sábado, 20 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix (1996) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 2), São Paulo, 34. 

TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.



11-  Passemos a considerar os meios de propagação e então teremos que considerar o corpo humano como, ele mesmo, um ambiente, um meio, segundo reza a reflexão acerca da fisiologia de Claude Bernard. Assim, se no que tange o problema da economia moral em que a discussão a respeito da função social das esferas da vida, como a religião, se pauta em grande medida sobre a relação entre o indivíduo moral e a organização social que se impõe ao mesmo indivíduo em uma malha coercitiva. As considerações a respeito dos meios de propagação comunicativa da imitação social, como a proposta por Tarde,  tem como objeto o borramento das fronteiras  em questão, a saber, entre o social e o individual e, por conseguinte, fazendo da sociedade uma caixa de ressonância que atinge escalas infinitesimalmente pequenos e infinitesimalmente grandes. Ainda que mobilizado por meio de forças psíquicas sem as quais nenhum argumento poderia fazer sentido, a discussão acerca da economia moral tem um fator determinante que marca a exterioridade da sociedade a qual, na versão sonambúlica de Gabriel Tarde, encontramos uma variação temática enorme a respeito sobre qual é o continente e qual seria o conteúdo impedindo a estabilidade de qualquer forma de exterioridade. Na verdade, muito pelo contrário, só o que está dentro importa.
            É importante ressaltar não haver na epiderme das relações qualquer fronteira em que o Estado-nação seja, na medida da doutrina sobre os dois corpos do rei, um análogo perfeito do corpo tal como inventara a criação fisiocrata. O que importa é compreender como a ressonância se dá, por quais meios, com qual intensidade e extensão, não importando a priori a imposição das zonas limítrofes do território, como aqueles que demarcariam a existência da Nigrícia como zona bárbara para além do Mediterrâneo. Tarde parte da premissa de que o social é parte constituinte das repetições ondulatórias daquilo que é vital e, não podendo agir por meios exclusivamente sociais (relativos à ordem moral da morfologia dos agrupamentos e seus direitos constituídos), opera segundo a materialidade que lhe é própria sem com isso induzir a nenhuma forma de materialismo. Um mesmo terremoto cujo epicentro seja o mar Mediterrâneo ondula tanto na face africana quanto na face européia da sua costa, ainda que de forma desigual.
           
            Creio me conformar, (...) ao método científico mais rigoroso ao buscar esclarecer o complexo pelo simples, a combinação pelo elemento e a explicar o liame social misturado e complicado, segundo nós o conhecemos, por via do ambiente social mais puro e reduzido à mais simples expressão a qual, por instrução do sociólogo é realizada com sucesso no estado sonambúlico.” (Tarde, 2001:136)

            E mais adiante:

            Suponha um homem que, subtraído hipoteticamente de toda influência extra-social, em contato direto com os objetos naturais, em meio às obsessões espontâneas dos seus diversos sentidos sem travar comunicação senão com seus semelhantes  ou, então, como somente um dos seus semelhantes, para simplificar a questão. Não seria então recomendável estudar justamente este sujeito de escolha, por experiência e observação, em suas características verdadeiramente essenciais quanto às relações sociais, desembaraçado assim de toda e qualquer influência das ordens física e naturais próprias a lhe complicarem? Mas o hipnotismo e o sonambulismo não são eles precisamente a realização desta hipótese?”(Tarde, 2001:136-137)

            Nem anormal, tampouco condição limite. Na verdade, mais uma variação do tema “idéias sugeridas que se crêem espontâneas” uma vez que a sociedade propaga a ilusão de repetição em um mecanismo similar, ou mesmo idêntico àquele estabelecido pelo magnetismo animal – não tratando aqui o conceito de ilusão com o de mentira, o que talvez possa ser melhor descrito pelo conceito redundante de fazer-fazer (Deleuze & Guattari, 1996) que é, notemos bem, uma repetição ele mesmo e que não denuncia senão o tipo de movimento próprio ao que se passa, por exemplo, no exercício da intimidação. Eis a situação na qual o intimidado  escapa de si mesmo de forma a ser manipulável e maleável pela ação de outrem ainda que tente resistir que é, de qualquer forma, assaz similar ao estado sonambúlico; e à imitação da linguagem primitiva que não faz outra coisa senão se repetir, o que é próprio do domínio da estatística, por sinal.

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