quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

As regras do jogo: psiquiatria


Aqui começo uma série de confissões. Recomendo atenção. Mas antes dos assuntos mais graves convém confessar algo mais simples, sobre o que não sei e não posso dizer ainda que protegido pelo silêncio da escrita – porque o silêncio é então uma camada a partir de onde eu não me movo mais de mim. E é uma confissão muito simples e que oferece uma falsa sensação de segurança. O caso é que eu não sei nada sobre esquizofrenia e pretendo escrever sobre o tema a partir de um grau zero impossível. Não tenho nenhuma experiência clínica real, não participei de experiências em terapia cognitiva, não escrevi artigos com a revisão bibliográfica acerca do tema. Não tenho nenhuma experiência com a questão que mereça ser reputada como tal. Mas, e aí começa a confissão mais grave, não sou particularmente afetado por todas as coisas que vejo, escuto e considero, ainda que seja particularmente afetado pela beleza do que vem e aparece, quando beleza há.
            Deslumbrado. Há quem me defina assim. E quem o faz intenta eufemizar aquilo que é, de outra forma aquilo que opera como classificação – que sabemos só ser efetiva quando ofende, que é quando se presta à defesa ou à caça, como bem demonstraram Émile Durkheim e seu sobrinho, Marcel Mauss. Assim, a ofensa disserta que deslumbrado é bem outra coisa pois significará doravante “patético”, ou conduzido pelas paixões, demasiado atrelado à superfície, à aparição das coisas. E se é ofensivo que me chegue aos ouvidos o caso de eu ser patético, nele eu não vejo nada de ofensivo. E assim, acabo de fazer uma distinção que é tudo aquilo que me importa enquanto escrevo estas linhas. Porque não sendo eu exatamente um quadro clínico de doente mental, ou por jamais eu ter me submetido a uma junta médica que pudesse me declarar como tal, começo a entender o valor dos serviços prestados por intelectuais como Gregory Bateson e Paul Watzlawick. Dedicados por um período significativo de suas pesquisas à etiologia de algo como a esquizofrenia, seu papel se torna particularmente notável por se tratar de um exercício analítico que privilegia quem sofre, e não quem acusa. Este exercício de ambos – de mais tantos outros que o grau zero impede de recordar, dado que nunca soube – permite que eu reitere a sugestão acima de que é possível distinguir, ainda que sem justificar, a enorme diferença entre a ofensa e ser ofendido. Como é de hábito, é o mesmo problema da magia posta em prática na cena da flecha que chega e que não é a mesma flecha que partiu do arco.
            O que os exercícios das pesquisas produzidas em Palo Alto me oferecem, as mesmas produzidas nos anos 1960-1970, é a idéia de que, uma vez incorporando métodos e fundamentação característicos da teoria dos sistemas – cuja fonte são Ludwig von Bertanlanfy, aluno de Martin Heidegger – a etiologia das doenças mentais passa a demandar um certo descentramento de suas propriedades hilemórficas, o que muita gente confunde com “a morte do sujeito”, o mesmo que Maurice Blanchot chegou a chamar de “quem?”. Dito de outra forma, o tipo de sofrimento que caracteriza a esquizofrenia – e que sigo sem ter a menor idéia quanto ao que de fato é; bom para mim – só pode ser apreendido com justiça (melhor do que com precisão analítica) quando um certo conjunto de linhas de força que instituem o lugar em que se dá a individualidade não antecedam a precipitação do sofrimento individual. A emergência do quadro esquizofrênico não permitiria qualquer exercício filogenético como forma de diagnóstico. Ao contrário, é como história que a filogênese opera sem conseguir sugerir mesmo que de soslaio as intensidades que convergem ao produzirem, junto aos esforços do indivíduo, os males da alucinação – que também espero conseguir entender como uma das formas desprivilegiadas de sair de si.
            A emergência do quadro esquizofrênico como tal demanda um encadeamento de intensidades sincronizadas que individuem a esquizofrenia, demandando que se compreenda que a própria emergência não tem prefiguração, seja em quem sofre, seja em qualquer outro lugar específico. Não por acaso que o signo sugerido para descrever o movimento para o qual chamo a atenção é o de comunicação esquizofrênica, isto é, de uma forma de trocas na qual um dos termos não consegue se reconhecer como participante ainda que o seja de pleno direito e esforço, vindo a se transformar num fantasma no sistema, um termo ativo ausente que, do ponto de vista do sofrimento é a própria forma de estar fora de si. Isto porque aquilo que o sujeito que sofre diz, o que ele comunica é constantemente tomado como outra coisa, como outro ente impondo à conversação, fazendo com que os esforços em dizer tudo o que ele diz ser – e a frustração é um sentimento imperialista que converte tudo à sua versão, indiferente às injustiças que promove – o transforme em qualquer outra coisa, menos no que ele diz e ser. Ele não é como diz, sua presença não faz sentido, vindo a fazer companhia aos demais objetos impossíveis.
            Sei que em nome de uma solução dramática acabei atropelando o que uma exposição coerente demanda, como uma coleção, senão exaustiva, ao menos interessante de casos com vistas em criar intimidade com o tema. No entanto, isto eu não sei fazer. De outra forma eu poderia partir para uma história familiar, ou várias, que me dão entusiasmo para redigir estas linhas. Seguramente não saberia ser justo com os envolvidos, por não saber fazer o relato com justeza. E isso me é proibido. Resta então inventar uma história verossímil o que, no momento significa me cercar ainda mais de tudo aquilo que não pode ser, o que frequentemente recebe o nome absurdo de “ficção”. No caso, foi o que acabei de fazer. 

Nenhum comentário: