quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.



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É inútil, contudo, reagir a Frazer repetindo a milonga da ignorância, dizer que ele não sabe do que é que está falando quando reduz à mera superstição a quase totalidade daquilo que ele chama de teoria da magia – isso Wittgenstein o fez com rendimento superior ao que eu poderia fazer. E no meu caso, fazê-lo implicaria em repetir Frazer naquilo que ele tem de menos admirável e redutor, o que é seguramente a forma mais fácil de transformá-lo na figura ilegível para a qual Marilyn Strathern chama a atenção, quando os modernos se convertem nos selvagens de todos aqueles que finalmente os teriam superado. O que me parece mais exato é recuperar uma dimensão específica que não redime a antropologia vitoriana de nenhum de seus pecados, mas que talvez possa sugerir um percurso que os façam um tanto quanto menos selvagens, menos ainda que os selvagens dotados do barbarismo da superstição. Se me for permitido reduzir O ramo de ouro a uma só intenção eu gostaria de dizer que se trata de um enorme esforço, quase que desproporcional, em contar uma história. Só uma. E que, para tal, será preciso confundi-la com a história da humanidade, sua história original. Eis um motivo adequado para fazer viver o ato da magia que faz indistintos o original e a cópia senão por uma investigação severa de evidências circunstanciais. O ramo de ouro, o mais longo tratado pericial de ciência criminal da antropologia moderna. E como todo exercício do gênero, é necessário desconfiar daquilo que diz seu informante, mesmo que ele seja Ovídio, Virgílio ou Pausânias. É nesta hora que percebemos que o informante, ainda que não necessariamente para o caso presente, é sempre um suspeito. Um suspeito em potencial. E aqui encontramos uma entrada forte para o problema do ato ritual com relação aos mitos narrados; sobre o valor do ato mágico contraposto à teoria da magia; e, no meu caso, porque a metodologia se mistura, na confusão entre figura e fundo, com a história que se conta.  O que se diz deve ser lido à luz daquilo que se faz – forma peculiar da longa tradição que distingue dizer do fazer.
Aqui, contudo, parece que cometo um equívoco dos mais graves. Porque o objeto em questão são histórias de origem de costumes e ritos, o que está muito bem distribuído por quase toda a extensão da história das religiões comparada, seja fundada no teísmo, na fé ou mesmo na filogênese formal das instituições. Comparar estas historias de origem com um procedimento criminal parece abusivo, ainda que feito a partir dos escritos de Hocart, quem flerta com esta analogia sem pudor algum. Parece dizer que as histórias de origem são por fim, histórias de assassinato. Não sei se poderia chegar neste ponto, ainda que o ato historiográfico moderno por excelência, o mesmo ressaltado por Jules Michelet nas primeiras páginas de sua Histoire de la Révolution Française e reiterado à primeira oportunidade, seja a conversação com mortos mediante os meios disponíveis. A mera morte de outrem não permite deduzir seu assassinato da mesma forma que não é possível simplesmente confundir assassinato com origem, não porque o assassinato não seja um excelente ponto de partida para uma história mas porque a origem não precisa advir do fratricídio. Há histórias que começam com o mais surdo golpe de um fiat, um mero acontecimento. A morte é um deles.

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