domingo, 17 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

 AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011. 

DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].


6-  Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço para as variações temáticas das representações coletivas que tem como fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem defendeu em A divisão do trabalho social e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa,  se encontra no exercício da sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:

A verdade é que o Estado não é por si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas. Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi  ele que livrou o operário e o patrão da tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)

Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das condições de vida – connatus sociológico- , a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio feito de forma blasé articulado na expressão c’est pas mal. Um elogio contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato; mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano, não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo, igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das “distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião” e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo, ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis Gernet disserta sobre pre-droit como fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).

O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente, embora venha a ser, pelo menos  em parte, neutralizada pela atenção especial dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)

O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo determinações específicas. Assim, mágico é o indivíduo que efetua mágicas; representações mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:

Nas técnicas, o efeito é concebido como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)

Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que, como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada. Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.

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