“O segredo? Ora,
cortejei os opostos com delicadeza e suavidade porque queria aprender com
ambos. Não estava seguro, não tinha lá muita certeza. Não conhecia a história
grandiosa, e me perdia na vida doméstica com uma rapidez inconteste. No final
das contas eu soava a algaravia toda vez que falava com alguém. Nunca estive
seguro do que fiz, o que me obrigou a me contradizer em um sem número de vezes
com a mesma veemência. Aliás, se há uma única coisa que me sustenta na vida, e
que permitiu que eu chegasse em algum lugar é meu tom de voz, quando consigo
atingir a simulação de segurança. Mas, ao cabo e ao rabo, não sei lá de muita
coisa além de meu RG, CPF, número de telefone e aniversário de minha esposa, além
do de mais alguns transeuntes que freqüentam minha vida por algum período. Mais
adiante, estou certo de que os esquecerei novamente. Assim, o meu envolvimento
com a militância sempre ocorreu com o horizonte de que poderia haver melhores
razões para parar, para negar, para dizer que talvez fosse melhor que não. Com
os mais conservadores e dedicados aos afazeres do espírito, ao contrário,
porque demandava algum movimento e compromisso mais agudo com questões menores
do ponto de vista ético-moral. No final das contas, queria me comprometer tanto
com problemas de vida e morte quanto com algum rigor formal. A única coisa que
consegui, no final das contas foi decepcioná-los a todos”.
O que marca a biografia de alguém assim é a
incapacidade de determinar uma cartografia precisa a respeito do que deve e do
que não deve ser feito em todas as situações e, mesmo em uma situação em específico.
E isto nasce, diria o citado, da desconfiança quanto a adequação das normas de
etiqueta, muito importantes em lugares como o Palácio de Buckingham ou no
jantar na casa de sua avó, mas absolutamente esquálidos e pouco interessados na
possibilidade de se comer uma galinha à cabidela na BR 116, a 15 quilômetros de
onde seu carro quebrou, ou mesmo num almoço regado a macarrão e rapadura enquanto
se espera o resgate de helicóptero porque a cheia do rio lhe proíbe outro exercício
que não o da paciência. Certo que estão listadas as variações de lugar, e não
de épocas, pois, caso contrário seria possível ampliar tanto as variações
quanto as inadequações da etiqueta – que quase ninguém jamais seguiu.
“Eu mesmo,
equivocadamente, já fui considerado muitíssimo bem educado, e por isso já pude
gozar, inclusive da fama de erudito. Nada mais equivocado para alguém cujas noções
de método e atenção são somente nomes de conhecidos de um primo meu. O tom de
voz, aliado à pausa entre frases e uma certa sofisticação no olhar indicando
concentração no interlocutor definiram, quase todas as vezes em que tive algum sucesso
como conviva. E mesmo aqui, certamente soarei a alguém mais sutil do que de
fato sou, porque quero intervir em sua direção, contemplá-lo e por isso, falar
por via das palavras que você me dirige”.
Há quem tenha
defendido a tese de que Denis Diderot era um pensador de reação. Há quem
conteste que ele sequer tenha sido um pensador. Mas o exemplo me bastará,
porque terá pensado o suficiente para, na pior das hipóteses ter usurpado a
categoria prestigiada da filosofia. Pode ter sido Yves Benot, em seu Diderot: de l´athéisme à l´anticolonnialismme
quem busca abolir à qualquer juízo de unidade autoral e propositiva concernente à obra do enciclopedista. Diz
Benot que a figura de philosophe e
editor acabou exigindo de Diderot uma disciplina em fragmentos de
possibilidade, fazendo com que escrevesse quase que exclusivamente por via da
pressão das pessoas à sua volta, o que ofereceria ao que escreveu a visível carência
de unidade autoral, temática e estilística; de coerência. Diderot parecia
prefigurado nas questões que lhe eram impostas por todo uma classe de
interlocutores que, por fim, fizeram com que viesse a falhar. Não decepciona à
forma de Rousseau, que os traiu a todos, mas como alguém que poderia ter feito
algo melhor, com sustentação e clareza, com sistema. No entanto, o envolvimento
do editor com a quantidade de demandas que lhe pareciam nobres o suficiente
fizeram com que se diluísse, diria. Independente do que possa ser revelado por
via de seu trabalho, é pouco provável que nele se encontre algo como um conteúdo
de verdade, e que de alguma forma venha a satisfazer tanto a um militante
quanto a um pensador rigoroso.
“É exatamente
sobre isso que eu estava falando. Apanhei dos dois. Nas duas vezes. Tem sempre
um assaltante no caminho. Eu estava na cidade há mais de 24 horas, cercado de
restrições. Não poderia me mover para quase lado algum porque, saindo do hostel
em um centro urbano aparentemente sem pessoas ao redor, eu seria vítima
preferencial. Eu consegui me transformar exatamente no mesmo tipo de turista
com que me indispus durante cada um dos dias em que fui morador de Copacabana,
o mesmo tipo de turista que sempre mereceu, no meu ponto de vista, ser
assaltado. Ainda que tivesse insistido, e que tivesse circulado pelo centro
histórico de Belém, que é pequeno e ajustado para ser feito em uma só
caminhada, não pareceu bom o bastante. Afinal, caminhar por calçadas vazias
ornadas pelo selo do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional não
é a melhor forma de se misturar. Poucas coisas dissimulam tão bem o que, de uma
forma bastante relaxada, não deixa de ser confinamento. Voltei para o albergue decididamente
derrotado. Indócil mesmo. Fiz o que não se faz em viagem alguma, salvo quando
se está perdido, ou com tédio. Assisti televisão. O que foi útil, porque
conversei um pouco mais. Comecei a medir minha covardia com maior exatidão e
medida. Tomando um suco de caixinha e comendo um sanduíche decididamente
suspeito, sentou-se ao meu lado no sofá um hóspede japonês. Yuto. Foi com ele
que eu me neguei a entregar alguma coisa. Juntos, e posso falar sem exagero,
Yuto e eu nos confrontamos com o diabo”.
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