“Bom.
Acho que não me fiz claro.” – disse com a força de quem havia acordado de um
sono longo transbordando convicção. A bem da verdade, tinha o hábito de dormir
em meio às conversas somente para poder, em manobras sutis de manipulação da
mente, interromper o falatório num despertar súbito com alguma intervenção
precisa oferecendo a resposta mais adequada, o comentário mais decisivo ou mesmo
somente a informação correta mesmo no mais delicado dos detalhes: “3 dias
depois, 5 dia antes e 2,5 litros de água jogados de uma altura de 15 metros”.
No caso, o assunto era outro, e sempre era outro. Havia dormido em plena
conversação, tomado por uma espécie de torpor que já lhe era habitual, vindo a
adormecer todas as notas musicais que permeiam a indócil música da perda de
tempo usual das conversas inúteis. Escusado dizer que quase já não tinha
amigos, que seus hábitos se transformaram em uma atitude hostil e que, ainda
que preciso e, em determinadas horas quase que necessário, aos poucos sua
narcolepsia premonitória o jogava em um estágio eremita de articulação social
no qual tudo era quase a solidão relativa de seu pequeno apartamento, meia
dúzia de encontros amorosos, uma outra dose de lembranças mais ou menos
presentes na forma de encontros em bares e cafés, e a dose de cobranças
manifestas em envelopes brancos e largos preenchidos com todo tipo de conexão
entre bens e serviços. Cacofonia era prenúncio de sono e de, também, alguma
nova solução seguramente tomada com um tom de voz e uma conduta considerada
mais ou menos inconveniente. “Se não me fiz claro da primeira vez, vai a
segunda, em nome da sua burrice”. Estapeou um dos assaltantes que logo lhe
acertou o fígado com mais um tiro descuidado, dando tempo para que seu filho fugisse,
dobrasse a esquina e perdesse contato com o evento atormentado que significou
mais um episódio de sono de seu pai. No velório, em meio ao bavardeio
impenitente que ora e vez assombra as beiradas de caixões, o óbvio aconteceu.
Nada. "Morrer e dormir não é a mesma coisa. Esqueça".
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