Aqui começo uma série de confissões. Recomendo atenção. Mas antes dos assuntos mais graves convém confessar
algo mais simples, sobre o que não sei e não posso dizer ainda que protegido
pelo silêncio da escrita – porque o silêncio é então uma camada a partir de
onde eu não me movo mais de mim. E é uma confissão muito simples e que oferece
uma falsa sensação de segurança. O caso é que eu não sei nada sobre
esquizofrenia e pretendo escrever sobre o tema a partir de um grau zero
impossível. Não tenho nenhuma experiência clínica real, não participei de
experiências em terapia cognitiva, não escrevi artigos com a revisão
bibliográfica acerca do tema. Não tenho nenhuma experiência com a questão que
mereça ser reputada como tal. Mas, e aí começa a confissão mais grave, não sou
particularmente afetado por todas as coisas que vejo, escuto e considero, ainda
que seja particularmente afetado pela beleza do que vem e aparece, quando
beleza há.
Deslumbrado.
Há quem me defina assim. E quem o faz intenta eufemizar aquilo que é, de outra
forma aquilo que opera como classificação – que sabemos só ser efetiva quando
ofende, que é quando se presta à defesa ou à caça, como bem demonstraram Émile
Durkheim e seu sobrinho, Marcel Mauss. Assim, a ofensa disserta que deslumbrado
é bem outra coisa pois significará doravante “patético”, ou conduzido pelas
paixões, demasiado atrelado à superfície, à aparição das coisas. E se é ofensivo
que me chegue aos ouvidos o caso de eu ser patético, nele eu não vejo nada de
ofensivo. E assim, acabo de fazer uma distinção que é tudo aquilo que me
importa enquanto escrevo estas linhas. Porque não sendo eu exatamente um quadro
clínico de doente mental, ou por jamais eu ter me submetido a uma junta médica
que pudesse me declarar como tal, começo a entender o valor dos serviços
prestados por intelectuais como Gregory Bateson e Paul Watzlawick. Dedicados
por um período significativo de suas pesquisas à etiologia de algo como a
esquizofrenia, seu papel se torna particularmente notável por se tratar de um
exercício analítico que privilegia quem sofre, e não quem acusa. Este exercício
de ambos – de mais tantos outros que o grau zero impede de recordar, dado que
nunca soube – permite que eu reitere a sugestão acima de que é possível
distinguir, ainda que sem justificar, a enorme diferença entre a ofensa e ser
ofendido. Como é de hábito, é o mesmo problema da magia posta em prática na
cena da flecha que chega e que não é a mesma flecha que partiu do arco.
O que os
exercícios das pesquisas produzidas em Palo Alto me oferecem, as mesmas
produzidas nos anos 1960-1970, é a idéia de que, uma vez incorporando métodos e
fundamentação característicos da teoria dos sistemas – cuja fonte são Ludwig
von Bertanlanfy, aluno de Martin Heidegger – a etiologia das doenças mentais
passa a demandar um certo descentramento de suas propriedades hilemórficas, o
que muita gente confunde com “a morte do sujeito”, o mesmo que Maurice Blanchot
chegou a chamar de “quem?”. Dito de outra forma, o tipo de sofrimento que
caracteriza a esquizofrenia – e que sigo sem ter a menor idéia quanto ao que de
fato é; bom para mim – só pode ser apreendido com justiça (melhor do que com
precisão analítica) quando um certo conjunto de linhas de força que instituem o
lugar em que se dá a individualidade não antecedam a precipitação do sofrimento
individual. A emergência do quadro esquizofrênico não permitiria qualquer
exercício filogenético como forma de diagnóstico. Ao contrário, é como história
que a filogênese opera sem conseguir sugerir mesmo que de soslaio as
intensidades que convergem ao produzirem, junto aos esforços do indivíduo, os
males da alucinação – que também espero conseguir entender como uma das formas
desprivilegiadas de sair de si.
A emergência
do quadro esquizofrênico como tal demanda um encadeamento de intensidades
sincronizadas que individuem a esquizofrenia, demandando que se compreenda que
a própria emergência não tem prefiguração, seja em quem sofre, seja em qualquer
outro lugar específico. Não por acaso que o signo sugerido para descrever o
movimento para o qual chamo a atenção é o de comunicação esquizofrênica, isto
é, de uma forma de trocas na qual um dos termos não consegue se reconhecer como
participante ainda que o seja de pleno direito e esforço, vindo a se
transformar num fantasma no sistema, um termo ativo ausente que, do ponto de
vista do sofrimento é a própria forma de estar fora de si. Isto porque aquilo
que o sujeito que sofre diz, o que ele comunica é constantemente tomado como
outra coisa, como outro ente impondo à conversação, fazendo com que os esforços
em dizer tudo o que ele diz ser – e a frustração é um sentimento imperialista
que converte tudo à sua versão, indiferente às injustiças que promove – o transforme
em qualquer outra coisa, menos no que ele diz e ser. Ele não é como diz, sua presença
não faz sentido, vindo a fazer companhia aos demais objetos impossíveis.
Sei que em nome
de uma solução dramática acabei atropelando o que uma exposição coerente
demanda, como uma coleção, senão exaustiva, ao menos interessante de casos com
vistas em criar intimidade com o tema. No entanto, isto eu não sei fazer. De
outra forma eu poderia partir para uma história familiar, ou várias, que me dão
entusiasmo para redigir estas linhas. Seguramente não saberia ser justo com os
envolvidos, por não saber fazer o relato com justeza. E isso me é proibido.
Resta então inventar uma história verossímil o que, no momento significa me
cercar ainda mais de tudo aquilo que não pode ser, o que frequentemente recebe
o nome absurdo de “ficção”. No caso, foi o que acabei de fazer.
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