o tema fundamental fora a falta de cuidado pela editora encarregada da tradução, a Editora Universidade do Sagrado Coração (EdUSC). As ilustrações, indispensáveis para a compreensão do argumento do livro dada a abusiva remissão a um manancial de  imagens enorme, estavam colocadas fora de lugar e, muitas das vezes, eliminadas sem justificativa. A repercussão foi tão violenta que a mesma editora fez um recall dos livros, assumiu o prejuízo e o relançou no ano seguinte, devidamente ilustrado, em p&b, no mesmo papel reciclado com o qual começara a trabalhar no ano anterior. Eu ainda compro livros da EdUSC.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

La diabolie: o negativo da história social da verdade


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.
_____________________. L’Age Libertin. Minuit. Paris. 1987.
SHAPIN, Steven. A social history of truth : civility and science in seventeenth-
century England. University of Chicago Press. Chicago/London. 1994.


4-

            « Le libertin honnête doit savoir préserver l’autonomie de son for intérieur tout livrant son MOI social aux effets du dialogisme, et découvrir l’autre dans ses retranchements. » (Claude Reichler, L’Age Libertin)

            Posso jurar dizer a verdade. Bradar com todas as minhas forças, inclusive aquelas que em nada tem a ver com os músculos que me permitem falar. O juramento não altera o estatuto do problema de que dizer a verdade é uma aporia e que jurar não muda seu estatuto salvo como expressamente aceito. Jurar pertence ao campo performático em que o que é dito não descreve coisa alguma e que, portanto, não está sujeito a verificação e, por isso, tampouco ao falseamento. Posso não dar crédito a quem jura e isso em nada tem a ver com o que se disse – “eu juro” – mas sim com outra gama de relações. E isto não permite que eu possa voltar à primeira expressão com maior ou menor felicidade.  Eu disse a verdade” também não acrescenta a qualquer descrição informação alguma quando digo; “a língua pirahã opera sem quantificadores”, ou “não existe avaliação estatística válida que opere somente com duas variáveis”, ou mesmo “o livro está sobre a mesa”.
            Assim sendo, a ênfase e o juramento só atestam minha convicção e minha disposição em atestar comprometimento com o que eu disse sem que tenha aprimorado qualquer elemento rumo a uma maior especificação quanto ao evento ou objeto descrito. De uma certa forma a sentença original segue no escuro ou, na melhor das hipóteses, sob a luz disponível. Há quem diga que responder a uma sucessão de proposições válidas expostas de forma, e na ordem adequadas poderia oferecer algum grau de correspondência algo satisfatória. Ao mesmo tempo há aqueles para quem o juramento terá bastado. Ainda assim, há um componente delicado que implicará numa economia política do discurso pois, se por um lado aceitar o juramento pode soar ingênuo, por outro lado aceitar a mera existência de algo como “pirahãs”, “estatística e variáveis” e “um livro sobre a mesa”- o livro, ainda que conhecido, pode ser uma sorte de gavagai – atesta igualmente confiança. As sentenças que correm risco de serem aceitas como verdadeiras são aquelas em que é possível depositar confiança, dar crédito no sentido rigoroso do termo, servirão para uma troca futura, seja para utilizar numa segunda demonstração, seja para cobrar a palavra ou a ausência da mesma, de quem quer que tenha jurado. E é neste nível de elaboração em que estamos. Importa tanto que uma sentença seja verdadeira quanto ela possa circular enquanto tal.
            Este, quero crer, é o pano de fundo para uma reflexão que se permite ser uma história social da verdade em que a justiça a uma determinada sentença é feita na medida em que uma determinada ordem social se compromete com a boa vida futura.

            Social order would be impossible unless on were morally enjoined “to stand one’s world in all promises and bargains”. The foundations of justice was faithfulness, “which consists in being constantly firm to your word, and conscious performance of all compacts and bargains”. To be sure, the obligations to keep a promise was not absolute; for example, if keeping it was likely to injure an individual or society, one might have no legitimate commitment. And persons “overawed by fear” or otherwise unfree when they made a promise were not deemed to have entered into a moral commitment. Yet, like other Greek or Roman social theorists, Cicero understood that social order utterly depended upon trust being rightly reposed in morally bound truth-tellers and promise-keepers. Liars and dissimulators threatened the moral fabric of society: they were “knaves” and their actions were “attended with dishonor.”(Shapin, 1994:09)
           
            Lembrando que a dissimulação e a mentira só são uma vez que identificados como tal – o que demanda haver algum método – é preciso retornar então que enquanto forem tratadas como verdade, circularão como tal. E é este o território da diabolia de Claude Reichler no qual o contrato, o acordo é reduzido à mera sucessão de palavras da parte de alguém que, como num juramento em falso que faz sem comprometimento interno, subjetivo, com o que foi dito; não juramento falso, mas juramento EM falso. Falar a verdade, ser reconhecido como tal, caminhar como um cidadão. Ao sugerir que uma sociedade é uma certa forma de distribuição dos saberes, do conhecimento implícito do mundo, e que a sociedade opera como uma certa técnica da razão (me valendo da leitura de Giannotti a respeito de Durkheim), falar a verdade implica num modo de participação e pertencimento em uma sociedade específica. Não como determinar imediatamente se estamos falando de uma determinada sociedade é nacional ou, de outra forma, uma associação de pesquisadores do cavalo-marinho. A verdade, a despeito da arquitetura soberba d’A Metafísica de Aristóteles pode ser somente um vocábulo, um atestado e, por isso, uma moeda de troca.
           
            Georg Simmel recognized that truth-telling was “of the most far-reaching significance for relations among men”, and that social systems varied enormously in their tolerance for lying and distrust. Very simple societies were said to be relatively tolerant of untruthfulness, whereas deceit and distrust worked lethal effects on highly differentiated and interdependent modern societies. Modern life, Simmel said, “is a ‘credit economy’ in a much broader sense than a strictly economic sense.” (Shapin, op.cit.:14-15)

            Que não se perca o desenho de vista. Compreender a verdade como moeda de troca e, por isso, implicando-a  numa economia política do discurso – como descrito por Bruno Latour em Science en Action, ou Laboratory Life (com Steve Woolgar), ou em Histories of Scientific Observation, editado por Lorraine Daston e Elisabeth Lunbeck – é imperativo tomar nota quanto ao sistema de distribuição, isto é, compreender a rede que o movimenta assim como os dispositivos concernentes ao modo de pôr e tirar de circulação o que é atestadamente verdadeiro ou, respectivamente, notadamente falso. Isto leva-nos ao problema de não somente quanto ao saber-saber, mas também como obstruir e garantir a obstrução de indesejáveis – o que opera nas variações da censura e da etiqueta. Opera também, e isto não é menos importante, em uma determinada logística. Esta mesma logística implica não somente na circulação de discursos, mas de pessoas, coisas e, quando possível, animais, todos sujeitos à edição e, quando mais grave, censura e até mesmo excomunhão, como a de Jacque Lacan diante da Sociedade Psicanalítica Francesa. Isto porque, assim como variam a censura e a etiqueta, variam os relatos que serão, de alguma forma, postos em graus de confiabilidade – o que seria de “ trust” sem  doubt”?  e de “doubt” sem a crítica, isto é, um método de certificação a posteriori baseada, obviamente, em um sistema a priori?
           
            Reports may vary because individuals are differently situated, in space and time (e.g., you were not present when the phenomena were on display), because observational conditions vary (e.g. cloud cover obscured your sight of the comet), or because others may be observing from different forms depending upon the face which one looks).  One observer or the other may lack a requisite aid to perception (a telescope or one sufficient quality), or may, in extreme cases, be suffering a delusionary or hallucinatory condition.”(Shapin, op.cit.:31-32)

            E a condição alucinante é o primeiro passo para chegarmos a versões algo mais suaves do problema, para as quais convém chamarmos de interpretações.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Da experiência interior como política da escrita: parte dois


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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro. (1995)
_______________________. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras. São Paulo. 1988.


II-

            O percurso da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção, ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
            Estamos às voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes, uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière quanto eu, a Charles Pénnekère:

            Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)

            E Rancière encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência repentina.
            A narrativa implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do materialismo compondo uma constelação[1] dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história interminável porque demasiado breve.
            A inversão da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste caso a dor é na carne.

            Que a oficina possa ser pior do que a prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das prisões.”(1988:62)

            Que seja o roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?

            Será simplesmente a natureza doentia do marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)

            Resta então adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.

            No mundo às avessas que toma pelo seu reino, o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem mais lugar. (op.cit.:69)

            E então irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.


[1] Que conta com o ideologue Constantin Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A fé à pé

Caso perguntem se creio
digo que pago à vista
a forma ligeira
de não ser digno de respeito.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar - Segunda Parte

Porca e Parafuso e a pragmática posta em jogo.
2-

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ELIADE,  Mircea. O sagrado e o profano : a essência das religiões. Martins Fontes. São Paulo.  1992.
GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.




O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

            Não faltaria com a verdade aquele que dissesse que este esquema evolucionista cheira a Auguste Comte. Considerando que a ojeriza produzida pela dialética, ou pela teologia negativa impede que saibamos sequer como ler a obra do politécnico por excelência sem que antes o acusemos de responsável de todos os males. Ao mesmo tempo é esta mesma postura a que impede que se enxergue em eventos posteriores uma genealogia, uma relação de aliança com outros empreendimentos algo considerados como inovadores, frescos ou ao menos, criativos. Michel Serres, Claude Lévi-Strauss, André Leroi-Gourham, Bruno Latour e Jean Pouillon são somente alguns daqueles que anotam com admiração suas passagens preferidas do namorado de Marianne. O esquema  “magia-religião-ciência” presente em Du mode d’exitstence des objets techniques não é exceção, ainda seja um exercício distinto de periodização por comparação à linearidade do esquema comteano, que confunde fases com cronologia. Aqui a fase mágica não é, como se poderia esperar, a filogênese inaugurada mas um modo de individuação imanente à distinção entre figura e fundo. A fase é, assim, um momento de um sistema recíproco de fases (1969:159) independente de quaisquer definições de gênero e espécie. Uma fase é resultado de relações de força que compreendem, antes que uma dialética da superação ou uma evolução progressiva, a emergência de casos de estrutura de duas fases cujo centro é neutro cumprindo uma função de grau-zero.
            Fase e defasagem entram em questão como a mobilidade ou atualização dos modos compreendidas numa noção de evolução técnica que Simondon procura desenvolver em que procede uma concepção vitalista algo bergsoniana a partir da qual as técnicas só podem ser definidas com relação à vida que lhe anima – assim como a linguagem em certa filosofia, como a de Wittgenstein, uma ferramenta utilizada enquanto a comunicação não acontece.  O desdobramento prático-teórico em técnica e religião parte deste eixo neutro, assim como as questões para as quais podemos remeter à estética são ao mesmo tempo ruptura e busca da unidade futura do modo de ser mágico, isto é, de um modo de ser em que a convergência se dê como ponto de partida.

            “(...) la méditation entre l’homme et le monde s’objective en objet technique comme elle se subjective en médiateur religieux ; mais ces subjectivations opposées et complementaires sont précédées par une première étape de la relation au monde, l’étape magique dans laquelle la médiation n’est encore ni subjectivée ni objectivée, ni fragmentée ni universalisée, et n’est que la plus simple et la plus fondamentale des structurations du milieu d’un vivant : la naissance d’un réseau de points privilégiés d’échange entre l’être et le milieu. » (1969 :164)

3-

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Qual o tamanho do contraste deste elaboração inicial com aquela da precipitação do sagrado nas hierofanias de Mircea Eliade, um e outro orientados pela orientação e pela premissa fundamental do ser? Talvez a mesma distinção entre as noções de retroalimentação da cibernética e a de evento de ruptura no que Revelação e Revolução dividem algo mais do que uma estrutura em comum. Esta tensão merece ser aprofundada com maior vagar, até mesmo o futuro dura muito tempo e é necessário deixar aquilo que fermenta envelhecer a fim de distinguir vinagre e vinho, saliva de cerveja. Até porque certas distinções tomadas com o tempo oferecem diferenças, não de grau mas de natureza, o mesmo tipo de distingue espaço de milieu, ou ambiente como circunvizinhança a partir do qual a reticulação se oferece como um problema para a orientação enquanto tal. Mas porque Eliade no contraste? Porque Eliade disserta sobre a orientação do homem religioso, exatamente o mesmo que se recusa a orientar-se no mundo enquanto tal – e esta não é, vale dizer, uma atitude revoltada mas um tanto quanto resignada, ou mesmo amorosa.
            A tensão pode e deve ser desdobrada de uma questão importante, tão importante quanto a raridade de eventos em que é pronunciada: qual é o tamanho do mundo. De todas as qualidade fundamentais da emergência da ecologia como fronteira conceitual, aquela que oferece a herança mais perigosa é a confusão astronômica entre mundo (welt) e planeta, confusão que obrigara o relativismo – no caso de ser este agente coerente que nem mesmo uma pessoa biografada pode ser – a atingir fórmulas como “vários mundos, um só planeta” . O mundo não é o planeta, mas não por exclusão. A relação é possível, mas não é exclusiva. Um mundo não precisa ter circunscrição atmosférica, não precisa ter massa, e tampouco estar imerso numa navegação espacial em que a quantificação tenha produzido uma politécnica inédita do sonho hermético no qual aquilo que está em cima é como o que está em baixo o que e uma certa tradução enviesada pode dizer, tudo se mede lá em cima como é possível medir aqui em baixo porque o espaço é homogêneo.
           
            Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo, 3:5). Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre os espaços sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.” (1992:21)
           

            A experiência do sagrado precipitado em fontes hierofânicas é a precipitação da diferença qualitativa no seio do espaço homogêneo – assim como faz do homem regular, mundano, um homem de verdade fazendo de homem religioso uma forma peculiar de pleonasmo. A experiência do sagrado é a fundação do espaço em sua heterogeneidade, isto é, na composição do sentido que orienta a ação humana, orientação que o homem não-religioso recusa fazendo da tipificação uma forma de exclusão dogmática, ou daquele que não reconhece o sagrado nos termos postos. Assim, há o homem dedicado aos assuntos profanos que vive imerso no espaço indiferenciado da homogeneidade infinita purificado da religião e aquele em que vive no mundo real. Mas, é claro, esta é uma tipologia.

            É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o religioso.” (1992:23)

            Isto porque o mundo começa religioso e a profanação é um esforço produtivo de divórcio e, necessariamente de decaimento quando não de degenerescência. Isto porque a experiência de mundo profana (algo próximo de weltverstehen) é fragmentária uma vez que se dá em porções, incapaz de incorporar a totalidade cujo fundamento é o sentido, seja como causa, seja como fundamento, seja como finalidade. Dito de outra forma, não há Mundo que só pode ser Mundo pelo estabelecimento de uma fronteira primordial, a que cinde a homogeneidade naquilo que é a gênese da heterogeneidade da ordem espacial: o sagrado e o profano. A analogia parcial entre as habitações humanas e o espaço ritual, por exemplo, confere uma distinção importante ao entender que um templo é a forma forte de uma casa que, por sua vez, é a alternativa radical do indiferenciado selvagem da vulgata newtoniana – e aqui aparece em Eliade a voga do evolucionismo sociológico que determina, como em Durkheim, Simmel e Luhmann a analogia radical entre o primitivo e o indiferenciado.
            Este desenho é, por fim, a recuperação da dimensão técnica da arquitetura em que o espaço é recortado em espaços de relevância e habitação que instituem uma ordem transcendente que, por fim, emana dela mesmo em sinais produzindo uma analogia radical entre espaço consagrado (lugar) e cosmogonia respondendo de chofre como compreender a relação entre mito e ritual que tantas dores de cabeça causa nas pesquisas sobre religião.

            Segue-se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for o seu plano de referencia. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico o Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação de Mundo a partir de um ponto central (o “umbigo”). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa-se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo, etc.) ou pelos ideogramas das trevas.” (1992:41)

            A imago mundi não é, contudo, uma máquina de habitar mas uma constante na vida do homem religioso que ao habitar se orienta segundo as premissas da ordem cósmica em que habita. E orienta porque induz aos valores cuja precipitação impõe ao caos contínuo uma ordem discreta, tensão muito familiar à sociologia kantiana de fins do século XIX e mesmo ao estruturalismo do século XX, a mesma que faz conformar evolução social com diferenciação de papéis e sofisticação da organização humana. Nenhum desses temas é inexistente no trabalho de Eliade, convocado aqui como um contraponto à leitura de Simondon. A presença abreviada, contudo, não tem como objetivo diminuir Eliade posto notadamente como coadjuvante em seu próprio domínio. Isto porque a noção de reticulação do mundo tal como proposto pela fase mágica do esquema de Simondon não necessariamente oferece um modelo alternativo de religião, que é, também o que está em questão aqui. O caso é que oferece uma noção diferente de tempo evolutivo, implicando em um outro desdobramento da relação entre vida e desenvolvimento que trabalhos como Eliade absorvem, extremamente críticos ao evolucionismo como doutrina da existência ao mesmo tempo em que permissivos quanto ao evolucionismo sociológico que só faz sentido porque nada acontece senão o evento originário.

domingo, 20 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar.

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GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.


            O livro sobre os objetos técnicos é, se posso dizer assim, uma ontologia de função do ensemble technique (assembleia ou agrupamento técnico) relativo à infra-estrutura das relações funcionais, especialmente atento à ontogênese da técnica – uma tal ou qual determinada técnica em um quadro evolutivo geral; porque uma técnica, ou uma finalidade objetiva conduz a uma segunda e a uma terceira, etc. – e ao problema da individuação, conceito para o qual dedicou todo um empreendimento reflexivo num outro livro. Não sendo qualquer tipo de consideração sobre a representação produzida sobre o universo tecnológico e seus desdobramentos morais, o trabalho de Simondon introduz  tanto do ponto de vista descritivo quanto do ponto de vista teórico a apreciação do momento como qualificativo das relações no tempo, fazendo com que questões relativas à agência articulem nexos entre movimentos de convergência e dispersão. Este nexo sugere uma reflexão meticulosa quanto aos critérios de descrição das técnicas em sua dada função oferecendo um quadro expandido para temas caros à antropologia social, desde as técnicas corporais e usufruto de objetos à dimensões pouco usuais da vida social das coisas, permitindo compreender a vida reificada da sociedade sem que com isso seja necessário recorrer ao expediente da alienação como uma discussão protocolar.
            Sim, a remissão à antropologia social aparece como de improviso, não sendo introduzida por ninguém, muito menos pelo mesmo Simondon de quem pareço me ocupar. Mas se a antropologia social aparece como de improviso, o “social”  do antropologia não. Especialmente se for lido com o rigor caxias de um manual disciplinar. Sociedade, ao seguirmos o desenho sugerido por parte da sociologia alemã clássica (Weber, Troeltsch e Simmel) designa o coletivo reunido segundo critérios de organização social do trabalho. A colagem entre trabalho e valor, que esta mesma sociologia que tenta responder a Kant e a Marx em igual medida, divorcia ao máximo o contraponto entre economia política e religião (trabalho e valor purificados, um do outro) fazendo com que uma e outra possam se deslocar sem se forçarem em uma mesma direção mútua. Este descolamento é, quero crer, a zona em que se move a possibilidade da alienação como conceito.
            O caso é que a antropologia social tem como ferramenta de base a articulação da distinção de papéis sociais, isto é, das funções exercidas por alguém (como o ego do parentesco) com relação à totalidade das funções exercidas, totalidade esta comprometida com a reprodução social. Visto de outra forma, é a reconstituição do exercício de associação no seio da economia política do ponto de vista da sociedade. Um dos desdobramentos da distinção para  qual eu chamo a atenção está na reconstituição do que se possa chamar de organização social entendendo haver nela um núcleo estável que permita a reprodução dos papéis no tempo, intra ou intergeracionalmente. E assim, a esfera dos valores aparece como a gramática, ainda que sua conexão com os veículos de expansão seja sempre obscuro. A sociedade é algo que opera sempre por indução do agente (como na Sociologie de Simmel) ou por dedução do pesquisador (como no caso das Règles de Durkheim), mas nunca acontece, como temia Jules Michelet. Isto porque a conexão entre valores e trabalhos social (conceitos e coisa-em-si?) sempre opera em um dado paralelismo que obriga a divisão entre idealistas e materialistas em um mundo que, por fim, segue ignorando esta distinção a cada vez que algo banal e irrelevante acontece. Qualquer coisa.
            Pôr em pauta a ontogênese da técnica visa conectar o que em geral é perdido na tradução entre valor e trabalho e que não consegue propiciar de uma forma geral qualquer consideração aguda a respeito do evento, o que em antropologia é grave levando em consideração a relação com o aporte etnográfico, cuja pedra de toque é exatamente a descrição de eventos. O exercício não põe, contudo, o evento em questão.
            O aporte de Simondon é agudo ao oferecer instrumentos ao considerar, por exemplo, que tecnicidade é o emploi d’objets a partir da estruturação da resolução provisória de problemas (1969:156) e que numa mesma ordem histórica este processo evolutivo de adaptação e agrupamento técnico respeita fases – que são ordens de configuração -, tendo a fase mágica como fase inaugural.

            “(...) en prenant ce mot au sens le plus général, et en considérant le mode magique d’existence comme celui qui est pré-technique et pré-religieux, immédiatement au-dessus d’une relation qui serait simplement celle du vivant à sn milieu. Le mode magique de relation au monde n’est pas dépourvu de toute organisation : il est au contraire riche en organisation implicite, attachée au monde et à l’homme : la médiation entre l’homme et le monde n’y est pas encore concrétisé et constituée à part, au moyens d’objets ou d’êtres humains spécialisés, mais elle existe fonctionnellement dans une première structuration, la plus élémentaire de toutes : celle qui fait surgir la distinction entre figure et fond dans l’univers. »  (1969 :156)

            O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)