Tudo o que eu
posso dizer a esta altura é que não é difícil antecipar, tendo em vista as
grossas camadas de acontecimentos futuros sob os quais nos abrigamos quando nos
sujeitamos a uma viagem. A antecipação pode ser tão precisa que eu, a esta
altura da vida, ainda me permito escrever sobre isto na primeira pessoa do
plural, imaginando poder implicar você, leitor em cada uma das possibilidades
que eu poderia aventar. A viagem não é, se assim posso dizer o território do
desconhecido para aonde saltamos com vistas no simplesmente irreconhecível. A
viagem parece se justificar enquanto tal porque dela antecipamos alguma coisa,
nos adiantamos de alguma forma e a felicidade está em termos nos tornado
recipientes adequados para um dado contínuo de experiências. O destino e os
meios empregados para viajar, o que se dispõe a fazer, a forma como se deixa
guiar pelas pessoas que trava contato parecem desenhar aquilo que é o próprio
sistema de crédito da viagem. Assim, voltar doente de uma viagem que contou com
um período de imersão em condições mais inóspitas, mas não se adoecer em
nenhuma situação de risco real durante a viagem pode ser, e no caso é uma das
condições de sucesso e felicidade. Ir a um hospital após o retorno à casa e
tomar algo de intravenoso pode ser aquilo que se espera, um dos objetivos para
se ter viajado. E não se trata de nenhuma sorte de masoquismo, pois o mal-estar
e a dor podem ser decididamente desagradáveis, mas é uma questão de lucidez,
antecipação. Há coisas para as quais não estamos preparados e, ao nos
prepararmos para tal acabamos nos sujeitando aos custos de viajar e, aceitando
o preço que se paga admitimos que antecipar não significa ter como lidar com
tudo como se fosse rotina. Antecipação não é, em hipótese alguma normalização.
É assim que viajar pode ser, ao mesmo tempo previsível e extraordinário.
“Sabe, rapaz,
que este plebiscito é um equívoco. Dividir o estado do Pará deste jeito,
criando os estados do Tapajós e do Carajás, é um equívoco. O rio Amazonas não
pode servir de fronteira. O Amazonas não é uma fronteira. É um rio que é um
mar. Não se atravessa o Amazonas. Se atravessa no Amazonas. Espero que entenda
isso. Ouvi muitos rapazes que, assim de sua idade jogaram no rosto das
autoridades toda uma série de equívocos a respeito deste plebiscito, de como
favoreceria mineradoras e usinas hidroelétricas. Entenda, rapaz, que qualquer
processo decisório que entenda o Amazonas como fronteira está fadado ao
fracasso. Porque, entenda, e você que está viajando irá perceber como as coisas
são por aqui. Te disseram para ir a Cotijuba. Eu nunca vou a Cotijuba.
Recomendo que vá mais adiante, conheça Mosqueiro. É lindo, uma delícia, com
casas de veraneio maravilhosas. Não tem essa coisa toda daqui... porque eu não
posso andar a pé por Belém. Velho, você sabe como é. Posso precisar andar um
quarteirão que seja, coisa pouca que logo vem alguém e, bem... Mas vá a
Mosqueiro. Uma beleza. Porque tem muita coisa nova acontecendo, lugares novos
surgindo. Finalmente parece que o Pará está se movendo para alguma direção.
Dinheiro está aparecendo depois de muito tempo, e sempre que o tivemos...
nossos políticos são muito ruins. Não houve jeito. Políticos muito ruins e
quando se extrai alguma coisa daqui, não fica nada. Leva-se tudo. O Pará nunca
ficou com nada. Parece que estão revendo isso, mas desde a história coma
borracha, a mineração, o Pará nunca fica com nada. Tivesse ficado com alguma
coisa, estaria em outra situação. Mas tem coisas novas aí, com essa mudança de
rumos, com os pobres comprando mais, com essas hidroelétricas. Se você vai à
Altamira, pegue a estrada. Mas não vá dirigindo, porque é uma estrada muito
traiçoeira. Muita gente fica presa sem ter como sair, por dias porque vai
dirigir, segue apressado e mesmo na seca, é pega de surpresa pela poeira.
Quando chove, é o atoleiro. Mas se faz sol, é a poeira. O carro atola do mesmo
jeito. Meu filho, que é médico em Tucuruí vai dirigindo, mas até Tucuruí a
estrada está boa. E a cidade está uma maravilha, depois da usina, que nem
parece uma cidade amazônica. O mesmo vai acontecer com Altamira.”
No que Alípio
cuspiu, discretamente meu último osso, dizendo que tinha que partir, pois conduziria
o gerente do restaurante onde estávamos para um outro restaurante, o que se
abrigava sob o teto de um dos inúmeros redutos da família Yamada.
Dormi com a possibilidade de que Altamira não seria mais uma cidade amazônica. Aquilo calou fundo, a
idéia de que, tal como me disse Alípio, o sul do Pará eliminavaa, feliz e lentamente as cidades amazônicas.
Entenda-se que não tinha idéia do que aquilo significava, mas imaginar uma
situação como essa não é muito diferente da de imaginar uma cidade japonesa em
plena floresta. Vale dizer que Alípio não disse nada semelhante a respeito de
Tomé-Açu não ser uma cidade característica das bandas de cá. Pelo contrário, a
cidade parece assentar muito bem na forma histórica de acomodação de espaços da
região. Ainda assim, tudo o que pude fazer para me orientar na imagem que eu
teria de Tucuruí constituía a imagem de uma cidade com ruas bem desenhadas,
limpas, com ônibus seguindo seu itinerário com calam e regularidade, enquanto
pessoas seguiam suas vidas em relativo silêncio e resignação, adequadas a um
princípio austero de prosperidade. A negação de uma cidade amazônica, na minha
cabeça e na de Yuto era, na verdade uma cidade japonesa. Para ser o que ouvi,
Tucuruí precisaria ser Tomé-Açu. E isso, obviamente não poderia ser. Minha
cartografia estava tomada por completo por um grande sistema de erros
minuciosamente elaborado.
Alípio se
levantou com dificuldade, após a longa introdução ao estado do Pará que motivou
muita de sua conversa, sua forma de me fazer companhia. Tucuruí vinha bem
porque se destacava das demais cidades. Menos amazônica. Quando de pé, Alípio
me estendeu a mão direita, no que respondi pondo-me de pé e cumprimentando-o,
grato pela conversa. Disse que partiria também, porque estava tarde e deveria
voltar até o hostel a pé. Foi quando nos separamos. Alípio ficou sem reação,
seu rosto se manifestava incrédulo, sua boca se contorceu em reprovação. Tinha
falado com a pessoa errada, o tempo todo. Tudo o que disse depois não pode ser
descrito de outra forma senão como uma linha cruzada, uma conversa confidencial
entre agentes que trabalham em casos diferentes e que se encontram, por engano
na mesma mesa. Toda a conversa, cifrada parece indicar que seu interlocutor é
quem deveria ser, um informante ou um contato. Nada durante toda a conversação
entrega o que só é revelado por um ato falho na última frase dita. Um não era
quem o outro pensava. Alípio fora traído.
Eu? Eu não.
Belém sequer existia para mim senão como uma memória desagradável. Ninguém
existia, até então, senão uma cortina de fumaça enorme e persistente. Caminhei
lentamente, dando voltas entre quarteirões, costurando ruas, obedecendo a
recomendação que meu amigo de angola, Eduardo Lourenço tinha me dado: nunca
voltar pelo caminho que veio. Há sempre um inimigo lhe esperando por onde você
partiu.
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