sexta-feira, 9 de março de 2012

Hiléa:Altamira, no Pomme D´Or II


Tudo o que eu posso dizer a esta altura é que não é difícil antecipar, tendo em vista as grossas camadas de acontecimentos futuros sob os quais nos abrigamos quando nos sujeitamos a uma viagem. A antecipação pode ser tão precisa que eu, a esta altura da vida, ainda me permito escrever sobre isto na primeira pessoa do plural, imaginando poder implicar você, leitor em cada uma das possibilidades que eu poderia aventar. A viagem não é, se assim posso dizer o território do desconhecido para aonde saltamos com vistas no simplesmente irreconhecível. A viagem parece se justificar enquanto tal porque dela antecipamos alguma coisa, nos adiantamos de alguma forma e a felicidade está em termos nos tornado recipientes adequados para um dado contínuo de experiências. O destino e os meios empregados para viajar, o que se dispõe a fazer, a forma como se deixa guiar pelas pessoas que trava contato parecem desenhar aquilo que é o próprio sistema de crédito da viagem. Assim, voltar doente de uma viagem que contou com um período de imersão em condições mais inóspitas, mas não se adoecer em nenhuma situação de risco real durante a viagem pode ser, e no caso é uma das condições de sucesso e felicidade. Ir a um hospital após o retorno à casa e tomar algo de intravenoso pode ser aquilo que se espera, um dos objetivos para se ter viajado. E não se trata de nenhuma sorte de masoquismo, pois o mal-estar e a dor podem ser decididamente desagradáveis, mas é uma questão de lucidez, antecipação. Há coisas para as quais não estamos preparados e, ao nos prepararmos para tal acabamos nos sujeitando aos custos de viajar e, aceitando o preço que se paga admitimos que antecipar não significa ter como lidar com tudo como se fosse rotina. Antecipação não é, em hipótese alguma normalização. É assim que viajar pode ser, ao mesmo tempo previsível e extraordinário.

“Sabe, rapaz, que este plebiscito é um equívoco. Dividir o estado do Pará deste jeito, criando os estados do Tapajós e do Carajás, é um equívoco. O rio Amazonas não pode servir de fronteira. O Amazonas não é uma fronteira. É um rio que é um mar. Não se atravessa o Amazonas. Se atravessa no Amazonas. Espero que entenda isso. Ouvi muitos rapazes que, assim de sua idade jogaram no rosto das autoridades toda uma série de equívocos a respeito deste plebiscito, de como favoreceria mineradoras e usinas hidroelétricas. Entenda, rapaz, que qualquer processo decisório que entenda o Amazonas como fronteira está fadado ao fracasso. Porque, entenda, e você que está viajando irá perceber como as coisas são por aqui. Te disseram para ir a Cotijuba. Eu nunca vou a Cotijuba. Recomendo que vá mais adiante, conheça Mosqueiro. É lindo, uma delícia, com casas de veraneio maravilhosas. Não tem essa coisa toda daqui... porque eu não posso andar a pé por Belém. Velho, você sabe como é. Posso precisar andar um quarteirão que seja, coisa pouca que logo vem alguém e, bem... Mas vá a Mosqueiro. Uma beleza. Porque tem muita coisa nova acontecendo, lugares novos surgindo. Finalmente parece que o Pará está se movendo para alguma direção. Dinheiro está aparecendo depois de muito tempo, e sempre que o tivemos... nossos políticos são muito ruins. Não houve jeito. Políticos muito ruins e quando se extrai alguma coisa daqui, não fica nada. Leva-se tudo. O Pará nunca ficou com nada. Parece que estão revendo isso, mas desde a história coma borracha, a mineração, o Pará nunca fica com nada. Tivesse ficado com alguma coisa, estaria em outra situação. Mas tem coisas novas aí, com essa mudança de rumos, com os pobres comprando mais, com essas hidroelétricas. Se você vai à Altamira, pegue a estrada. Mas não vá dirigindo, porque é uma estrada muito traiçoeira. Muita gente fica presa sem ter como sair, por dias porque vai dirigir, segue apressado e mesmo na seca, é pega de surpresa pela poeira. Quando chove, é o atoleiro. Mas se faz sol, é a poeira. O carro atola do mesmo jeito. Meu filho, que é médico em Tucuruí vai dirigindo, mas até Tucuruí a estrada está boa. E a cidade está uma maravilha, depois da usina, que nem parece uma cidade amazônica. O mesmo vai acontecer com Altamira.”

No que Alípio cuspiu, discretamente meu último osso, dizendo que tinha que partir, pois conduziria o gerente do restaurante onde estávamos para um outro restaurante, o que se abrigava sob o teto de um dos inúmeros redutos da família Yamada.

Dormi com a possibilidade de que Altamira não seria mais uma cidade amazônica. Aquilo calou fundo, a idéia de que, tal como me disse Alípio, o sul do Pará eliminavaa, feliz e lentamente as cidades amazônicas. Entenda-se que não tinha idéia do que aquilo significava, mas imaginar uma situação como essa não é muito diferente da de imaginar uma cidade japonesa em plena floresta. Vale dizer que Alípio não disse nada semelhante a respeito de Tomé-Açu não ser uma cidade característica das bandas de cá. Pelo contrário, a cidade parece assentar muito bem na forma histórica de acomodação de espaços da região. Ainda assim, tudo o que pude fazer para me orientar na imagem que eu teria de Tucuruí constituía a imagem de uma cidade com ruas bem desenhadas, limpas, com ônibus seguindo seu itinerário com calam e regularidade, enquanto pessoas seguiam suas vidas em relativo silêncio e resignação, adequadas a um princípio austero de prosperidade. A negação de uma cidade amazônica, na minha cabeça e na de Yuto era, na verdade uma cidade japonesa. Para ser o que ouvi, Tucuruí precisaria ser Tomé-Açu. E isso, obviamente não poderia ser. Minha cartografia estava tomada por completo por um grande sistema de erros minuciosamente elaborado.

Alípio se levantou com dificuldade, após a longa introdução ao estado do Pará que motivou muita de sua conversa, sua forma de me fazer companhia. Tucuruí vinha bem porque se destacava das demais cidades. Menos amazônica. Quando de pé, Alípio me estendeu a mão direita, no que respondi pondo-me de pé e cumprimentando-o, grato pela conversa. Disse que partiria também, porque estava tarde e deveria voltar até o hostel a pé. Foi quando nos separamos. Alípio ficou sem reação, seu rosto se manifestava incrédulo, sua boca se contorceu em reprovação. Tinha falado com a pessoa errada, o tempo todo. Tudo o que disse depois não pode ser descrito de outra forma senão como uma linha cruzada, uma conversa confidencial entre agentes que trabalham em casos diferentes e que se encontram, por engano na mesma mesa. Toda a conversa, cifrada parece indicar que seu interlocutor é quem deveria ser, um informante ou um contato. Nada durante toda a conversação entrega o que só é revelado por um ato falho na última frase dita. Um não era quem o outro pensava. Alípio fora traído.

Eu? Eu não. Belém sequer existia para mim senão como uma memória desagradável. Ninguém existia, até então, senão uma cortina de fumaça enorme e persistente. Caminhei lentamente, dando voltas entre quarteirões, costurando ruas, obedecendo a recomendação que meu amigo de angola, Eduardo Lourenço tinha me dado: nunca voltar pelo caminho que veio. Há sempre um inimigo lhe esperando por onde você partiu.

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