quarta-feira, 5 de março de 2014

AInda não: crônica crônica de carnaval.


          Foi então que pisei fora de casa. Não dei a menor bola para os helicópteros sobrevoando a avenida Santa Isabel e mesmo ao som das primeiras explosões. Pirotecnia, ambos, da Polícia Militar e de foliões que sempre usam da sorte para explodir latinhas e assustar transeuntes. Afinal, aqui é terra em que se comemoram natais com fogos de artifício. Muitos, ainda que sem o acompanhamento de gritos desesperados perfazendo a melodia “filhos-da-puta” que, por fim, moveram-me do sofá. Que pese o fato de eu não estranhar mais sobrevoos de helicópteros policiais e de conviver com gente que explode coisas por diversão, como eu mesmo fiz na adolescência. A
tensão dos gritos estava alguns tons acima do desconforto habitual de morar em Barão Geraldo, Campinas.
            Esta que é uma ilha num mar de abjeção urbana, é ela mesma uma abjeção. Só é uma ilha porque perdura sua forma intangível de ser a Terra do Nunca que abriga a Unicamp, em que Nunca segue presidindo todas as atividades.  A mesma Terra do Nunca  com facções diversas de Meninos Perdidos que mal e porcamente povoam as ruas. Na verdade, não, porque voam não tocando o chão, overdose de toques de fada Sininho. Esta mesma ilha está pipocada de violações aos hábitos civis banais. Há um toque de recolher implícito que faz das ruas um ambiente deserto às 21 horas, toque este acompanhado pelas ruas escuras de uma iluminação tenebrosa que permitia às fantasias de vampiro de outrora, quando eu explodia coisas, a mais palpável verossimilhança. Quando adolescente, temido por quem cruzasse na rua – ainda que este fosse, em geral, ninguém. Minha mãe sempre temerosa, calculava o pranto na possibilidade de um acontecimento infeliz e, no entanto, nunca.
            Quando pisei fora de casa na madrugada de uma terça-feira de carnaval, ano de 2014, fomos invadidos pela força alheia. Vi carros atravessados na rua que me viu sair dos cueiros, não à forma irresponsável das oficinas mecânicas de interromperem a calçada irregular, mas nos contornos do desespero coletivo. Choro, raiva, trânsito interrompido. Tosse seca, algumas doloridas e outras tantas fingidas com o ofício daquele que não perde a oportunidade de participar da História. As fantasias já não importavam mais pois, assim se via, todos estavam nus. Todos? Olhei sobre o ombro direito. Parecia um milagre. Um acontecimento. Trinta sombras de escudo em riste e bastões intercalados com canudos de soltar projéteis. Andavam acuados por um enorme vazio em que as ruas, já depois das 21 horas, travestiam. Seguiam rumo à Av. J.B. de Oliveira, saindo da outra avenida, Santa Isabel, a mesma frequentemente visitada pelo som dos helicópteros em rasante. As trinta sombras, com ombreiras ovaladas, partes de corpo em brilho fosco do negrume das peças aconteciam ao som de bombas e marcha. O silêncio vinha de outra parte, era o samba quem havia calado.
            Do portão de casa até a Praça do Côco é uma caminhada de levar a avó. Coisa pouca para chegar em um terreno em que o que se dá, basicamente, são reuniões de fazer nada, o epicentro descontraído da Terra do Nunca. Uma ilha em uma ilha, o golpe parece ter atingido o pâncreas do eterno esconderijo produzindo tão e simplesmente a bile que sobra do cansaço do corpo após o envenenamento recreativo dos dias de carnaval. Os gritos de desespero e ofensa só faziam crescer na exata medida em que não somente o samba fora silenciado, mas colocado em uma escala negativa do canto roubado. Mais uma bomba de gás. Acompanho as sombras desde atrás, com uma distância saudável, a saúde de quem caminha olhando a nuca alheia. Viro a esquina da rua de casa, à esquerda, e sigo até a Praça do Côco, onde o derradeiro ambulante desmonta a parafernália devidamente esbaforido e revoltado. Porque não estava acontecendo nada que não fosse samba, foi assim que ouvi da boca dele, e que tudo o que se deu foram gás e balas de borracha. Um ou outro fantasma, vindo de outros momentos deste evento máximo, o primeiro, repetiam a ladainha que se assume ares de voz maldita, aquela que diz ter visto não saber o que aconteceu. Não importa por onde a história começa, não há quem afirme saber de onde veio o golpe.
            Foi o suficiente para me distrair - o que deveria ter servido de sinal, para eu não me enganar, não levar em conta a possibilidade de estar no mesmo evento em que eu pude contar 30 sombras. Naquilo que deveria ter sido o caos e o medo, parar e conversar com quem tinha muito o que perder em simplesmente correr. E distraído, perceber carro, equipamentos e mercadoria que serviram de âncora para uma dúzia de pessoas que persistiam em ficar na mesma praça que abandonariam minutos depois. Mas não havia mais ninguém além daqueles que, nas contas decisivas, eram os derradeiros. E no entanto, as sombras seguiam no exercício. Passos marcados e, logo mais, o som de sua própria verve percussiva. Bastões sorvendo os escudos da cadência interrompida para uma multidão ausente, dispersa sem nunca ter se aglomerado. Um curto ensaio musical chegando à zona de dispersão, 5 viaturas da força especial aguardando pacientemente sua ala sombria que agira no mais seguro anonimato da noite desabitada. Uma curta comemoração e então o preto fosco das peças duras cede ao tecido cinza de homens que partiam sem praticar o ofício policial de averiguar, investigar, reconhecer. Saíram de costas para dar a impressão de que estavam chegando, sem luz, sem som, sem sombra.
            Passei a madrugada em claro, contando e levantando detalhes, divulgando a boa nova de que não éramos mais a Terra do Nunca e que tínhamos quebrado com a maldição das facções. Os Garotos Perdidos poderiam voltar para casa. Mas diz a informação do ministro do alcaide que não, que nada, que nunca. Como antes. Os calos nos pés reforçados por minha sandália ruim são, por fim, uma história interrompida e já é tarde demais para reaprender a voar.
             Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.

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