sábado, 11 de julho de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.

(retirado da tese de doutorado, recém-defendida. as remissões bibliográficas estão no vazio. lamento.)

(...) o crime contra a autoridade soberana não se limita mais ao núcleo detentor do poder, ao novo príncipe, mas é pouco a pouco ampliado para abranger todas aquelas ações que ameaçam a segurança e a prosperidade da sociedade e atacam suas ideologias fundamentais, como a propriedade.
Paolo Prodi, Uma história da justiça



            1 - França- 1789 segue sendo um marco inescapável ao imaginar a França moderna, especialmente quando o objeto do qual se trata não é a Revolução Francesa, o que faz da data um espectro permanente na imaginação a respeito do tempo francês. O processo revolucionário, que parte de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária do ano em questão, se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto em que o conceito de revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo normal próprio das órbitas celestes como em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006:63; Cohen, 1985), onde a revolução descreve um movimento cíclico, passa a significar a ruptura no tempo na forma de sua aceleração. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma outra revolução[1].
            Esta revolução nova conduzida pela evidente necessidade de uma reforma de Estado em fins dos século XVIII, necessidade reconhecida amplamente por grande parte dos diretamente envolvidos[2], tendo como primeiro ato revolucionário uma procissão que parte da Catedral de Nossa Senhora de Paris até a igreja de São Luís em Versailles. A ação revolucionária primeira cmo ato governamental acrescenta uma outra nota ao processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços. É a ação humana que ganha uma outra dimensão, se tornando portanto protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela mesma como objeto e meio da ação. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de rumos chegou ao ponto de alterar a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino. Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
            O que faço nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que faça expediente de algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário francês começa como um ato governamental para por fim mudar aquilo que significa governar pode ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia ainda assim é tentadora e, mais proveitosa. Obviamente que esta sugestão não pretende se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos processos históricos que afirma que um dado evento com as proporções da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência, e que, a depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida diferente. Suas origens culturais não coincidiriam, portanto, com suas origens sociológicas, tampouco intelectuais e muito menos, historiográfias, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha grosseria algo salutar porque boa parte das categorias e conceitos em movimento no período pós-revolucionário ressoarão mais adiante, cronologicamente, na forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos que parecem, por fim, generalizações de tomadas de decisão ou de projetos sustentados no seio do debate revolucionário. É o caso da sociologia, por exemplo (Wagner, 2000). O que estou dizendo é que, após a Revolução, a emergência do pensamento sociológico dificilmente poderia ser discriminado das reformas que se inserem como postulado para as políticas de Estado e governo, assim como a mudança nos fundamentos do que significa Estado e governar. É dessas reformas que grande parte de conceitos fundamentais se transformam em moeda corrente. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história moderna mas, repito, dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
            Visto de um ponto de vista não-especializado, o jogo de sucessivas reformas tem a aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar um obeto para então substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do Estado e seus demiurgos que, logo, transformam-se em biografias coletivas que atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua forja. Assim, o que dizer de posições como a da Coroa que caiu guilhotina abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão seria mesmo um termo adequado? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido ou, pelo menos, severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
            No documento da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790, a Igreja é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma fratura ainda maior e, convém lembrar, conduzida diversas vezes com grande violência durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando a prática do culto público, esta obsessão de Émile Durkheim (2000), sofrem golpes severo com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma linha a partir da qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso é uma atividade, quando não ilegal, é, dali por diante, extra-oficial, apenas reconhecida por lei. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da descrita?

            Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembléias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).

            Isto não quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz. No entanto algo peculiar tomou forma mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião oficial, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si dado que a partir do ato se tornaram equivalentes. Este gesto, repercutindo nesta escala, ainda que jurídico-teórico, produz uma certa indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos, caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.


[1]Em 1842, um erudito francês fez uma observação histórica de caráter bastante produtivo. Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que “revolução” se referia a um retorno, uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino da palavra e que conduzia de volta ao ponto de partida. Uma revolução significava então, primordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um movimento cíclico. Haréau acrescentou ainda que, no âmbito político, esse movimento circular fora entendido como círculo das constituições, segundo a doutrina de Aristóteles ou de Políbio e seus seguidores, mas que desde 1789, pela influência de Condorcet, não se podia mais compreendê-lo desse modo. Segundo a doutrina antiga, havia um número limitado de formas constitucionais, que substituíam alternadamente umas às outras, mas que, de acordo com sua natureza, jamais poderiam ser ultrapassadas por outras formas. Trata-se dos tipos constitucionais ainda correntes entre nós e de suas formas decadentes, que se seguem umas às outras de maneira quase obrigatória. Haréau cita Louis LeRoy como testemunha esquecida desse mundo passado. Para LeRoy, a primeira dentre todas as formas de governo era a monarquia, a qual, uma vez transmutada em tirania, era dissolvida pela aristocracia. Seque-se o conhecido esquema, segundo o qual a aristocracia transforma-se em oligarquia, deposta a seguir por uma democracia, a qual, por fim, degenera na forma decadente de uma olocracia, dominação pelas massas. Nesse ponto ninguém mais governa de fato, e o caminho para a dominação por um único indivíduo encontra-se novamente livre. Inicia-se o velho círculo. Trata-se aqui de um modelo de revolução que, em grego foi compreendido como metábole tôn politeiôn ou como nakyklosis tôn politeiôn  e que se nutria da experiência de que toda forma de convivência política é, por fim, limitada. Cada mudança conduz a uma forma de governo já conhecida, sob a qual os homens são obrigados a viver. Seria impossível romper com esse círculo natural.”(Koselleck, 2006:63-64)
[2] Nunca é demais lembrar que a Coroa e a Igreja são instituições diretamente envolvidas no processo revolucionário em seu primeiro momento.

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