quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. Une politique de la langue: la Révolution française et les patois – l’enquête de Gregoire. Paris. Gallimard. 1975.
 
FRÉGIER, H.-A. Des classes sociales dangereuses de la population des grandes villes. Libraire Académie Royale de Médecine. Paris. 1838.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]
 

4- Retomando: selvagerismo e barbarismo são regiões, não propriamente conceitos; são províncias carentes de sentido que exprimem, por sua vez, carência de sentido; como o são os bairros operários que serviriam, de alguma forma, de prova factual (matters of fact) das teses sobre a degenerescência da raça humana. Aqui não estaríamos falando, contudo, de Tylor cujo trabalho em grande parte trabalha na dissociação entre bárbaro e selvagem, e favor do segundo que por sua vez, tem os seus bárbaros também. No entanto, fica claro que a selvageria é compreendida, e aqui me repito, como uma região.  Vale a ressalva de que uma região não implica por sua vez uma distância, seja ela espacial ou temporal.

            What kind of evidence can direct observation and history give us to the degradation of men from civilized condition toward that of savagery? In our great cities, the so-called “dangerous classes” are sunk in hideous misery and depravity. If we have to strike a balance between the Papuans of New Caledonia and the communities of European beggars and thieves, we may sadly acknowledge that we have in our midst something worse than savagery. But is not savagery; it is broken-down civilization.”(Tylor, 1873:38)

            Permita-me, no entanto, que eu me corrija. Fosse uma errata eu diria: “em regiões, leia-se biomas” – ou environment.

            Thus, the savage life is essentially devoted to gaining subsistence from nature, which is just what proletarian life is not. Their relations to civilized life – the one of independence, the other of dependence – are absolutely opposite. To my mind the popular phrases about “city savages” and “street Arabs” seem like comparing a ruined house to a builder’s  yard. It is more to the purpose to notice how war and misrule, famine and pestilence, have again and again devastated countries, reduced their population to miserable remnants, and lowered their level of civilization, and how the isolated life of wild country  districts seems sometimes tending toward a state of savagery. So far as we know, however, none of these causes have ever really reproduced a savage community.”(Tylor, 1873:38-39)

            Convém recuperar, aproveitando o jargão inaugurado por Pierre Clastres e, fundamentalmente, Marshall Sahlins, a respeito da caracterização do selvagem como ser vivo em estado de carência. Se de alguma forma há analogia com o proletariado, o é no sentido rigoroso ainda que pese certa diferença constitutiva. Vejamos. O fato de haver alguma diferença entre selvagens e a classe operária (uma versão sob controle das classes sociais perigosas, que abrange todo tipo de gente) implica em dizer que uma possível degenerescência não é fruto direto da história humana como tal, mas de carências específicas produzidas ao longo do curso. Um exemplo disso é o que Frégier determina como sendo a falta de instrução o que faz do proletariado uma classe sociale dangereuse[1]. No limite, o que Tylor defende é que o barbarismo moderno não é imanente à condição humana em um determinado estágio evolutivo, mas um efeito marginal da civilização que os selvagens também produzem (“outcasts of savage life”, in Tylor, 1873:42). Civilizações específicas produzem marginais enquanto o progresso humano é, não somente inexorável, mas se dá em outras bases. O progresso é a marca da expansão (propagation) – e não algo como o desenvolvimento criativo – o que me leva a reconhecer que a excelência é fruto de um certo imperialismo, a saber aquele difundido pelo Império.

            As the evidence stands at present, it appears that when in any race some branches much excel the rest in culture, this more often happens by elevation than by subsistence. But this elevation is much more apt to be produced by foreign than native action. Civilization is a plant much oftener propagated than developed. As regards to the lower races, this accords with the results of European intercourse with savage tribes have survived the process, they have assimilated more or less of European culture and rise towards the European level, as in Polynesia, South Africa. Another important point becomes manifest from this ethnological survey. The fact that, during so many thousand years of known existence, neither the Aryan nor the Semitic stock appears to have thrown any direct savage off shot recognizable by the age-enduring test of language, tells, with some force, against the probability of degradation to the savage level ever happening from high-level civilization.”(Tylor, 1873:48)

            A distinção entre civilização e cultura, se retomarmos em parte as lições de Norbert Elias, que trafega pela região de indiferença, se dá finalmente por quem assimila os valores de excelência. A história do progresso dificilmente pode ser distinguida da história da tutela.


[1] Convém notar que o termo “classes sociais perigosas” que Tylor utiliza sem citação de fonte repete o título do estudo-panfleto de pedagogia de H.-A. Frégier publicado em 1838, que disserta sobre o melhoramento das mesmas classes sociais que põem a vida social em perigo. As preocupações de Frégier eram, antes de mais nada, de caráter policial uma vez que o mesmo era chefe da prefeitura do Sena (órgão policial). A apresentação dos limites da instrução pública em sua extensão com vista em atingir às populações mais pobres implica obviamente na proliferação de multidões emotivas uma vez que o uso da razão não lhes é impulsionado. Repetindo a fórmula de Geoffrey Sutton, não têm método, uma outra forma de dizer que não são suficientemente franceses – aquele que considerar esta fórmula abusiva, recomendável a leitura de Certeau (1975). Mesmo que Frégier não definisse as tais classes sociais por via do critério da ignorância, não seria difícil imaginar, especialmente após os processo revolucionário de 1879, quem poderiam ser e como são perigosas as classes às quais se refere. Um pouco de imaginação retórica permite imaginar ser desnecessário dizer quem são – da mesma forma que a solução apresentada diz respeito a uma determinada fórmula de tutela, aquela que emprega internatos públicos fortalecendo as ferramentas do Estado tutelar, o mesmo que se desdobra sobre os selvagens na diversidade da empresa colonial que fornece para Tylor seus dados e seus pesquisadores.

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