quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

DAGOGNET, François. Philosophie de l’image. J. Vrin. Paris. 1986.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan.1990 [1913].
KAFKA, Franz. Um médico rural. Brasiliense. São Paulo. 1993.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. 2003 [1950].
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Routledge. Nova York. 1993.

3-
As histórias que Taussig narra; e no final das contas trata-se de uma colagem algo dadá de narrativas em que o tema da semelhança toma forma replicando de alguma forma o método de retirar do contexto e fazer valer a relação por algum meio em que seja possível fazer viger a semelhança. É uma arte da magia que, contudo, trata Frazer como remanescente de outra coisa cujas ruínas, na verdade traços no papel, permitem outra forma de aceder ao selvagem, tão ambíguo quanto o sacerdócio praticado em Nemi. Selvageria delicada de uma história particular que não cessa de produzir transportes entre o selvagem e o civilizado que, numa variação da história natural humana faz da animalidade uma forma de narrá-la. Afinal, selvagem mesmo que vitoriano, humano. O chimpanzé de Um relatório à academia, de Franz Kafka é talvez o símbolo perfeito para este outro passo rumo a uma teoria da magia que não abre mão da história natural, ainda que seja de um tipo particular – em primeira pessoa, o chimpanzé já não é mais macaco mas ainda se lembra que, de alguma forma, o foi. O macaco se foi para que pudesse, todavia, ser lembrado nessa variação individuada da seleção natural em que o que resta como memória é, sugestivamente, o tendão de Aquiles.

Falando francamente – por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas – falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está diante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra – do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.” (Kafka, 1991:58)

Esta não é uma história natural avant la lettre. E como epígrafe que é para Mimesis and alterity, não é exatamente o bucolismo de Virgílio. Contudo, parece nos transportar para o mesmo lugar, caso consideremos que lugar aqui não é meramente paisagem. É um meio.
O macaco apelidado de Pedro Vermelho por causa do primeiro tiro que levou ao ser capturado, que lhe deixou uma cicatriz vermelha numa das maçãs do rosto. Gostaria de dizer que a fotografia captura a imagem de forma similar, mas ainda estamos num reduto particular de uma certa história natural, a dos sentidos. Ainda que trágica em diversos de seus contornos, e a captura do chimpanzé em vias de deixar de ser macaco é um destes desdobramentos, a unidade antropológica não deixa de assumir um caráter ridículo a partir do qual desenha-se o motivo de que toda antropologia é redigida com mãos de comediógrafo, ou cede a tentação teológica. Pedro Vermelho, que detesta ser chamado assim -  o tiro marcara sua pele de vermelho para sempre – é muito claro ao dizer que a viagem feita no cargueiro da companhia Hagembeck, que muito bem poderia ter no convés uma personagem de Joseph Conrad aguardando a aparição de um cúmplice secreto; mais especificamente, que a viagem feita no caixote é, tal como ele se lembra, o momento decisivo em que deixara de ser macaco.

Sobrevivi a esses tempos. Surdos soluços, dolorosa caça às pulgas, fatigado lamber de um coco, batida no crânio na parede do caixote e mostrar a língua quando alguém se aproximava – foram essas a primeiras ocupações da minha nova vida. Em tudo porém apenas um sentimento: nenhuma saída. Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a verdade de símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe – quanto a isso não há dúvida.” (Kafka, 1993:60)

A busca pela saída do caixote não significava, contudo, busca da liberdade. Esta confusão não pode ser feita pois deixaríamos de prestar atenção naquilo que distingue o chimpanzé dos humanos que logo mais ele veria, especialmente no ambiente circense – a forma particular de nos exibirmos juntos a outros tantos animais encaixotados que, parece, acedem a um nível de relação humano que faz arrastar uma sorte de calcanhar de Aquiles da semelhança. Não se imagine contudo, mais uma vez, que o tema da saída é o mesmo da liberdade. Este erro nos faria cair no ridículo.

Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei conhecimento com pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz respeito, eu não exigia liberdade nem naquela época, nem hoje. Dito de passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais sublimes, também o ludíbrio correspondente figura entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha entrada em cena, um ou outro par de artistas às volts com os trapézios lá do alto junto ao teto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano”. Ó derrisão da sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria de pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso.” (Kafka, 1993:61)

Não nenhuma saída moral, metafísica, saída que buscava era de ordem psicomotora. Não se entenda, todavia, tratar-se de fuga. A saída fora imitar os homens do barco produzindo uma sorte de solução em que a relação com o original se perde. Um macaco imitando um homem é, mais uma vez, uma forma de borrar a indistinção confundindo formas de anterioridade; o macaco que imita o homem é, por sua vez, seu ancestral e, de alguma forma, provavelmente filogenética, é sua imitação. Nesta que é uma história particular dos sentidos, a mimesis é um problema que se enquadra nas digressões da história natural. Não em geral, mas uma particular – aquela em que o macaco que toma aulas de humanidade com humanos, e os imita com vistas na saída do caixote, infecta os humanos com sua imitação tentando-os a voltarem a ser macacos. Tudo muito confuso, muito arriscado. Não é por acaso que o platonismo, identificado grosso modo por François Dagognet (1986), suspeita tão abertamente dos artifícios da semelhança que, por via das dúvidas se aplica na censura aos poetas e, mais adiante, aos selvagens e seus ares pagãos cheios de sensualidade. Melhor não. Muita tentação.
A idolatria da imersão na mímesis tem em Michael Taussig um outro capítulo em que a magia simpática, com relação à qual proliferam remissões ao passado arruinado da antropologia de James George Frazer, converte o humano em macaco. Não qualquer macaco, mas aquele que vê as coisas mais engraçadas sendo feitas em nome da liberdade. É o homem branco quem é convertido em formas artesanato Cuna[1], história esta que se desdobra em inúmeras outras histórias cujo contexto é a mera convertibilidade de uma história em outra pela analogia que o contato entre elas produz. Obviamente que não é qualquer contato que entra em questão, mas os dotados de poder suficiente para estabelecer o tipo de semelhança que reitera a diferença entre os termos com poder ainda maior. O poder da evocação da semelhança, e da provocação de semelhança, dada a censura platônica perene e seu poder teológico, não poderia ser de outra ordem que não da magia, o que de outra forma não senão uma concepção mais apurada e detalhista de difusão. E dentre outras coisas é O ramo de ouro, de Frazer, que Taussig difunde:

I am well aware that mimesis, or at least the way I am using it, is starting to spin faster and faster between opposed yet interconnected meanings, and yet I want to push this instability a little farther by asking you to observe the frequent interruptions and asides, changes of voice and reference, by which this text on the Emberá, so manifestly a text about us too, breaks up intimations of seamless flow that would immunize mimetic representation against critique and invention. Didn’t Valentin say – indeed make quite a point of it, when you consider his short and concise description – that the captain of the modelboat had neither had neither head or neck, and that one of the crewmen had no feet? With this replica of the boat and its gringo spirit crew we have mimesis based on quite imperfect but nevertheless (so we must presume) very effective copying that acquires the power of the original – a copy that is not a copy, but a “poorly executed ideogram”, as Hneri Hubert and Marcel Mauss, in the early twentieth century, put it in their often critical discussion of Frazer’s theory of imitation.” (Taussig, 1993:17).

Os barcos em questão dizem respeito ao ensaio de Stephanie Kane sobre o “efeito MacArthur” entre os Chocó em dissertação defendida em 1986, em Austin, Texas (USA); pesquisada na península Daríen, no Panama durante os anos 1980. Valentin é um índio chocó quem conta uma história de sua infância em que seu avô, seu tio Bernabé e ele, quando próximos da ilha Encantamento rumo ao rio Congo, avistaram um barco cheio de homens brancos o qual tentaram alcançar à canoa, no que não conseguiram. Em meio ao rastro do odor de gasolina, o avô, que era um xamã, decide voltar porque o barco não era outra coisa senão coisa do diabo. Então, eu estou contando a edição de Taussig, que conta a história da história contada por Kane. Difundimos na esperança de que o ato narrativo carregue consigo semelhança, a mesma que, em um momento fortuito, seja possível reconhecer a mesma história quando em contato com uma outra fonte que não faça parte desta cadeia – como seria a versão vista desde fora do barco que carregava o macaco Pedro Vermelho; e o rio Congo ficasse do outro lado do Atlântico. No Congo.

A história de Valentin segue no curso em que o adoecimento dos três chocós a partir do que o avô, xamã, captura a imagem do barco cheio de gringos em uma miniatura em que o capitão não tem cabeça ou pescoço e sua tripulação, não tem pés. Muito fácil transportar esta história para o português e ter um acesso materialista dos mais agressivos que afirma que histórias de magia, de fantasma, etc., são por fim, sem pé nem cabeça. Que sejam, este não é o ponto. Muitas histórias não tem cabeça, como a da Revolução Francesa, e fazem muito sentido. As que não tem pés são mais raras. E todavia, este é o tipo de história que preenche dois volumes inteiros de um livro que se impôs como um clássico da antropologia social moderna. Na verdade, dois. Hubert & Mauss são difusores de Frazer e igualmente praticantes da arte de contar histórias fora de contexto.


[1] The problem that I want to take up concerns the wooden figurines used in curing. Cuna call them nuchukana (pl.; nuchu, sing.), and in Nordenskiold and Pérez text I find the arresting claim that “all these wooden figures represent European types, and to judge by the kind of clothes, are from the eighteenth and possibly from the seventeenth century, or at least have been copied from old pictures from that time”.” (Taussig, 1993:03).

Nenhum comentário: