quarta-feira, 1 de julho de 2015

A ESQUERDA NOS TERMOS DA DIREITA

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DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rocco. Rio de Janeiro. 2000.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Vozes. Petrópolis. 2013.

1- Louis Dumont escreve que, no que diz respeito às relações de oposição, complementares porque submetidas a uma hierarquia, demanda que os mesmos pares de oposição sejam postos segundo sua dada organização. Os opostos diferem em natureza, antes de mais nada, fazendo com que um dos termos seja determinado pelo outro par, superior. Nisso, à luz de seu Homo Hierarquicus, "uma vez atribuídas certas funções à mão esquerda, a mão direita, embora mantendo-se superior no conjunto, será secundária quanto ao exercício dessas funções". A proposição é, a seu modo, tomista. Ele mesmo deixa anotado em uma nota de rodapé, a de número 33 do ensaio sobre o valor nos modernos e nos outros. Disto segue a passagem que afirma, seguindo o diagnóstico do desencantamento, ou desvalorização do mundo, perpetrada pelos modernos que:

"A questão dá-nos também uma indicação quanto ao modo como nós, modernos, conseguimos esvaziar a ordem em que as coisas são dadas. Com efeito, não deixamos de ter uma de ter uma mão direita e uma esquerda, e de estar relacionados com o nosso corpo, assim como com outros todos. Mas nos tornamos tolerantes em relação aos canhotos, de acordo com o nosso individualismo e desvalorização das mãos." (Dumont, 2000:256)

            Que me seja perdoado omitir quaisquer considerações da coincidência brutal - e talvez concreta - do que Dumont chama de moderno com o que é reconhecível como liberal, posto em termos muito próximos de François Guizot, por exemplo. E também me omito a respeito de como a caracterização dos modernos, em uma série de afirmações desdobradas de estudos de caracterologia, mesmo que oriundos da matriz ortodoxa de Clyde Kluckhohn, se fia naquilo que os modernos dizem fazer e, em nada naquilo que os modernos (liberais, sejamos claros) fazem fazer. O que é, para mim, digno de nota, é como a tábua de salvação deste argumento no que diz respeito ao seu componente ético - e que encontra eco exatamente no desespero de Leszek Kolakowski - reside na especificidade moderna da tolerância com a mão esquerda que, compreendamos, viria por terra se a mão esquerda viesse a transformar as regras da oposição. Nada garante, na verdade, bem ao contrário, que a mão direita seja alvo do exercício de uma tolerância qualquer.
            O problema é que a tolerância, tal como expressa, é em si a própria negação de coetaneidade (Fabian, 2013). E talvez esta seja uma forma de rediscutirmos o ensaio denso e cheio de implicações de Louis Dumont que é, antes de mais nada, um elogio do liberalismo como ponto arquimediano do procedimento comparativo posto como o miolo da exceção moderna que, dentre as diversas características, exerce tolerância na aplicação dos valores. 

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