Não é por causa
do cartão de visitas que eu voltei. Creio, inclusive que em lugar nenhum o tenha feito. As
redondezas que compõem o cenário de Montserrat e San Juan, em Buenos Aires não são os mais
convidativos. A vizinhança de oficinas mecânicas também não me ajudou a esperar
o melhor quando cheguei de táxi ao hostel. Não demorou até que o taxista
fizesse uma recomendação das mais eficazes. Tome cuidado, preste atenção, eres turista que sale de un hostel. A
prescrição requisita do viajante mais afoito alguma atenção, o que exige que
caia em ouvidos atentos. Ouvi, ainda que convencido da idéia de que bastaria me
comportar como morador da cidade do Rio de Janeiro e nada de muito grave
poderia me acontecer. Estava em casa. A sujeira enegrecida da fachada, as
grades nas janelas e as rachaduras nas paredes, não impediram grande coisa. A
recepção em Boa Vista não foi menos interessante. Sempre de madrugada, cheguei
à capital de Roraima desesperado por uma noite de sono. A rampa desastrada na
calçada do hotel repetia uma certa cena que já tinha testemunhado em Belém no
ano anterior, coisa que jamais entenderei: a onipresença dos azulejos,
inclusive em calçadas.
Assinei o livro
de registros, que então são apelidados de check-in
e segui ao quarto. Abri a porta ligeiramente miserável para que me visse
interrompendo, sem mais, a festa de duas baratas. Nuas. Desavergonhadas. Quase
pude decifrar um grito de surpresa. Invariavelmente, sempre que retorno a esta
imagem recebo de presente o pesadelo em que baratas passeiam pela boca do
assombrado. Durante todos estes anos ouvi a descrição daquilo que só pode ser
uma versão fraca de uma epidemia silenciosa. Não deixo, contudo de sugerir que
uma profecia, ainda calada deve se confirmar logo mais na boca daqueles que se
afligiram com a cena de coito interrompido. Na condução da fobia, sempre lhes
voltam à boca as baratas promovendo toda sorte de distúrbios, coligindo com
gravidade os cem mil focos de enfermidades.
Abri a porta do
hostel em Belém imaginando algo semelhante. A própria divisão dos interiores do
lugar já permitiam antever aquilo que seria um novo pesadelo alheio – até
porque, se há alguém nada sujeito a profecias e êxtases místicos ou
patológicos, esta pessoa sou eu; as baratas que lá estavam se foram de vez.
Dormi como um velho cansado em Boa Vista, assim como dormiria em Belém.
Ao perceber que
as paredes do casarão da rua Ó de Almeida eram composta por ambos, alvenaria e
tapume de compensado, entrei num regime de antecipação de imagens. As duas
baratas nuas pegas no flagra repetiram-se na retina me deliciando com a forma
de teatro de revista. Desci as escadas de compensado procurando o número 02 e
vi uma porta, nenhuma janela que não fosse um retângulo de 40x60 cm serrado no
tapume que fazia a divisão entre o quarto e o corredor. Ao abrir a porta, nada.
Sem baratas, sem aranhas, sapos ou surpresas, salvo a inexistência de chuveiro.
Todo e qualquer banho seria tomado direto na fonte, um cano de água fria.
A estante que me
serviria de armário me fez tomar uma série de decisões a respeito da guarda
sanitária de minhas roupas, que nunca saíram da mochila de backpacker com a qual viajo. Já não mais morador da capital
fluminense, me vi aderindo a alguns dos vícios mais inadequados já produzidos
pela vida paulistana. Nada poderia me satisfazer, e tudo que viesse parecer a improviso
soaria como um assalto. É o que acontece quando se imerge na obsessão com a
segurança em todos os níveis, é o que se passa quando nos consideramos como um
grande pacote de investimentos em nós mesmos avaliados pela noção de risco. O
desvio de rota figura-se devastador para a sensibilidade. No mais, cama firme
em lençóis ásperos e limpos. Não me vi com outra opção senão a mesma das noites
de estréia em qualquer cidade, mesmo sendo esta uma re-estréia. Dormi.
Acordei me
lembrando da missão. De como estava, lentamente cruzando a linha traçada por
Codorna e, no mesmo movimento me arranhei de leve na mola solta do colchão
contra a qual nunca manifestei queixa. Estava aqui e Codorna não se encontrava,
ainda aonde deveria estar para me receber, em Altamira. As notícias,
sobre como chegar até a cidade eram tão desencontradas como se desencontram os
informantes. Sugestivamente, pouquíssimos, dentre aqueles com quem conversei
tinham feito esta viagem. No caso, no almoço deste dia, entabulei minha primeira conversa
de verdade. Longa.
Domingo é um dia
ruim para um primeiro dia de estadia em Belém, especialmente quando a cidade é,
na melhor das hipóteses um entreposto e, na pior das hipóteses uma memória ruim
de algo que não aconteceu. O vazio da Cidade Velha, aliado ao pedido insistente
dos locais para que se evitasse a qualquer custo, e ponto, produziam uma
redundância hipnótica difícil de romper. Minha melhor saída deste círculo
viciado era, como reza a geometria euclidiana, tomar uma reta. Segui rumo ao Museu
Paraense Emilio Goeldi pela avenida Nazaré, onde pude testemunhar em primeira
mão o Círio, completamente vazio e fora de calendário. Dali, a visita ao Museu
e, mais adiante, nada. Nada que eu soubesse existir ou precisasse procurar. A
caminhada longa, que fez o percurso dentro do museu pela metade acabou no Pomme
D´Or, restaurante do qual nunca ouvira falar e ao qual não retornei.
A esta altura
começava a assumir o papel de viajante solitário, que interpreto
disciplinadamente em cada passo que dou, quando acontece. Ríspido, duro e
decidido a cada passo dado, um verdadeiro pastiche de todos os filmes herdeiros
de John Wayne que já assisti na vida. Rigorosamente perdido num papel sem
roteiro, precisava comer. Patético como sempre, pedi uma mesa para um e precisei
esperar. Não fazia parte do jogo de mesas receber tão poucas pessoas. Acabei no
canto vazio de um aglomerado familiar que cedeu, gentilmente a cabeceira. Comi
um rizoto com frutos do mar apreciável, ainda que não o suficiente para
condenar de vez minha irritação com serviço chamado self-service, mais adequado a churrascos e a aniversários.
A família se foi
e, o pouco tempo de refeição solitária foi interrompido por Alípio. Gentilmente
me pediu licença. Com o prato na mão, havia percebido que estava só. Também o
tinha percebido sentado atrás do caixa, me lembrando os donos de bar lusitanos
que substituíram o jogo de dama na praça por contas intermináveis digitadas em
calculadoras com impressora portátil. Lembro de olhá-lo atentamente, ainda que
por poucos segundos. Nada de parecer interessado em demasia, nada de
grosserias. Melhor evitar, diz a etiqueta que é, também e em geral, um manual
de defesa pessoal. Deixar falar, ouvir, responder afirmativamente na maior
parte do tempo. Ser devorado pela conversa.
Lembro de
olhá-lo atentamente por alguns segundos. Obviamente que este é um exercício
imbecil. Como fiz com as peças do Museu Goeldi, não me lembro de como se
trajava, e tampouco como era. Não creio que vá reconhecer Alípio em uma próxima vez. A
imagem que carrego mescla alguma velhice nos passos dados, óculos de quem
enxerga com esforço, excesso de peso, a cor laranja em algum arranjo na
camiseta, uma bermuda cáqui e a persistente idéia de que ele calçava sandálias
de couro. A conversa conduzida por ele era, no final das contas a de quem decide e não deixa
decidir por si, como faz um comerciante. Economista, com
formação em algum lugar do sudeste que, crieo ter sido a PUC do Rio de Janeiro, Alípio é o
patriarca da família proprietária da rede Pomme D´Or. Desta revelação, que na
verdade é uma história entre restaurantes, uma seqüência de informações se
depreendeu da boca de quem rompeu meu cordão de isolamento. Teceu muitas
considerações sobre a família Yamada, sobre quem nada tenho a escrever senão
que são donos de todos os principais outdoors da cidade, pois dirige a maior
rede de supermercados do Pará. Como se trata de um país em que sou estrangeiro,
posso dizer aos dedicados paulistas e cariocas que é coisa grande. Firme. Por
vezes, com pompa. Um dos restaurantes Pomme D´Or está dentro de um Yamada.
Yamada é uma família japonesa de japoneses que não são os do sudeste. Os
indícios de que saí do país em que vivia se engrandecem com a história de que
os japoneses do Pará, numerosos e competentes vieram descendo o rio Amazonas
desde o Peru. Pouco têm a comemorar com o entorno do
centenário de imigração senão que o centenário de sua vinda está por vir. A
versão que ele oferece sobre os japoneses da Amazônia chega à nada irrisória
história de Tomé-Açu, cidade que se tornou a terceira maior colônia japonesa do
país e que, vim a descobrir depois, tem uma história tão fabulosa quanto a que
Alípio me contou.
Vindos descidos
do Amazonas, os japoneses teriam se espalhado por partes, e por aí. A narrativa técnica
de sites nada confiáveis diz que houve algum tipo de manipulação do governo
japonês em busca de regiões para assentamentos agrícolas. De Belém, chegaram a Tomé-Açu. A técnica de difusão, nem desconfio.
Alípio menciona a descida do rio e eu nem mesmo estou seguro de que ele tenha
mencionado Tomé-Açú. A bem da verdade, tudo o que me lembro da conversa é de
Alípio (o nome), o restaurante e a cidade amazônica aonde ainda se fala japonês
como primeira língua, abrigados os falantes por pagodes. Logo imaginei uma
sucessão de gueixas e xoguns reunidos em uma paisagem improvável, reclamando
daquilo que descobri serem piuns e carapanãs. Logo imaginei espadas, kimonos,
ikebanas, e todas as coisas que chamamos pelo nome errado, ainda que com alguma
intimidade, cercadas por uma floresta frondosa e impenetrável, aliando clichês
com uma velocidade com a qual somente um fascista consegue articular. Isso só
foi possível, me disse Alípio, porque os japoneses fazem as coisas direito. São
inventivos e cuidadosos. Não são como os chineses que, antigos, já inventaram
um mundo e agora se dedicam à triste arte da cópia. Os japoneses são os
estrangeiros aliados de Alípio. Repeti meu drama de ser gaijin. E Alípio mal
começara a me devorar.
Um comentário:
Bernardo,
Difícil escrever as sensações que tive ao ler o trecho. . . permito-me dizer que quero ler mais. Já está dito na entrelinhas o que achei.
Reporto um pequeno erro de digitação: último parágrafo, em vez de 'Tomé-Açu' está 'Tomé-Aça'.
Grande abraço
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