quarta-feira, 24 de abril de 2013

O lado onírico que dá na mesma


“Bom. Acho que não me fiz claro.” – disse com a força de quem havia acordado de um sono longo transbordando convicção. A bem da verdade, tinha o hábito de dormir em meio às conversas somente para poder, em manobras sutis de manipulação da mente, interromper o falatório num despertar súbito com alguma intervenção precisa oferecendo a resposta mais adequada, o comentário mais decisivo ou mesmo somente a informação correta mesmo no mais delicado dos detalhes: “3 dias depois, 5 dia antes e 2,5 litros de água jogados de uma altura de 15 metros”. No caso, o assunto era outro, e sempre era outro. Havia dormido em plena conversação, tomado por uma espécie de torpor que já lhe era habitual, vindo a adormecer todas as notas musicais que permeiam a indócil música da perda de tempo usual das conversas inúteis. Escusado dizer que quase já não tinha amigos, que seus hábitos se transformaram em uma atitude hostil e que, ainda que preciso e, em determinadas horas quase que necessário, aos poucos sua narcolepsia premonitória o jogava em um estágio eremita de articulação social no qual tudo era quase a solidão relativa de seu pequeno apartamento, meia dúzia de encontros amorosos, uma outra dose de lembranças mais ou menos presentes na forma de encontros em bares e cafés, e a dose de cobranças manifestas em envelopes brancos e largos preenchidos com todo tipo de conexão entre bens e serviços. Cacofonia era prenúncio de sono e de, também, alguma nova solução seguramente tomada com um tom de voz e uma conduta considerada mais ou menos inconveniente. “Se não me fiz claro da primeira vez, vai a segunda, em nome da sua burrice”. Estapeou um dos assaltantes que logo lhe acertou o fígado com mais um tiro descuidado, dando tempo para que seu filho fugisse, dobrasse a esquina e perdesse contato com o evento atormentado que significou mais um episódio de sono de seu pai. No velório, em meio ao bavardeio impenitente que ora e vez assombra as beiradas de caixões, o óbvio aconteceu. Nada. "Morrer e dormir não é a mesma coisa. Esqueça". 

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