quinta-feira, 25 de abril de 2013

O silêncio de Franz Boas e a voz da tradição: nota sobre um exercício do espírito.

Franz Boas como peça de museu. 



Confesso que sofro de um certo mal-estar com a sociologia francesa. Assim como todas as notas relativas à reforma da humanidade com a finalidade de seu melhoramento contínuo, o desconforto segue sendo aquele que testemunha a delicada trama entre história natural, história da consciência e história da civilização. Não saber onde termina uma e aonde começa a outra, é aonde resido incomodado. Não é um problema pouco relevante e compreender o embaraço remete, de outra forma ao tipo de dilema que culmina na oposição criada entre valor e organização social (ou divisão social do trabalho) que reproduz em outra escala, numa escala global, o mesmo tipo de ruptura que João Calvino impõe na discussão sobre a simbologia na eucaristia. Até porque é desta divisão, quero crer, que muito do que se oferece como modernidade, ou constituição do moderno deriva, participando da composição que aparta as esferas: religiosa (aonde estabelecem residência o símbolo, o valor e a cultura; como a cultura religiosa), econômica (aonde residem o governo, a política e a economia ela mesma) e estética (aonde o rebotalho da experiência vivida encontra seu veículo expressivo sendo desprovido de relevância e conteúdo na organização da cultura, salvo se agenciado pela administração da mesma na forma de pastas e ministérios, secretarias e financiamentos). Obviamente que este é um esquema, uma caricatura, um fantoche.
            O caso é que o enquadramento para o qual atento estabelece não somente o apartamento entre esferas da vida – componente hegeliano que reproduzo desde a obra de Louis Dumont – mas uma ordem hierárquica que por se exprimir por via da economia política indica sua própria fonte, o da economia como fundamento das demais expressões da vida. Não é desprovido de interesse o fato de que a Revolução Francesa seja, antes de mais nada o momento histórico em que esta insurgência se dá fazendo proliferar discursos sobre a função de cada um na organização social da economia nacional, de onde brota o ressentimento com a ordem eclesiástica e com parte da nobreza. As distinções devem participar dos benefícios produzidos, incluindo a religião que é um termo que, ora e vez aparece como termo dispensável ainda que seja ela, em sua expressão igualmente econômica quem tenha instituído e codificado o controle da experiência e da imediaticidade como atestam os trabalhos de Keith Thomas, Ernst Troeltsch, Michel de Certeau, Paolo Prodi e Giorgio Agamben.
            É exatamente na formação de quadros funcionais da ordem estatística da experiência – minha forma de ser grandiloquente – que lemos em Émile Durkheim, por exemplo, que o que as sociedades fazem quando estão distraídas de si-mesmas não é outra coisa senão organizar a sociedade. E que, independentemente do que estejam fazendo, talvez uma sociedade organizada em papéis em funções, ainda que distraídas daquilo que lhes é mais sociologicamente característico, seguem no mesmo rumo, o do aperfeiçoamento das faculdades, da diferenciação evolutiva, do alinhamento entre racionalização das relações com o desenvolvimento de instituições que são, aos poucos, cada vez menos festivas chegando ao cúmulo de enviar convites para uma festa-BIO. Mesmo a festa tem a função catártica, um ladrão de caixa-d’água, uma forma de terapêutica sazonal à semelhança dos movimentos peristálticos em que se dejeta tudo o que não for mais possível manter. Sendo esta a palheta, sendo este o pano de fundo em que a definição de como as coisas são não se separam daquilo que algo deveria ser; de como é impossível discriminar, ao ler sobre a organização social Dogon aquilo que ela é daquilo que ela deveria ser, pois desde então estão divididos em papéis sociais funcionais que apontam o que fazem de verdade enquanto pensam fazer coisas como línguas secretas e deuses que residem na água. Ainda que o subterrâneo não fosse seu gesto preferido, há muito de Napoleão Bonaparte no exercício sociológico republicano. Por isso entendo, cada vez mais e melhor, o gesto silencioso de Franz Boas quando, num seminário sobre o futuro da teoria antropológica ao ter concedida a palavra, calou-se, levantou-se e saiu de cena. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O lado onírico que dá na mesma


“Bom. Acho que não me fiz claro.” – disse com a força de quem havia acordado de um sono longo transbordando convicção. A bem da verdade, tinha o hábito de dormir em meio às conversas somente para poder, em manobras sutis de manipulação da mente, interromper o falatório num despertar súbito com alguma intervenção precisa oferecendo a resposta mais adequada, o comentário mais decisivo ou mesmo somente a informação correta mesmo no mais delicado dos detalhes: “3 dias depois, 5 dia antes e 2,5 litros de água jogados de uma altura de 15 metros”. No caso, o assunto era outro, e sempre era outro. Havia dormido em plena conversação, tomado por uma espécie de torpor que já lhe era habitual, vindo a adormecer todas as notas musicais que permeiam a indócil música da perda de tempo usual das conversas inúteis. Escusado dizer que quase já não tinha amigos, que seus hábitos se transformaram em uma atitude hostil e que, ainda que preciso e, em determinadas horas quase que necessário, aos poucos sua narcolepsia premonitória o jogava em um estágio eremita de articulação social no qual tudo era quase a solidão relativa de seu pequeno apartamento, meia dúzia de encontros amorosos, uma outra dose de lembranças mais ou menos presentes na forma de encontros em bares e cafés, e a dose de cobranças manifestas em envelopes brancos e largos preenchidos com todo tipo de conexão entre bens e serviços. Cacofonia era prenúncio de sono e de, também, alguma nova solução seguramente tomada com um tom de voz e uma conduta considerada mais ou menos inconveniente. “Se não me fiz claro da primeira vez, vai a segunda, em nome da sua burrice”. Estapeou um dos assaltantes que logo lhe acertou o fígado com mais um tiro descuidado, dando tempo para que seu filho fugisse, dobrasse a esquina e perdesse contato com o evento atormentado que significou mais um episódio de sono de seu pai. No velório, em meio ao bavardeio impenitente que ora e vez assombra as beiradas de caixões, o óbvio aconteceu. Nada. "Morrer e dormir não é a mesma coisa. Esqueça". 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Corte e dobra

Na caixa toráxica, curva e
enredada no mesmo suporte
em que me sugam o tutano,
aonde me sopram as vértebras nuas
e então ocas num som de flauta,
cala o silêncio em que se narra a história
grave
de um tempo futuro,
ansiedade
em responder em causa própria
a impossível felicidade de saber
desde quando.