AGAMBEN, Giorgio. O
sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011.
DURKHEIM, Émile. Lições
de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The
golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia
e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].
6- Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o
acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e
precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço
para as variações temáticas das representações coletivas que tem como
fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é
uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem
defendeu em A divisão do trabalho social
e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as
corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E
o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida
diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa, se encontra no exercício da
sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do
Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do
individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade
de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua
sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:
“A verdade é que o Estado não é por
si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio
dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas.
Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu
a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o
cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi ele que livrou o operário e o patrão da
tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só
é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que
justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do
Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à
administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o
dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida
coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)
Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como
forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das
condições de vida – connatus sociológico-
, a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito
tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na
polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse
fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos
modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa
senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio
feito de forma blasé articulado na
expressão c’est pas mal. Um elogio
contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação
como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos
por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela
qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é
uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um
desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo
coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato
criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato;
mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no
exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do
universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos
costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano,
não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em
investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre
tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária
francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social
humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo,
igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das
“distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião”
e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo,
ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis
Gernet disserta sobre pre-droit como
fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação
futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).
“O caso de Mauss constitui um bom
exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente,
embora venha a ser, pelo menos em parte, neutralizada pela atenção especial
dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma
tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à
técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a
análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos
juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim,
Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição
polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do
sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de
indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O
resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos
mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo
principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a
tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se
situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)
O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de
mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a
diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica
que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação
pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre
tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo
determinações específicas. Assim, mágico
é o indivíduo que efetua mágicas; representações
mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia
algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do
ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo
Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas
nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:
“Nas técnicas, o efeito é concebido
como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da
coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir
imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz
partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes
depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos
efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é
que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as
observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças
ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos,
os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os
gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial,
diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)
Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o
mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir
administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que,
como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na
correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase
escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento
propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada.
Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as
mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não
a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações
entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim
como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um
antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário