domingo, 23 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma da religião.


COHEN, Bernard Jerome. Revolution in Science. Belknap/Harvard. Londres/Cambridge. 1985.
COUSIN, Bernard; CUBELLS, Monique; MOULINAS, René. La pique et la croix: histoire religieuse de la Révolution Française. Centurion. Paris. 1989.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. Londres.1990 [1913].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro. Contraponto. 2006. 


1- 1879 segue sendo um marco inescapável. O processo revolucionário que parte de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária (budgetaire) se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto que o conceito de revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo normal própria das órbitas celestes, por exemplo em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006; Cohen, 1985) em que a revolução se dá quando a trajetória percorrida pelos astros e a retomada em um espaço arbitrariamente definido como Delta Zero marca a presença de um mesmo astro em t=2, isto é, num segundo momento – com o perdão da notação newtoniana. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma outra revolução.
            Esta revolução nova parece acrescentar uma outra nota ao processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços, mas a ação humana que assume uma outra dimensão, propriamente humanista e portanto protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela mesma. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de rumos alterou a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino – da perfeição à perfetctibilidade, por exemplo. Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
            O que faço nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que tenha como ponto de partida algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário francês começa como um ato governamental para, por fim mudar aquilo que significa governar, parece ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia, ainda assim, parece tentadora. Obviamente que esta sugestão não pretende se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos processos históricos que afirma que, por fim, um dado evento com as proporções da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência e que a depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida diferente. Suas origens culturais não seriam, portanto, suas origens sociológicas, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha grosseria algo interessante porque boa parte das categorias nativas em movimento no período pós-revolucionário ressoarão no pensamento sociológico na forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos. O que estou dizendo é que após a Revolução dificilmente o pensamento sociológico poderia ser discriminado das reformas que se inserem como postulado das políticas de Estado. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história moderna, mas, repito que dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
            Visto de um ponto de vista não-especializado o jogo de sucessivas reformas tem uma aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar para então substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do Estado e seus demiurgos que logo se transformam em biografias coletivas que atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua forja. Assim, o que fazer com deposições como a da coroa que caiu guilhotina abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido ou pelo menos severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
            No documento da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790 a Igreja é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma fratura ainda mais agressiva e, convém lembrar, diversas vezes criminosa durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando as raízes do culto sofrem golpes com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma fronteira na qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso é uma atividade, quando não ilegal, dali por diante extra-oficial. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da descrita? Porque é preciso destacar um ponto importante:

            Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembleias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).

            Isto não quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz, mas que se formou algo peculiar mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião oficial – e uma das razões de ser da crise econômica, vale lembrar -, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si dado que equivalentes. Este gesto, nesta escala, produzia uma certa indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.

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