sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Notas do subterrâneo: guia espiritual para a perfeição, um caso francês.


SURIN, Jean-Joseph (1963). Guide spirituel pour la perfection. Paris. Desclée de
Brouwer.

Um livro para conduzir a vida interior rumo à perfeição. Antes de tudo, cabe anotar a vida interior, ambiente aonde tudo deve se dar, num movimento explícito de separação e intimação da intimidade. Contemplação, possivelmente trazendo à vida em sua marca possível os elementos disponíveis na filosofia de Plotino. Eu realmente não sei. Este é um ambiente novo, devo confessar, sobre o qual devo ter lido meia dúzia de capítulos, quase todos eles escritos pelo mesmo historiador e teólogo que estabeleceu o texto que leio nesta edição, Michel de Certeau, o mesmo autor de La fable mystique, livro que servirá de guia para tudo o que poderei escrever por aqui. A mística católica, até aonde sei, é um universo. Em grande parte atacada e dissolvida por aquilo que frequentemente eu, na mais profunda ignorância, chamo de desencantamento, o movimento que diz respeito a esta zona de empobrecimento do imediato na relação com a Providência e o Amor. Ainda que a preguiça faça menção mais costumeira ao investimento ético protestante, a mística também sofre forte impacto causado por golpes racionalizantes dentro da igreja. Não digo que isto seja novidade, pois não é. Basta rememorar o que Weber anota sobre racionalização da teologia e instituição católicas (bem anotadas por Antônio Flávio Pierucci; Ronaldo Almeida me chamou a atenção para isto) e historiografia de Keith Thomas sobre o declínio da magia que cumpria parte significativa do universo simbólico-efetivo da vida cristã (e o artigo de Oscar Calavia Sáez foi quem me chamou a atenção isso anos antes de vir a me dedicar ao tema). Entendo que esta não é uma bibliografia exaustiva, longe disso. Mas ela é suficiente para que eu mesmo não me engane, não estou viajando por mares nunca dantes navegados. A bem da verdade, qualquer anotação que eu venha a redigir poderá, na melhor das hipóteses, ser o registro de minha iniciação na reflexão sobre a mística que, assim como venho fazendo com o espiritismo, compreende numa atividade pedagógica na qual eu faço o que me pedem para fazer com vistas em me responsabilizar pelos resultados. É então que leio no final do prefácio de De Certeau o que Nicolas Grou, emérito contemplativo do século XVIII francês, escreveu sobre o mode d’emploi[1] deste livro, que transcrevo porque é o que farei:

Quant à vous, si la lecture du Père Surin vous plaît, si vous prenez goût, je regarde cela comme une des plus grandes grâces que dieu puisse vous faire. Ses ouvrages vous apprendront en quoi consiste le vrais service de Dieu, la solide spiritualité et cette vie intérieure qui doit être l’âme de notre conduite. Vous me pourrez suivre de guide plus sûre et plus éclairé. Lisez-le lentement et, en quelque sorte, à long traits. Suspendez de temps en temps votre lecture pour donner lieu aux réflections et aux impressions de la grâce. »(1963 :61).

Ainda que atendendo a enunciados e premissas morais completamente diferentes, a recomendação é semelhante à que faz Roland Barthes com relação à máximas de La Rochefoucauld. Obviamente entranhado nas questões da estética e do prazer do texto, o que entra em questão é a chave de leitura que faz com que La Rochefoucauld seja o moralista interessante e o escritor aborrecido. E há um momento ótimo da manipulação da leitura, uma máxima moral por vez, com vistas em absorver o impacto da coisa escrita que, se diluída em uma leitura contínua lhe obriga a se perder em orientações sem saber sequer para onde se está indo. Orientação é coisa que se recebe aos poucos e, mais do que qualquer outra coisa, é o que se recebe quando é matéria da busca.  

O QUE É A PERFEIÇÃO?

Premier partie – Où sont traitées les choses qui concernent la perfection en général.

A leitura começa cínica. Não à moda de alguém dedicado ao estoicismo, mas a um leitor reducionista que logo sou. A perfeição – antes de buscar refletir sobre o que é a Perfeição – é fruto de um caminho árduo e penoso. E nisso a Queda se envolve por uma idéia de hábitos e habilles, haillons que envolvem a vida mundana naquilo que deve ser mudança radical daquele que virá a se dedicar ao Amor de Deus. Se há algum eco da teologia tomasina aqui, da qual nada conheço, podemos encontrar na via dolorosa da santidade que é se entregar na via da perfeição, exatamente porque ela é contrária à nossa natureza caída – e o é diferentemente em cada estado em que essa natureza se concretiza produzindo habitus, ou segundas naturezas. Sabendo haver uma única e mesma natureza humana, a soteriologia descrita por Surin aponta para aproximações que fazem daquele que buscam a vida na perfeição diferenças, digamos, de posição com relação à mesma perfeição. E isso em nada implica alterações com relação à natureza corrompida que faz com que o caminho da santidade seja sempre difícil e doloroso porque ele contradiz a natureza corrompida da humanidade. Ainda assim, e esta é a razão que permite que um manual como esse possa ter sido escrito, há coisas a fazer que aproximam a humanidade da graça. Há coisas a fazer, há caminhos. Não há garantias, tampouco métodos. Mas se a santidade é doce e agradável, sabemos porque ela fere a natureza que logo somos, que nos é devida. A todo o momento. E o guia deve ser, antes de mais nada, a orientação pela perseverança. Particeps in tribulatione et regno, em Apocalipse de João (1,9).
Não menos importantes são as figuras que introduzem ao reino da dor e, mais do que isso, ao desconforto frequente que o caminho da santidade deve causar. É como fazer adentrar um pobre que se encontra logo à porta e lhe oferecer uma nova roupa em um dia frio. Vestir-se com a nova roupa demandará se desnudar. Há o frio entre um velho e um novo hábito. Como entre os hábitos mundanos e os de santidade, cujo intervalo queima a pele. Mas a distinção, como quero mostrar não se dá por uma via qualquer. O exemplo do selvagem do Canadá é suficientemente claro para dizer que há posições com relação à santidade – ainda que um ato pura e simplesmente possa fazer ruir esta diferença, porque a danação espreita com um predador trazido pelo vento. A cena é a de um jovem selvagem que, levado para a corte, coube  então vesti-lo, então cobri-lo de novos e melhores hábitos. Nos termos de Surin,

S’il y avait quelque jeune enfant venu du Canada, nourri avec les sauvages et habitué à une forme de vie toute sauvage, qui néanmoins fût d’un beau naturel, il se pourrait faire qu‘un roi, voyant ce beau naturel, dirait qu’il se veut servir de cet enfant et l’avoir en sa cour. Il donnerait charge à quelque habile courtisan de le former et élever en telle sorte qu’il lui pût être agréable. Il est certain que cet enfant, au commencement et durant un long temps, aurait une grande peine. Ce courtisan qui lui aurait été donné pour maître, ne pouvant supporter ses façons de faire grossières, lui donnerait une grande g6ene et affliction, d’où arriverait que cet enfant serait souvent tenté de se dérober et de s’en retourner en son pays, comme vous avons vu un, en France, qui avait les livrées du roi, traité et nourri comme un domestique du roi ; néanmoins on le out jamais tenir qu’il ne s’en retournât à son ancienne façon de vie sauvage, si bien que depuis, retourné au lieu de sa naissance, mémoratif de ce qu’il avait appris, [il] retournait au quartier des Pères qui l’avaient baptisé, se confessait et communiait, puis retournait à sa façon de vie qu’il ne pouvait oublier. » (1967:68)

As vestimentas e os hábitos da corte lhe servem de polimento – exatamente porque é de hábito que a corte demande um comportamento polido – que, de qualquer maneira, demanda um comportamento contrário àquele que lhe é natural. A relação com a corte, aqui, merece o tipo de caução analítica que encontramos em trabalhos como os de Norbert Elias e de Roger Chatier na medida em que os hábitos de corte, especialmente já na altura do século XVII, se compunham de uma face difícil de digerir que diz respeito ao cultivo da hipocrisia quando os assuntos relativos à manutenção da persona cortesã se encontrava em jogo. Ainda que em nome da mentira, muitas vezes, os hábitos cortesãos – que são um exercício de poder-fazer – se alinham com uma premissa catequética, esta, no caso, sem se alinhar com a conduta de fato. Negar a natureza e afastar-se do estado da Queda, que é o estado originário, parece ser um fundamento bastante fluido a ponto de servir como elemento introdutório para um guia espiritual para a perfeição. Como disse, as observações começam cínicas, eivadas de sociologia. Não sei se isso terá função.



[1] Seria o La vie mode d’emploi de Georges Perec um catecismo? 

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