terça-feira, 6 de março de 2012

Hiléia:Altamira; no Pomme D´Or I


Não é por causa do cartão de visitas que eu voltei. Creio, inclusive que em lugar nenhum o tenha feito. As redondezas que compõem o cenário de Montserrat e San Juan, em Buenos Aires não são os mais convidativos. A vizinhança de oficinas mecânicas também não me ajudou a esperar o melhor quando cheguei de táxi ao hostel. Não demorou até que o taxista fizesse uma recomendação das mais eficazes. Tome cuidado, preste atenção, eres turista que sale de un hostel. A prescrição requisita do viajante mais afoito alguma atenção, o que exige que caia em ouvidos atentos. Ouvi, ainda que convencido da idéia de que bastaria me comportar como morador da cidade do Rio de Janeiro e nada de muito grave poderia me acontecer. Estava em casa. A sujeira enegrecida da fachada, as grades nas janelas e as rachaduras nas paredes, não impediram grande coisa. A recepção em Boa Vista não foi menos interessante. Sempre de madrugada, cheguei à capital de Roraima desesperado por uma noite de sono. A rampa desastrada na calçada do hotel repetia uma certa cena que já tinha testemunhado em Belém no ano anterior, coisa que jamais entenderei: a onipresença dos azulejos, inclusive em calçadas.

Assinei o livro de registros, que então são apelidados de check-in e segui ao quarto. Abri a porta ligeiramente miserável para que me visse interrompendo, sem mais, a festa de duas baratas. Nuas. Desavergonhadas. Quase pude decifrar um grito de surpresa. Invariavelmente, sempre que retorno a esta imagem recebo de presente o pesadelo em que baratas passeiam pela boca do assombrado. Durante todos estes anos ouvi a descrição daquilo que só pode ser uma versão fraca de uma epidemia silenciosa. Não deixo, contudo de sugerir que uma profecia, ainda calada deve se confirmar logo mais na boca daqueles que se afligiram com a cena de coito interrompido. Na condução da fobia, sempre lhes voltam à boca as baratas promovendo toda sorte de distúrbios, coligindo com gravidade os cem mil focos de enfermidades.

Abri a porta do hostel em Belém imaginando algo semelhante. A própria divisão dos interiores do lugar já permitiam antever aquilo que seria um novo pesadelo alheio – até porque, se há alguém nada sujeito a profecias e êxtases místicos ou patológicos, esta pessoa sou eu; as baratas que lá estavam se foram de vez. Dormi como um velho cansado em Boa Vista, assim como dormiria em Belém.

Ao perceber que as paredes do casarão da rua Ó de Almeida eram composta por ambos, alvenaria e tapume de compensado, entrei num regime de antecipação de imagens. As duas baratas nuas pegas no flagra repetiram-se na retina me deliciando com a forma de teatro de revista. Desci as escadas de compensado procurando o número 02 e vi uma porta, nenhuma janela que não fosse um retângulo de 40x60 cm serrado no tapume que fazia a divisão entre o quarto e o corredor. Ao abrir a porta, nada. Sem baratas, sem aranhas, sapos ou surpresas, salvo a inexistência de chuveiro. Todo e qualquer banho seria tomado direto na fonte, um cano de água fria.

A estante que me serviria de armário me fez tomar uma série de decisões a respeito da guarda sanitária de minhas roupas, que nunca saíram da mochila de backpacker com a qual viajo. Já não mais morador da capital fluminense, me vi aderindo a alguns dos vícios mais inadequados já produzidos pela vida paulistana. Nada poderia me satisfazer, e tudo que viesse parecer a improviso soaria como um assalto. É o que acontece quando se imerge na obsessão com a segurança em todos os níveis, é o que se passa quando nos consideramos como um grande pacote de investimentos em nós mesmos avaliados pela noção de risco. O desvio de rota figura-se devastador para a sensibilidade. No mais, cama firme em lençóis ásperos e limpos. Não me vi com outra opção senão a mesma das noites de estréia em qualquer cidade, mesmo sendo esta uma re-estréia. Dormi.

Acordei me lembrando da missão. De como estava, lentamente cruzando a linha traçada por Codorna e, no mesmo movimento me arranhei de leve na mola solta do colchão contra a qual nunca manifestei queixa. Estava aqui e Codorna não se encontrava, ainda aonde deveria estar para me receber, em Altamira. As notícias, sobre como chegar até a cidade eram tão desencontradas como se desencontram os informantes. Sugestivamente, pouquíssimos, dentre aqueles com quem conversei tinham feito esta viagem. No caso, no almoço deste dia, entabulei minha primeira conversa de verdade. Longa.

Domingo é um dia ruim para um primeiro dia de estadia em Belém, especialmente quando a cidade é, na melhor das hipóteses um entreposto e, na pior das hipóteses uma memória ruim de algo que não aconteceu. O vazio da Cidade Velha, aliado ao pedido insistente dos locais para que se evitasse a qualquer custo, e ponto, produziam uma redundância hipnótica difícil de romper. Minha melhor saída deste círculo viciado era, como reza a geometria euclidiana, tomar uma reta. Segui rumo ao Museu Paraense Emilio Goeldi pela avenida Nazaré, onde pude testemunhar em primeira mão o Círio, completamente vazio e fora de calendário. Dali, a visita ao Museu e, mais adiante, nada. Nada que eu soubesse existir ou precisasse procurar. A caminhada longa, que fez o percurso dentro do museu pela metade acabou no Pomme D´Or, restaurante do qual nunca ouvira falar e ao qual não retornei.

A esta altura começava a assumir o papel de viajante solitário, que interpreto disciplinadamente em cada passo que dou, quando acontece. Ríspido, duro e decidido a cada passo dado, um verdadeiro pastiche de todos os filmes herdeiros de John Wayne que já assisti na vida. Rigorosamente perdido num papel sem roteiro, precisava comer. Patético como sempre, pedi uma mesa para um e precisei esperar. Não fazia parte do jogo de mesas receber tão poucas pessoas. Acabei no canto vazio de um aglomerado familiar que cedeu, gentilmente a cabeceira. Comi um rizoto com frutos do mar apreciável, ainda que não o suficiente para condenar de vez minha irritação com serviço chamado self-service, mais adequado a churrascos e a aniversários.

A família se foi e, o pouco tempo de refeição solitária foi interrompido por Alípio. Gentilmente me pediu licença. Com o prato na mão, havia percebido que estava só. Também o tinha percebido sentado atrás do caixa, me lembrando os donos de bar lusitanos que substituíram o jogo de dama na praça por contas intermináveis digitadas em calculadoras com impressora portátil. Lembro de olhá-lo atentamente, ainda que por poucos segundos. Nada de parecer interessado em demasia, nada de grosserias. Melhor evitar, diz a etiqueta que é, também e em geral, um manual de defesa pessoal. Deixar falar, ouvir, responder afirmativamente na maior parte do tempo. Ser devorado pela conversa.

Lembro de olhá-lo atentamente por alguns segundos. Obviamente que este é um exercício imbecil. Como fiz com as peças do Museu Goeldi, não me lembro de como se trajava, e tampouco como era. Não creio que vá reconhecer Alípio em uma próxima vez. A imagem que carrego mescla alguma velhice nos passos dados, óculos de quem enxerga com esforço, excesso de peso, a cor laranja em algum arranjo na camiseta, uma bermuda cáqui e a persistente idéia de que ele calçava sandálias de couro. A conversa conduzida por ele era, no final das contas a de quem decide e não deixa decidir por si, como faz um comerciante. Economista, com formação em algum lugar do sudeste que, crieo ter sido a PUC do Rio de Janeiro, Alípio é o patriarca da família proprietária da rede Pomme D´Or. Desta revelação, que na verdade é uma história entre restaurantes, uma seqüência de informações se depreendeu da boca de quem rompeu meu cordão de isolamento. Teceu muitas considerações sobre a família Yamada, sobre quem nada tenho a escrever senão que são donos de todos os principais outdoors da cidade, pois dirige a maior rede de supermercados do Pará. Como se trata de um país em que sou estrangeiro, posso dizer aos dedicados paulistas e cariocas que é coisa grande. Firme. Por vezes, com pompa. Um dos restaurantes Pomme D´Or está dentro de um Yamada. Yamada é uma família japonesa de japoneses que não são os do sudeste. Os indícios de que saí do país em que vivia se engrandecem com a história de que os japoneses do Pará, numerosos e competentes vieram descendo o rio Amazonas desde o Peru. Pouco têm a comemorar com o entorno do centenário de imigração senão que o centenário de sua vinda está por vir. A versão que ele oferece sobre os japoneses da Amazônia chega à nada irrisória história de Tomé-Açu, cidade que se tornou a terceira maior colônia japonesa do país e que, vim a descobrir depois, tem uma história tão fabulosa quanto a que Alípio me contou.

Vindos descidos do Amazonas, os japoneses teriam se espalhado por partes, e por aí. A narrativa técnica de sites nada confiáveis diz que houve algum tipo de manipulação do governo japonês em busca de regiões para assentamentos agrícolas. De Belém, chegaram a  Tomé-Açu. A técnica de difusão, nem desconfio. Alípio menciona a descida do rio e eu nem mesmo estou seguro de que ele tenha mencionado Tomé-Açú. A bem da verdade, tudo o que me lembro da conversa é de Alípio (o nome), o restaurante e a cidade amazônica aonde ainda se fala japonês como primeira língua, abrigados os falantes por pagodes. Logo imaginei uma sucessão de gueixas e xoguns reunidos em uma paisagem improvável, reclamando daquilo que descobri serem piuns e carapanãs. Logo imaginei espadas, kimonos, ikebanas, e todas as coisas que chamamos pelo nome errado, ainda que com alguma intimidade, cercadas por uma floresta frondosa e impenetrável, aliando clichês com uma velocidade com a qual somente um fascista consegue articular. Isso só foi possível, me disse Alípio, porque os japoneses fazem as coisas direito. São inventivos e cuidadosos. Não são como os chineses que, antigos, já inventaram um mundo e agora se dedicam à triste arte da cópia. Os japoneses são os estrangeiros aliados de Alípio. Repeti meu drama de ser gaijin. E Alípio mal começara a me devorar.

Um comentário:

João Veridiano disse...

Bernardo,
Difícil escrever as sensações que tive ao ler o trecho. . . permito-me dizer que quero ler mais. Já está dito na entrelinhas o que achei.

Reporto um pequeno erro de digitação: último parágrafo, em vez de 'Tomé-Açu' está 'Tomé-Aça'.

Grande abraço