quinta-feira, 21 de novembro de 2013

La diabolie: o negativo da história social da verdade


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.
_____________________. L’Age Libertin. Minuit. Paris. 1987.
SHAPIN, Steven. A social history of truth : civility and science in seventeenth-
century England. University of Chicago Press. Chicago/London. 1994.


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            « Le libertin honnête doit savoir préserver l’autonomie de son for intérieur tout livrant son MOI social aux effets du dialogisme, et découvrir l’autre dans ses retranchements. » (Claude Reichler, L’Age Libertin)

            Posso jurar dizer a verdade. Bradar com todas as minhas forças, inclusive aquelas que em nada tem a ver com os músculos que me permitem falar. O juramento não altera o estatuto do problema de que dizer a verdade é uma aporia e que jurar não muda seu estatuto salvo como expressamente aceito. Jurar pertence ao campo performático em que o que é dito não descreve coisa alguma e que, portanto, não está sujeito a verificação e, por isso, tampouco ao falseamento. Posso não dar crédito a quem jura e isso em nada tem a ver com o que se disse – “eu juro” – mas sim com outra gama de relações. E isto não permite que eu possa voltar à primeira expressão com maior ou menor felicidade.  Eu disse a verdade” também não acrescenta a qualquer descrição informação alguma quando digo; “a língua pirahã opera sem quantificadores”, ou “não existe avaliação estatística válida que opere somente com duas variáveis”, ou mesmo “o livro está sobre a mesa”.
            Assim sendo, a ênfase e o juramento só atestam minha convicção e minha disposição em atestar comprometimento com o que eu disse sem que tenha aprimorado qualquer elemento rumo a uma maior especificação quanto ao evento ou objeto descrito. De uma certa forma a sentença original segue no escuro ou, na melhor das hipóteses, sob a luz disponível. Há quem diga que responder a uma sucessão de proposições válidas expostas de forma, e na ordem adequadas poderia oferecer algum grau de correspondência algo satisfatória. Ao mesmo tempo há aqueles para quem o juramento terá bastado. Ainda assim, há um componente delicado que implicará numa economia política do discurso pois, se por um lado aceitar o juramento pode soar ingênuo, por outro lado aceitar a mera existência de algo como “pirahãs”, “estatística e variáveis” e “um livro sobre a mesa”- o livro, ainda que conhecido, pode ser uma sorte de gavagai – atesta igualmente confiança. As sentenças que correm risco de serem aceitas como verdadeiras são aquelas em que é possível depositar confiança, dar crédito no sentido rigoroso do termo, servirão para uma troca futura, seja para utilizar numa segunda demonstração, seja para cobrar a palavra ou a ausência da mesma, de quem quer que tenha jurado. E é neste nível de elaboração em que estamos. Importa tanto que uma sentença seja verdadeira quanto ela possa circular enquanto tal.
            Este, quero crer, é o pano de fundo para uma reflexão que se permite ser uma história social da verdade em que a justiça a uma determinada sentença é feita na medida em que uma determinada ordem social se compromete com a boa vida futura.

            Social order would be impossible unless on were morally enjoined “to stand one’s world in all promises and bargains”. The foundations of justice was faithfulness, “which consists in being constantly firm to your word, and conscious performance of all compacts and bargains”. To be sure, the obligations to keep a promise was not absolute; for example, if keeping it was likely to injure an individual or society, one might have no legitimate commitment. And persons “overawed by fear” or otherwise unfree when they made a promise were not deemed to have entered into a moral commitment. Yet, like other Greek or Roman social theorists, Cicero understood that social order utterly depended upon trust being rightly reposed in morally bound truth-tellers and promise-keepers. Liars and dissimulators threatened the moral fabric of society: they were “knaves” and their actions were “attended with dishonor.”(Shapin, 1994:09)
           
            Lembrando que a dissimulação e a mentira só são uma vez que identificados como tal – o que demanda haver algum método – é preciso retornar então que enquanto forem tratadas como verdade, circularão como tal. E é este o território da diabolia de Claude Reichler no qual o contrato, o acordo é reduzido à mera sucessão de palavras da parte de alguém que, como num juramento em falso que faz sem comprometimento interno, subjetivo, com o que foi dito; não juramento falso, mas juramento EM falso. Falar a verdade, ser reconhecido como tal, caminhar como um cidadão. Ao sugerir que uma sociedade é uma certa forma de distribuição dos saberes, do conhecimento implícito do mundo, e que a sociedade opera como uma certa técnica da razão (me valendo da leitura de Giannotti a respeito de Durkheim), falar a verdade implica num modo de participação e pertencimento em uma sociedade específica. Não como determinar imediatamente se estamos falando de uma determinada sociedade é nacional ou, de outra forma, uma associação de pesquisadores do cavalo-marinho. A verdade, a despeito da arquitetura soberba d’A Metafísica de Aristóteles pode ser somente um vocábulo, um atestado e, por isso, uma moeda de troca.
           
            Georg Simmel recognized that truth-telling was “of the most far-reaching significance for relations among men”, and that social systems varied enormously in their tolerance for lying and distrust. Very simple societies were said to be relatively tolerant of untruthfulness, whereas deceit and distrust worked lethal effects on highly differentiated and interdependent modern societies. Modern life, Simmel said, “is a ‘credit economy’ in a much broader sense than a strictly economic sense.” (Shapin, op.cit.:14-15)

            Que não se perca o desenho de vista. Compreender a verdade como moeda de troca e, por isso, implicando-a  numa economia política do discurso – como descrito por Bruno Latour em Science en Action, ou Laboratory Life (com Steve Woolgar), ou em Histories of Scientific Observation, editado por Lorraine Daston e Elisabeth Lunbeck – é imperativo tomar nota quanto ao sistema de distribuição, isto é, compreender a rede que o movimenta assim como os dispositivos concernentes ao modo de pôr e tirar de circulação o que é atestadamente verdadeiro ou, respectivamente, notadamente falso. Isto leva-nos ao problema de não somente quanto ao saber-saber, mas também como obstruir e garantir a obstrução de indesejáveis – o que opera nas variações da censura e da etiqueta. Opera também, e isto não é menos importante, em uma determinada logística. Esta mesma logística implica não somente na circulação de discursos, mas de pessoas, coisas e, quando possível, animais, todos sujeitos à edição e, quando mais grave, censura e até mesmo excomunhão, como a de Jacque Lacan diante da Sociedade Psicanalítica Francesa. Isto porque, assim como variam a censura e a etiqueta, variam os relatos que serão, de alguma forma, postos em graus de confiabilidade – o que seria de “ trust” sem  doubt”?  e de “doubt” sem a crítica, isto é, um método de certificação a posteriori baseada, obviamente, em um sistema a priori?
           
            Reports may vary because individuals are differently situated, in space and time (e.g., you were not present when the phenomena were on display), because observational conditions vary (e.g. cloud cover obscured your sight of the comet), or because others may be observing from different forms depending upon the face which one looks).  One observer or the other may lack a requisite aid to perception (a telescope or one sufficient quality), or may, in extreme cases, be suffering a delusionary or hallucinatory condition.”(Shapin, op.cit.:31-32)

            E a condição alucinante é o primeiro passo para chegarmos a versões algo mais suaves do problema, para as quais convém chamarmos de interpretações.

2 comentários:

Permafrost disse...

Eu adicionaria q só existe o juramento de ‘dizer/ter dito a verdade’ pois quem o exige supõe q o declarante teme o sofrimento (próprio ou alheio). Então ‘jurar a verdade’ é bem diferente de ‘dizer a verdade’, pois exigir o juramento implica em desconfiança da ética do outro qdo, na verdade, a ética já tem q tar na própria declaração principal.
Assim, ‘jurar’ é apenas ‘reiterar’, ‘declarar duas/três vezes o mesmo, sem precisar repetir’. E isso é uma economia dupla, pois, como disse Lewis Carroll, «what I tell you three times is true».
“Este é just the place for a Snark! Este é just the place for a Snark! Este é just the place for a Snark!”
Mais economicamente:
“Este é just the place for a Snark! Eu juro.”
Ainda mais economicamente:
“Juro q este é just the place for a Snark!”
Pois ¿quem se arriscaria ao possível sofrimento (próprio ou alheio) decorrente de acreditar a ética interna de alguém q simplesmente declara:
“Este é just the place for a Snark!”?
(Note ‘acreditar A ética’, não ‘acreditar NA ética’.)

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...

Tá adicionado, Perma. Na verdade, tem muita coisa a ser discutido quanto ao que é ou pode ser um juramento, assim sobre a variedade de formas da enunciação que permitem que se possa compreender comunicação de forma mais sutil. Mas agradeço o aparte. Volto ao tema logo mais.

Abração, rapaz.