[NOTA:MICHELET,
Jules. La sorcière – nouvelle édition
critique avec introduction, variantes et examen du manucrit. Wouter
Kusters. Nijmegen. Préface Walterus Albertus Henricus Maria Kusters. 1989.
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Histoire de la Révolution Française.
Bouquins Robert Laffont. Paris. 1979.
Como o percurso que eu me permito
percorrer incorpora minhas mais do que notórias limitações no exercício
historiográfico, isto é, não me dedico à historiografia plenamente, mas a um
exercício de investigação que recorre a deslocamentos que se orientam em uma
cronologia particular, há algo que tenho sido obrigado a fazer. Entendendo me
ser obrigatório um determinado exercício empático que, para todos os efeitos
deve se manifestar de forma clara numa determinada expressão, estou me
permitindo levar mais a sério algumas ressonâncias que um historiador
responsável não se permitiria. Estou atrás de algumas reverberações
características de uma conversação cujo assunto eu não estou exatamente
consciente de qual é, mas começo a desconfiar que em pouco não somente estarei
algo inteirado, como entenderei uma ou outra piada. E tudo começa com minha
decepção com as biografias de Allan Kardec que, de uma forma geral, não me
permitem participar do papo, me deixam meio que de fora de tudo e fico avulso.
Não gosto de ficar avulso. Assim, começo a fazer o exercício de extrapolar
Allan Kardec e procura-lo em outras pessoas, inclusive nele mesmo, quando
jovem. Forçar a barra na repetição daquele que se consagra como redator de
uma doutrina espírita que colige uma enormidade de versões emitidas por vocês mediadas por corpos alheios com a finalidade de
capturar de alguma forma aquilo que diz o Espírito da Verdade, fonte
inestimável de seus livros – bem ao contrário das fontes irregulares dos
artigos da Revue Spirite.
O caso é que
as biografias de Kardec decepcionam. Ou porque são demasiado aliadas do mestre,
e tudo o que fazem é narrar como o notável Rivail se transformou em Kardec, ou
feitas muito tempo depois, quando os arquivos de Kardec haviam sido
majoritariamente destruídos em razão dos conflitos durante a Segunda Guerra
Mundial, tudo o que fazem é narrar, de outra forma, como o notável Rivail se
transformou em Kardec. Assim, precisei conversar com o sujeito para além da
fonte bibliográfica, ainda que não tenha recorrido a nenhuma mesa branca. Ainda
não.
Na verdade,
o que estou fazendo, e começa a dar resultado, é procurar as afirmações,
métodos e anseios de Kardec em outros redatores que compartilhavam, parcial ou
integralmente o mesmo círculo socialista e republicano do qual o ex-Rivail
fizera parte. E começo a ler em Michelet a repetição daquilo que vejo em
passagens em Le Livre des Esprites.
Por exemplo, o caráter de coleção de relatos que o livro supracitado tem.
Vejamos o que diz Michelet, no prefácio da Histoire
de la Révolution Française, sobre os procedimentos de pesquisa:
“Pour
le fait capital, mon récit, identique aux actes mêmes, est aussi immuable
qu’eux. J’ai fait plus que d’extraire, j’ai copié de ma main (et sans y
employer personne) les textes dispersés, et les ai réunit. Il en est résulté
une lumière, une certitude, auxquelles on ne changera rien. Qu’on m’attaque sur
le sens des faits, c’est bien. Mais on devra d’abord reconnaître qu’on tient de
moi les faits dont on veut user contre moi. » (1979 :44-45).
Encontrar
Kardec neste trecho demanda um pouco de exercício. E se o processo de
demonstração é longo de mais é porque a analogia existe mais deste lado do que
do lado de lá. Estaria forçando a barra, obrigando Michelet a dizer coisas que
ele não disse. Assim, diz a boa
educação, e um determinado método humanista de interrogatório, que é melhor
deixar falar. No mesmo prefácio à edição de 1868, um ano antes da morte de
Kardec, ele segue, ainda, sobre os arquivos:
“La poussière du temps reste. Il est bon de la respirer, d’aller, venir, à travers ces papiers, ces dossiers, ces registres. Ils ne sont pas muets, et tout cela n’est pas si mort qu’il semble. Je n’y touchais jamais sans que certaine chose sortît, s’éveillât… C’est l’âme. » (op.cit. :45)
“La poussière du temps reste. Il est bon de la respirer, d’aller, venir, à travers ces papiers, ces dossiers, ces registres. Ils ne sont pas muets, et tout cela n’est pas si mort qu’il semble. Je n’y touchais jamais sans que certaine chose sortît, s’éveillât… C’est l’âme. » (op.cit. :45)
Michelet
fala com a alma. Tanto no sentido da empatia que se traveste numa expressão
refletida e bem medida quanto àquilo que deve dizer, como no sentido positivo
do termo, isto é, que há algo na crítica das fontes que é falar com as fontes
do outro lado, que é contatar diretamente o evento do registro sendo que isso é
uma conversa com alguém. Seguramente não oferece, por esta via a totalidade dos
testemunho possíveis, mas apresenta a totalidade dos testemunhos dados, o que
já é muito ainda que seja sempre a fonte da decepção da historiografia em geral
para quem o empírico sempre fala pouco demais, como se um documento estivesse
lá para responder aos nossos próprios problemas e não aos problemas deles. Por
isso é importante deixar falar. Porque só assim, se eu deixar de lado a
metáfora da citação acima, ou ao menos não trata-la como tal exatamente como o
fez Robert Darnton na introdução de seu Iluminismo
como negócio, que uma terceira passagem de Michelet ganha uma outra
dimensão, deixando mais claro o que é preciso saber para conversar a conversa
que se conversa lá – que não é como gorjeiam cá.
Michelet, em
La Sorcière, enfrenta a empreitada de
revigorar a impressão a respeito do paganismo que, de uma forma geral é
entendido como a religião natural, ou da
natureza. Em outras palavras, é a forma privilegiada de compreender os
percursos da vida moral do povo, a
quem dedica outra obra de primeira grandeza. O paganismo vive sob a égide do
satanismo que, todavia, não sendo senão uma acusação operada por um dogma da
igreja – digo, da instituição sociológica com relação à qual Troeltsch
classifica como a conformação das formas eclesiásticas -, uma vez livre do
impedimento inquisitorial pode voltar a ser o que fora antes. O mesmo pode ser
feito pelo diabo que, na vida pagã do espírito volta a ser o senhor dos mortos,
definindo um outro caminho para a escatologia.
« Maintenant
qu’on l’a précipité tellement vers son déclin, sait-on ben ce qu’on fait
là ? – N’était-il pas un acteur nécessaire, une pièce indispensable de la
grande machine religieuse, un peu détraquée aujourd’hui ? – Tout organisme
qui fonctionne bien est double, a deux côtés. La vie ne va guère autrement.
C’est un certain balancement de deux forces, opposées, symétriques, mais
inégales ; l’inférieure s’impatiente, et veut la supprimer. – A tort.
Lorsque
Colbert (1672) destitua Satan avec peu de façon en défendant aux juges de
recevoir les procès de sorcellerie, le tenace parlement Normand, dans sa bonne
logique, montra la portée dangereuse d’une telle décision. Le Diable n’est pas
moins qu’un dogme, qui tient à tous les autres. Toucher à l’éternel vaincu,
n’est-ce pas toucher au vainqueur ? Douter des actes du premier, cela mène
à douter des actes du second, des miracles qu’il fit précisément pour combattre
le Diable. Les colonnes du ciel ont leur pied dans l’abîme. L’étourdi qui remue
cette base infernale, peut lézarder le paradis.
Colbert
n’écouta pas. Il avait tant d’autres affaires. – Mais le diable peut-être
entendit. Et cela le console fort. Dans les petits métiers où il gagne sa vie
(spiritisme ou tables tournantes), il se résigne, et croit que du moins il ne
meurt pas seul. »
(1989 :146-147)
O resto se dá como segue, em que, imagino,
uma conversa direta com o espírito se dá; minha com Michelet; Michelet com
Kardec; Kardec com os espíritos, todos nós numa mesa de bar, ou mesmo numa
cave, às escondidas, que é pra ninguém nos ouvir e nos internar em selas
químicas injetáveis.
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