segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Notas feitas no claustro da torre: o vento sopra, uma folha é uma corda vocal


[NOTA:MICHELET, Jules. La sorcière – nouvelle édition critique avec introduction, variantes et examen du manucrit. Wouter Kusters. Nijmegen. Préface Walterus Albertus Henricus Maria Kusters. 1989.
____________________. Histoire de la Révolution Française. Bouquins Robert Laffont. Paris. 1979.
Como o percurso que eu me permito percorrer incorpora minhas mais do que notórias limitações no exercício historiográfico, isto é, não me dedico à historiografia plenamente, mas a um exercício de investigação que recorre a deslocamentos que se orientam em uma cronologia particular, há algo que tenho sido obrigado a fazer. Entendendo me ser obrigatório um determinado exercício empático que, para todos os efeitos deve se manifestar de forma clara numa determinada expressão, estou me permitindo levar mais a sério algumas ressonâncias que um historiador responsável não se permitiria. Estou atrás de algumas reverberações características de uma conversação cujo assunto eu não estou exatamente consciente de qual é, mas começo a desconfiar que em pouco não somente estarei algo inteirado, como entenderei uma ou outra piada. E tudo começa com minha decepção com as biografias de Allan Kardec que, de uma forma geral, não me permitem participar do papo, me deixam meio que de fora de tudo e fico avulso. Não gosto de ficar avulso. Assim, começo a fazer o exercício de extrapolar Allan Kardec e procura-lo em outras pessoas, inclusive nele mesmo, quando jovem. Forçar a barra na repetição daquele que se consagra como redator de uma doutrina espírita que colige uma enormidade de versões emitidas por vocês mediadas por corpos alheios com a finalidade de capturar de alguma forma aquilo que diz o Espírito da Verdade, fonte inestimável de seus livros – bem ao contrário das fontes irregulares dos artigos da Revue Spirite.

            O caso é que as biografias de Kardec decepcionam. Ou porque são demasiado aliadas do mestre, e tudo o que fazem é narrar como o notável Rivail se transformou em Kardec, ou feitas muito tempo depois, quando os arquivos de Kardec haviam sido majoritariamente destruídos em razão dos conflitos durante a Segunda Guerra Mundial, tudo o que fazem é narrar, de outra forma, como o notável Rivail se transformou em Kardec. Assim, precisei conversar com o sujeito para além da fonte bibliográfica, ainda que não tenha recorrido a nenhuma mesa branca. Ainda não.
            Na verdade, o que estou fazendo, e começa a dar resultado, é procurar as afirmações, métodos e anseios de Kardec em outros redatores que compartilhavam, parcial ou integralmente o mesmo círculo socialista e republicano do qual o ex-Rivail fizera parte. E começo a ler em Michelet a repetição daquilo que vejo em passagens em Le Livre des Esprites. Por exemplo, o caráter de coleção de relatos que o livro supracitado tem. Vejamos o que diz Michelet, no prefácio da Histoire de la Révolution Française, sobre os procedimentos de pesquisa:

            “Pour le fait capital, mon récit, identique aux actes mêmes, est aussi immuable qu’eux. J’ai fait plus que d’extraire, j’ai copié de ma main (et sans y employer personne) les textes dispersés, et les ai réunit. Il en est résulté une lumière, une certitude, auxquelles on ne changera rien. Qu’on m’attaque sur le sens des faits, c’est bien. Mais on devra d’abord reconnaître qu’on tient de moi les faits dont on veut user contre moi. » (1979 :44-45).

            Encontrar Kardec neste trecho demanda um pouco de exercício. E se o processo de demonstração é longo de mais é porque a analogia existe mais deste lado do que do lado de lá. Estaria forçando a barra, obrigando Michelet a dizer coisas que ele não disse. Assim, diz  a boa educação, e um determinado método humanista de interrogatório, que é melhor deixar falar. No mesmo prefácio à edição de 1868, um ano antes da morte de Kardec, ele segue, ainda, sobre os arquivos:

            “La poussière du temps reste. Il est bon de la respirer, d’aller, venir, à travers ces papiers, ces dossiers, ces registres. Ils ne sont pas muets, et tout cela n’est pas si mort qu’il semble. Je n’y touchais jamais sans que certaine chose sortît, s’éveillât… C’est l’âme. » (op.cit. :45)

            Michelet fala com a alma. Tanto no sentido da empatia que se traveste numa expressão refletida e bem medida quanto àquilo que deve dizer, como no sentido positivo do termo, isto é, que há algo na crítica das fontes que é falar com as fontes do outro lado, que é contatar diretamente o evento do registro sendo que isso é uma conversa com alguém. Seguramente não oferece, por esta via a totalidade dos testemunho possíveis, mas apresenta a totalidade dos testemunhos dados, o que já é muito ainda que seja sempre a fonte da decepção da historiografia em geral para quem o empírico sempre fala pouco demais, como se um documento estivesse lá para responder aos nossos próprios problemas e não aos problemas deles. Por isso é importante deixar falar. Porque só assim, se eu deixar de lado a metáfora da citação acima, ou ao menos não trata-la como tal exatamente como o fez Robert Darnton na introdução de seu Iluminismo como negócio, que uma terceira passagem de Michelet ganha uma outra dimensão, deixando mais claro o que é preciso saber para conversar a conversa que se conversa lá – que não é como gorjeiam cá.
            Michelet, em La Sorcière, enfrenta a empreitada de revigorar a impressão a respeito do paganismo que, de uma forma geral é entendido como a religião natural,  ou da natureza. Em outras palavras, é a forma privilegiada de compreender os percursos da vida moral do povo, a quem dedica outra obra de primeira grandeza. O paganismo vive sob a égide do satanismo que, todavia, não sendo senão uma acusação operada por um dogma da igreja – digo, da instituição sociológica com relação à qual Troeltsch classifica como a conformação das formas eclesiásticas -, uma vez livre do impedimento inquisitorial pode voltar a ser o que fora antes. O mesmo pode ser feito pelo diabo que, na vida pagã do espírito volta a ser o senhor dos mortos, definindo um outro caminho para a escatologia.

            « Maintenant qu’on l’a précipité tellement vers son déclin, sait-on ben ce qu’on fait là ? – N’était-il pas un acteur nécessaire, une pièce indispensable de la grande machine religieuse, un peu détraquée aujourd’hui ? – Tout organisme qui fonctionne bien est double, a deux côtés. La vie ne va guère autrement. C’est un certain balancement de deux forces, opposées, symétriques, mais inégales ; l’inférieure s’impatiente, et veut la supprimer. – A tort.
            Lorsque Colbert (1672) destitua Satan avec peu de façon en défendant aux juges de recevoir les procès de sorcellerie, le tenace parlement Normand, dans sa bonne logique, montra la portée dangereuse d’une telle décision. Le Diable n’est pas moins qu’un dogme, qui tient à tous les autres. Toucher à l’éternel vaincu, n’est-ce pas toucher au vainqueur ? Douter des actes du premier, cela mène à douter des actes du second, des miracles qu’il fit précisément pour combattre le Diable. Les colonnes du ciel ont leur pied dans l’abîme. L’étourdi qui remue cette base infernale, peut lézarder le paradis.
            Colbert n’écouta pas. Il avait tant d’autres affaires. – Mais le diable peut-être entendit. Et cela le console fort. Dans les petits métiers où il gagne sa vie (spiritisme ou tables tournantes), il se résigne, et croit que du moins il ne meurt pas seul. » (1989 :146-147)

O resto se dá como segue, em que, imagino, uma conversa direta com o espírito se dá; minha com Michelet; Michelet com Kardec; Kardec com os espíritos, todos nós numa mesa de bar, ou mesmo numa cave, às escondidas, que é pra ninguém nos ouvir e nos internar em selas químicas injetáveis. 

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