Mostrando postagens com marcador É preciso ter espírito. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador É preciso ter espírito. Mostrar todas as postagens

sábado, 11 de julho de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.

(retirado da tese de doutorado, recém-defendida. as remissões bibliográficas estão no vazio. lamento.)

(...) o crime contra a autoridade soberana não se limita mais ao núcleo detentor do poder, ao novo príncipe, mas é pouco a pouco ampliado para abranger todas aquelas ações que ameaçam a segurança e a prosperidade da sociedade e atacam suas ideologias fundamentais, como a propriedade.
Paolo Prodi, Uma história da justiça



            1 - França- 1789 segue sendo um marco inescapável ao imaginar a França moderna, especialmente quando o objeto do qual se trata não é a Revolução Francesa, o que faz da data um espectro permanente na imaginação a respeito do tempo francês. O processo revolucionário, que parte de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária do ano em questão, se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto em que o conceito de revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo normal próprio das órbitas celestes como em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006:63; Cohen, 1985), onde a revolução descreve um movimento cíclico, passa a significar a ruptura no tempo na forma de sua aceleração. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma outra revolução[1].
            Esta revolução nova conduzida pela evidente necessidade de uma reforma de Estado em fins dos século XVIII, necessidade reconhecida amplamente por grande parte dos diretamente envolvidos[2], tendo como primeiro ato revolucionário uma procissão que parte da Catedral de Nossa Senhora de Paris até a igreja de São Luís em Versailles. A ação revolucionária primeira cmo ato governamental acrescenta uma outra nota ao processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços. É a ação humana que ganha uma outra dimensão, se tornando portanto protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela mesma como objeto e meio da ação. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de rumos chegou ao ponto de alterar a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino. Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
            O que faço nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que faça expediente de algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário francês começa como um ato governamental para por fim mudar aquilo que significa governar pode ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia ainda assim é tentadora e, mais proveitosa. Obviamente que esta sugestão não pretende se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos processos históricos que afirma que um dado evento com as proporções da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência, e que, a depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida diferente. Suas origens culturais não coincidiriam, portanto, com suas origens sociológicas, tampouco intelectuais e muito menos, historiográfias, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha grosseria algo salutar porque boa parte das categorias e conceitos em movimento no período pós-revolucionário ressoarão mais adiante, cronologicamente, na forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos que parecem, por fim, generalizações de tomadas de decisão ou de projetos sustentados no seio do debate revolucionário. É o caso da sociologia, por exemplo (Wagner, 2000). O que estou dizendo é que, após a Revolução, a emergência do pensamento sociológico dificilmente poderia ser discriminado das reformas que se inserem como postulado para as políticas de Estado e governo, assim como a mudança nos fundamentos do que significa Estado e governar. É dessas reformas que grande parte de conceitos fundamentais se transformam em moeda corrente. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história moderna mas, repito, dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
            Visto de um ponto de vista não-especializado, o jogo de sucessivas reformas tem a aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar um obeto para então substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do Estado e seus demiurgos que, logo, transformam-se em biografias coletivas que atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua forja. Assim, o que dizer de posições como a da Coroa que caiu guilhotina abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão seria mesmo um termo adequado? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido ou, pelo menos, severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
            No documento da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790, a Igreja é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma fratura ainda maior e, convém lembrar, conduzida diversas vezes com grande violência durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando a prática do culto público, esta obsessão de Émile Durkheim (2000), sofrem golpes severo com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma linha a partir da qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso é uma atividade, quando não ilegal, é, dali por diante, extra-oficial, apenas reconhecida por lei. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da descrita?

            Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembléias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).

            Isto não quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz. No entanto algo peculiar tomou forma mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião oficial, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si dado que a partir do ato se tornaram equivalentes. Este gesto, repercutindo nesta escala, ainda que jurídico-teórico, produz uma certa indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos, caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.


[1]Em 1842, um erudito francês fez uma observação histórica de caráter bastante produtivo. Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que “revolução” se referia a um retorno, uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino da palavra e que conduzia de volta ao ponto de partida. Uma revolução significava então, primordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um movimento cíclico. Haréau acrescentou ainda que, no âmbito político, esse movimento circular fora entendido como círculo das constituições, segundo a doutrina de Aristóteles ou de Políbio e seus seguidores, mas que desde 1789, pela influência de Condorcet, não se podia mais compreendê-lo desse modo. Segundo a doutrina antiga, havia um número limitado de formas constitucionais, que substituíam alternadamente umas às outras, mas que, de acordo com sua natureza, jamais poderiam ser ultrapassadas por outras formas. Trata-se dos tipos constitucionais ainda correntes entre nós e de suas formas decadentes, que se seguem umas às outras de maneira quase obrigatória. Haréau cita Louis LeRoy como testemunha esquecida desse mundo passado. Para LeRoy, a primeira dentre todas as formas de governo era a monarquia, a qual, uma vez transmutada em tirania, era dissolvida pela aristocracia. Seque-se o conhecido esquema, segundo o qual a aristocracia transforma-se em oligarquia, deposta a seguir por uma democracia, a qual, por fim, degenera na forma decadente de uma olocracia, dominação pelas massas. Nesse ponto ninguém mais governa de fato, e o caminho para a dominação por um único indivíduo encontra-se novamente livre. Inicia-se o velho círculo. Trata-se aqui de um modelo de revolução que, em grego foi compreendido como metábole tôn politeiôn ou como nakyklosis tôn politeiôn  e que se nutria da experiência de que toda forma de convivência política é, por fim, limitada. Cada mudança conduz a uma forma de governo já conhecida, sob a qual os homens são obrigados a viver. Seria impossível romper com esse círculo natural.”(Koselleck, 2006:63-64)
[2] Nunca é demais lembrar que a Coroa e a Igreja são instituições diretamente envolvidas no processo revolucionário em seu primeiro momento.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Notas do subterrâneo: o sonho perféctil da bala sem rumo


[REYNAUD, Jean. Terre et ciel. Philosophie Religieuse. Furne et Cie. Éditeurs. Quarta edição. 1863.


NOTA: sonho de um perfeccionário:

 “Quand je juge de ce qui doivent se dérouler devant lui ? Quand je juge de ce qui se fera d’ici à huit ou dix mille ans ou même davantage, d’après ce qui fait depuis une centaine d’années que l’industrie a décidément commencé son mouvement, je n’hésite point, je l’avoue, à lâcher à mon imagination toutes les brides ; et pour l’Océan en particulier, je m’aventure sans peine jusqu’à rêver quelque invention pas laquelle on arriverait à le mettre aux prises avec la chaleur centrale ; et dès lors, du sein de ces masses maintenant inertes, voyons, s’il vous plaît, jaillir à volonté les transformations les plus extraordinaires dans les conditions de l’existence de l’homme sur sa planète. Ne fût-ce même là qu’une fantaisie poétique, que cette fantaisie serve du moins à nous peindre la témérité qu’il y aurait à condamner, comme incommode et inutile, une ordonnance dont nous ne sommes nullement assurés jusqu’ici de connaître le fond. »(op.cit. : 67)]


                O primeiro desdobramento do sonho perféctil é exatamente o da indústria, digo, a capacidade de criar, de produzir, de saber-fazer. O que Reynaud sugere é que não obstante sermos capazes de vivermos num determinado ambiente com o qual temos um dado grau de acordo formal, este mesmo acordo não é suficiente para caracterizar a atividade humana. Isso porque, e o exemplo é do mesmo Reynaud, ao perdermos diariamente a luz solar que nos envolve no breu ou na luz pálida da lua, revestimos outros ambientes mais próximos de nós de forma a produzirmos a luz que então nos é necessária. Não é o caso de simular luz, mas de produzir aonde, sem a indústria não haveria senão breu. De alguma forma, não é difícil estender esta filogênese da indústria até o equipamento laboratorial ou à toda gama de atividades de ensaio que são, nestes termos o mesmo que produção (op.cit.: 70-72). O privado e o público podem sofrer um gradiente delicado que se estende, mais uma vez, até o natural que fará as vezes, ora e vez, de terra selvagem em termos muito precisos.

                   “De plus, comme toutes nos affaires, hors de nos domiciles, ne nous appellent pas nécessairement dans la campagne ; comme les voies publiques sont, aussi bien que nos appartements, un terrain limité dont la fréquentation est continuelle ; comme il y a enfin une sortie d’intermédiaire entre nos possessions domestiques et celles où nous ne pouvons songer à dompter aussi absolument la nature, il nous reste, si je puis ainsi dire, la ressource de prolonger nos toits au delà de nos maisons. »(op.cit. :72)

                   E então a vida moral do laboratório encontra uma forma de filogênese, ao mesmo tempo em que a extensão do espaço doméstico constitui aquilo que, logo mais será a construção de meios para que possa haver o transporte – a transmigração. Contudo, a partir de um determinado ponto, a extensão acaba e então, escreve Reynaud, estamos mais uma vez entregues à tirania da natureza. Contra a tirania, o melhoramento:

                   “Mais, de quelque végétaux que l’homme parvienne à enrichir encore ses champs et ses jardins ; de quelques animaux, transformés pas sa discipline, qu’il imagine d’accroître ses basses-cours, ses haras, ses troupeaux ; en un mot, sans le détailler, quelques acquisitions qu’il lui reste à faire dans le monde sauvage, on ne peut douter qu’il n’y ait un limite à laquelle il doive s’arrêter, et qu’il  ne lui soit par conséquent interdit de tenir jamais sous sa main et à son profit tout ce qui existe autour de lui sur la terre. Ne seraient-ce que ces armées de mollusques et de zoophytes qui habitent dans les incultures de l’Océan, une fraction considérable du peuple de la planète semble trop étrangère à l’homme pour ne pas conserver à perpétuité son indépendance native; et il est même presque évident que, pour achever de nous établir convenablement sur la terre, nous n’avons pas moins de races à éliminer qu’a soumettre.» (op.cit. 85).]

Está em causa a posse da terra. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Notas do subterrâneo: guia espiritual para a perfeição, um caso francês.


SURIN, Jean-Joseph (1963). Guide spirituel pour la perfection. Paris. Desclée de
Brouwer.

Um livro para conduzir a vida interior rumo à perfeição. Antes de tudo, cabe anotar a vida interior, ambiente aonde tudo deve se dar, num movimento explícito de separação e intimação da intimidade. Contemplação, possivelmente trazendo à vida em sua marca possível os elementos disponíveis na filosofia de Plotino. Eu realmente não sei. Este é um ambiente novo, devo confessar, sobre o qual devo ter lido meia dúzia de capítulos, quase todos eles escritos pelo mesmo historiador e teólogo que estabeleceu o texto que leio nesta edição, Michel de Certeau, o mesmo autor de La fable mystique, livro que servirá de guia para tudo o que poderei escrever por aqui. A mística católica, até aonde sei, é um universo. Em grande parte atacada e dissolvida por aquilo que frequentemente eu, na mais profunda ignorância, chamo de desencantamento, o movimento que diz respeito a esta zona de empobrecimento do imediato na relação com a Providência e o Amor. Ainda que a preguiça faça menção mais costumeira ao investimento ético protestante, a mística também sofre forte impacto causado por golpes racionalizantes dentro da igreja. Não digo que isto seja novidade, pois não é. Basta rememorar o que Weber anota sobre racionalização da teologia e instituição católicas (bem anotadas por Antônio Flávio Pierucci; Ronaldo Almeida me chamou a atenção para isto) e historiografia de Keith Thomas sobre o declínio da magia que cumpria parte significativa do universo simbólico-efetivo da vida cristã (e o artigo de Oscar Calavia Sáez foi quem me chamou a atenção isso anos antes de vir a me dedicar ao tema). Entendo que esta não é uma bibliografia exaustiva, longe disso. Mas ela é suficiente para que eu mesmo não me engane, não estou viajando por mares nunca dantes navegados. A bem da verdade, qualquer anotação que eu venha a redigir poderá, na melhor das hipóteses, ser o registro de minha iniciação na reflexão sobre a mística que, assim como venho fazendo com o espiritismo, compreende numa atividade pedagógica na qual eu faço o que me pedem para fazer com vistas em me responsabilizar pelos resultados. É então que leio no final do prefácio de De Certeau o que Nicolas Grou, emérito contemplativo do século XVIII francês, escreveu sobre o mode d’emploi[1] deste livro, que transcrevo porque é o que farei:

Quant à vous, si la lecture du Père Surin vous plaît, si vous prenez goût, je regarde cela comme une des plus grandes grâces que dieu puisse vous faire. Ses ouvrages vous apprendront en quoi consiste le vrais service de Dieu, la solide spiritualité et cette vie intérieure qui doit être l’âme de notre conduite. Vous me pourrez suivre de guide plus sûre et plus éclairé. Lisez-le lentement et, en quelque sorte, à long traits. Suspendez de temps en temps votre lecture pour donner lieu aux réflections et aux impressions de la grâce. »(1963 :61).

Ainda que atendendo a enunciados e premissas morais completamente diferentes, a recomendação é semelhante à que faz Roland Barthes com relação à máximas de La Rochefoucauld. Obviamente entranhado nas questões da estética e do prazer do texto, o que entra em questão é a chave de leitura que faz com que La Rochefoucauld seja o moralista interessante e o escritor aborrecido. E há um momento ótimo da manipulação da leitura, uma máxima moral por vez, com vistas em absorver o impacto da coisa escrita que, se diluída em uma leitura contínua lhe obriga a se perder em orientações sem saber sequer para onde se está indo. Orientação é coisa que se recebe aos poucos e, mais do que qualquer outra coisa, é o que se recebe quando é matéria da busca.  

O QUE É A PERFEIÇÃO?

Premier partie – Où sont traitées les choses qui concernent la perfection en général.

A leitura começa cínica. Não à moda de alguém dedicado ao estoicismo, mas a um leitor reducionista que logo sou. A perfeição – antes de buscar refletir sobre o que é a Perfeição – é fruto de um caminho árduo e penoso. E nisso a Queda se envolve por uma idéia de hábitos e habilles, haillons que envolvem a vida mundana naquilo que deve ser mudança radical daquele que virá a se dedicar ao Amor de Deus. Se há algum eco da teologia tomasina aqui, da qual nada conheço, podemos encontrar na via dolorosa da santidade que é se entregar na via da perfeição, exatamente porque ela é contrária à nossa natureza caída – e o é diferentemente em cada estado em que essa natureza se concretiza produzindo habitus, ou segundas naturezas. Sabendo haver uma única e mesma natureza humana, a soteriologia descrita por Surin aponta para aproximações que fazem daquele que buscam a vida na perfeição diferenças, digamos, de posição com relação à mesma perfeição. E isso em nada implica alterações com relação à natureza corrompida que faz com que o caminho da santidade seja sempre difícil e doloroso porque ele contradiz a natureza corrompida da humanidade. Ainda assim, e esta é a razão que permite que um manual como esse possa ter sido escrito, há coisas a fazer que aproximam a humanidade da graça. Há coisas a fazer, há caminhos. Não há garantias, tampouco métodos. Mas se a santidade é doce e agradável, sabemos porque ela fere a natureza que logo somos, que nos é devida. A todo o momento. E o guia deve ser, antes de mais nada, a orientação pela perseverança. Particeps in tribulatione et regno, em Apocalipse de João (1,9).
Não menos importantes são as figuras que introduzem ao reino da dor e, mais do que isso, ao desconforto frequente que o caminho da santidade deve causar. É como fazer adentrar um pobre que se encontra logo à porta e lhe oferecer uma nova roupa em um dia frio. Vestir-se com a nova roupa demandará se desnudar. Há o frio entre um velho e um novo hábito. Como entre os hábitos mundanos e os de santidade, cujo intervalo queima a pele. Mas a distinção, como quero mostrar não se dá por uma via qualquer. O exemplo do selvagem do Canadá é suficientemente claro para dizer que há posições com relação à santidade – ainda que um ato pura e simplesmente possa fazer ruir esta diferença, porque a danação espreita com um predador trazido pelo vento. A cena é a de um jovem selvagem que, levado para a corte, coube  então vesti-lo, então cobri-lo de novos e melhores hábitos. Nos termos de Surin,

S’il y avait quelque jeune enfant venu du Canada, nourri avec les sauvages et habitué à une forme de vie toute sauvage, qui néanmoins fût d’un beau naturel, il se pourrait faire qu‘un roi, voyant ce beau naturel, dirait qu’il se veut servir de cet enfant et l’avoir en sa cour. Il donnerait charge à quelque habile courtisan de le former et élever en telle sorte qu’il lui pût être agréable. Il est certain que cet enfant, au commencement et durant un long temps, aurait une grande peine. Ce courtisan qui lui aurait été donné pour maître, ne pouvant supporter ses façons de faire grossières, lui donnerait une grande g6ene et affliction, d’où arriverait que cet enfant serait souvent tenté de se dérober et de s’en retourner en son pays, comme vous avons vu un, en France, qui avait les livrées du roi, traité et nourri comme un domestique du roi ; néanmoins on le out jamais tenir qu’il ne s’en retournât à son ancienne façon de vie sauvage, si bien que depuis, retourné au lieu de sa naissance, mémoratif de ce qu’il avait appris, [il] retournait au quartier des Pères qui l’avaient baptisé, se confessait et communiait, puis retournait à sa façon de vie qu’il ne pouvait oublier. » (1967:68)

As vestimentas e os hábitos da corte lhe servem de polimento – exatamente porque é de hábito que a corte demande um comportamento polido – que, de qualquer maneira, demanda um comportamento contrário àquele que lhe é natural. A relação com a corte, aqui, merece o tipo de caução analítica que encontramos em trabalhos como os de Norbert Elias e de Roger Chatier na medida em que os hábitos de corte, especialmente já na altura do século XVII, se compunham de uma face difícil de digerir que diz respeito ao cultivo da hipocrisia quando os assuntos relativos à manutenção da persona cortesã se encontrava em jogo. Ainda que em nome da mentira, muitas vezes, os hábitos cortesãos – que são um exercício de poder-fazer – se alinham com uma premissa catequética, esta, no caso, sem se alinhar com a conduta de fato. Negar a natureza e afastar-se do estado da Queda, que é o estado originário, parece ser um fundamento bastante fluido a ponto de servir como elemento introdutório para um guia espiritual para a perfeição. Como disse, as observações começam cínicas, eivadas de sociologia. Não sei se isso terá função.



[1] Seria o La vie mode d’emploi de Georges Perec um catecismo? 

terça-feira, 13 de março de 2012

Filosofia numa cacetada só, ou duas, vai, vol. 09


René Descartes
Fragmentação. Self dividido. Pessoa Fractal. Santíssima Trindade. Divíduo. Self Múltiplo. Menos que um. Todas operações de divisão desta kabbalah pitagórica que demanda como resultado qualquer número inteiro e racional que não seja 2, para prejuízo de René Descartes.

domingo, 21 de agosto de 2011

Antropometria para Falcão Klein

http://www.yveskleinarchives.org/works/works1_fr.html





Des forces invisibles et inconnues. Por algum tempo, e quem sabe em plena duração, fora essa a forma de designar o conjunto de movimentos que fazem da vida humana algo meramente animal e, logo mais, algo além. E, por isso, e com algum incremento, humana. Defini-la custou muito papiro de cânhamo para que fosse dado o passo de abandonar o esforço analítico aristotélico tão bem disseminado. Matéria desnudada é matéria morta, define o empreendimento erigido nas bases sólidas do estagirita. Por em dois planos aquilo que só pode ser em conjunto, na forma tão delicada quanto perigosa do être ensemble, sugerindo a figuração da polis na composição do mais reles movimento. Isto porque, Aristóteles, a alma nada sente se não for no sentido do corpo. As afecções são matéria do corpo, isto é, a extensão da matéria, que se move por extensões por determinação daquilo que se move a si mesmo, a alma. No entanto, definido, mas sem retrato. Insatisfeita a linhagem contra-Estagira irrompe ao buscar não somente representar a morte segundo o que lhe é alheio, mas por trazer à luz os representantes da morte, de fato e de direito. Pôr à mostra os mortos exemplares de alma nua, com finalidade de dar visibilidade das forças invisíveis e desconhecidas. Num jogo mecânico, podemos ter as fotos de família que os espíritas ao redor de Kardec e Doyle promoviam, num círculo de civilidade que só reafirmavam a bela vida doméstica e as saudades do falecido pai. Contudo, há quem se dispusesse a mostrar outra alternativa de captura, fazendo da imagem do morto algo que deve mesmo ir embora: vapores, energia elétrica, luzes disformes, toda sorte de fonte que começa a cessar de agir por sobre o corpo em seu inverno mais rigoroso – rigor mortis. Se Hyppolite Barraduc fotografa cadáveres em sua última centelha, antecipando o momento fátuo do fogo, é peculiar que se permita existir a impressão nua das antropometrias de Yves Klein que repõe a exalação de mera energia quando ainda vivos. Imprimir a desfigura antes que se abandone o corpo que, todavia move até que deixado; deixar que se mova.