terça-feira, 13 de março de 2012

Hiléia:Altamira, ambos os três


Não creio que eu tenha conseguido esconder minha decepção um minuto sequer. Obviamente que Codorna fez o esforço gentil em dissimular, vindo a reconhecer alguma mesmice nos dias somente no fim da jornada, quando ainda estava doente. Sabendo que posso compreender perfeitamente tudo o que se passou, como pude, aqui mesmo dizer todas as coisas que competiram para o entrave, os dias repetidos de caminhada solitária não poderiam esconder outra coisa senão a impaciência de esperar. No afã de repetir no entusiasmo patético a máxima de uma viagem com fins de “dar uma força para um amigo da FUNAI”, o tempo conta num regressivo de segundos divididos ao meio em progressão aritmética em que, sabendo ter cada vez menos tempo, os segundos que passam são cada vez menores sendo ainda sim um segundo, e só. Saber que o andamento dos dias não respeita nenhum sentido métrico justo e regular não permite que da abdicação dos planos advenha necessariamente a alegria. Antecipação do malogro, é bom saber, não é malogro algum. Se por acaso fui até Altamira respondendo ao apelo de um amigo não é por ser nominalmente convocado, ainda que possa ou tenha dito que sim.

 Não o lançou sequer aos amigos que tem. Nos convocou a todos, na margem aberta de qualquer folheto de anúncio jogado ao chão. escreveu para qualquer um, pedindo aos amigos que, à moda antiga espalhassem a notícia. O que fez foi, no limite, assinar um cheque e eu, tolo vi na fortuna numerada um bilhete de amor assinado. Não tenho qualquer autoridade para demandar condecorações e festividades pelo simples fato de me mover, como faço com minhas caminhadas, e não poderia esperar uma ação militar de combate pelo simples fato de me condoer da situação de Cordorna, meu amigo que trabalha na FUNAI. A responsabilidade de viver esta viagem na clave da tragédia é minha. A grandiloqüência fez de mim um pregador de rua, um pastor sem fiéis num comício nu; o jogo de cena então, digno de pena. Desde que cheguei em Altamira vi o ponteiro da trama me acelerar, dizendo que os 50 anos futuros, a próxima geração inteira, seriam vividos em 2 ou 3 horas e, lamentavelmente, não havia contracena. Não poderia conversar com alguém aqui ao lado em meio à simulação da voz que, sussurrada deveria ser ouvida na última fileira de cadeiras. Definitivamente, uma personagem em busca de uma peça que, como que por conspiração, não será escrita.

No caso de eu acusar alguém de ser meu amigo, e por causa disso me comprometo com isso – por ter chamado de amigo, significa que me considero seu amigo também -, nada permite dizer que se trata de uma situação simétrica, ou mesmo harmônica, e certamente não é exclusiva. Entenda-se a trajetória de três estudantes de piano clássico, brilhantes o suficiente para se recluirem no Sitftung Mozarteum de Salzburg, que narra uma relação em degraus: um segue a sina de ser um gênio do piano que, no auge de sua carreira, abdica das apresentações em público e em estúdio, isolado grava suas performances mais brilhantes; um segundo admite a mediocridade e, medíocre, contenta-se em redigir uma novela de fôlego curto sobre ter parado ao meio do caminho entre o gênio e o fim; um terceiro entra em desespero porque, imune à resignação recorre a um suicídio abrupto e narcisista atingindo aquilo que, aparentemente seria um naufrágio. As coisas não são feitas à dois porque, quando enfim sós, versa-se sobre o esconderijo. Há sempre mais alguém na espreita.

Saí do apartamento de Codorna. Só. Nesta altura, Altamira não era exatamente um mistério. O apanhado aleatório de ruas que definem uma cidade que não conhecia tinha mais do que pontos cardeais, alguma história devidamente guardada. No bolso, anotada num caderno verde.

Minha impaciência por deixarmos o tempo passar lentamente por grande parte do dia já estava relativamente amortecida pela compreensão forçosa de reconhecer na enfermidade e numa paixão igualmente repentina a recomposição do triângulo obrigatório de uma relação,  de qualquer relação, o que afirma que, obrigatoriamente, um casamento é um triângulo amoroso.  À repetição dos dias anteriores fui passear. Por mais que eu tente sugerir algo mais atento do que um passeio, não fiz senão isto. Atento, indignado, grandiloqüente. Passeio. Saí com a mochila nas costas repetindo o mesmo trajeto que leva à orla de Altamira, de onde se assiste à eterna passagem do Xingu lembrando que os trens são muito curtos. Da rua sem nome de onde parti, onde Codorna mora, dobrava à esquerda na travessa Pedro Gomes. Acenava aos proprietários, tanto da loja de ferragens quanto do prédio onde estava abrigado, de uma só vez. São as mesmas pessoas, o mesmo casal. Segui para o cruzamento com a avenida Djalma Dutra, sempre atento a cada cruzamento para o que Codorna chamou de “mão chinesa”, cujo sentido não é difícil de abstrair porque não há regras para se atravessar a rua senão seguir aos poucos, um passo por vez, ocupando espaço e cedendo a extensão anterior até que, com a devida agilidade se possa atingir um novo território protegido contra bicicletas, motos e caminhonetes 4x4, a fauna do tráfego regional. Não há como dizer que o enxame de ferro articulado com gente dentro e ao redor é alguma novidade. De inédito somente a fluidez da prática constituída como costume, tradição de não obedecer ou, melhor, de não haver o que ser obedecido. Não há contradição nisso. Aqui, nenhuma. É como a vida e a morte.

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Não posso deixar de transparecer o medo infantil que toma conta de cada uma das frases que narro. Tudo, absolutamente tudo parece errado, ao ponto em que as palavras, redigidas no mais rigoroso silêncio soam erradas. Não é nada disso, sussurram, é um engodo, chegando por fim ao veredicto, traidor. Não sinto mais a febre da viagem, e os sinais da doença que me liquefez na volta já não acometem nenhum dos episódios anotados no caderno verde. Ainda que a continuação desta redação seja imperativa não vejo nela nenhuma razão de ser senão o mero prosseguimento. Mero prosseguimento. Mero prosseguimento. Aqui, mera interrupção porque chove, sem contradição.

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Espaço Cultural Francisco Melo. Porque Altamira tem o que jamais conheci, ainda que saiba ser uma marca dos solos regionais. Altamira tem um artista da cidade. Este responde pelo nome de Francisco Melo. Melo é uma figura. E como todas as figuras, obriga a quem lhe vê a decidir por detalhes e recompor o conjunto. Apontei pára a Bíblia sobre sua mesa, encadernada em verde. Sugeri ser boa leitura.

“Eu não sou filósofo, entende? Não sou estudado, não entendo muito essas coisas. Leio porque... porque tá aqui. Leio, faço minhas notas, entendo, dou um jeito. Mas não sou filósofo. Eu sento e penso. Mas o que eu queria dizer é que acho que fazemos as coisas de um jeito meio parecido... do jeito que um vulcão acontece. Porque, no centro da terra, não é bem no centro... você sabe. Mas tem ferro derretido, incandescente, que passa por onde der até chegar à superfície. Ele passa entre as fendas das placas tectônicas, passa por onde é mais fraco. Acho que agimos assim, e fazemos por onde somos mais fracos.”

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