terça-feira, 11 de março de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.


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            Esses “caros desaparecidos” que domesticamos nas fachadas do pensamento, envidraçados, isolados, maquiados e oferecidos assim à edificação ou destinados à exemplaridade. E então os vemos escapar de nossa empreitada. Eles se transformaram em “selvagens” na medida em que sua vida e obras apareceram mais estreitamente ligados a um tempo passado. Tal mutação do “objeto” estudado corresponderia mais adiante à evolução da pesquisa que veio a ser, pouco a pouco, “histórica”, pois isso que caracteriza um trabalho como “histórico”, isso que permite dizer que se “faz história” (no sentido em que a “produzimos” como em uma fábrica de automóveis), não é a aplicação exata das regras estabelecidas (ainda que este rigor seja necessário). É a operação que cria um espaço de signos proporcionados a uma ausência; que organiza o reconhecimento de um passado, não à maneira da possessão presente de mais um conhecimento, mas sob a forma de um discurso organizado para uma presença ausente; que, para o tratamento do material então disperso em nosso tempo ofereça lugar na linguagem e remeter à morte.” (Certeau, 2005:47)
           
            Não é difícil encontrar a relação íntima entre os fragmentos de teoria da história de Walter Benjamim e o tempo saturado de “agora” e a conformação do lugar do outro na história defendida por Michel de Certeau. A vida mística de Jean-Joseph Surin, exorcista jesuíta responsável pelo caso de Loudun no século XVII, é reconstituída como a figura de Paul Klee, Angelus Silesius. O silêncio da mística é posta em par com a acídia, com a empatia com a derrota de uma frente e que, ainda que derrotada, segue combatente. Se o primeiro excurso se deu às voltas com a perseguição heresiológica, o segundo movimento tem como alvo o discurso místico, aquele que diz o indizível e que, respeitando a história da instituição católica, é aquele que, todo o tempo, é quase herético[1] - quando não herético integralmente. Não cabendo condenar a condenação, a historiografia deve zelar para uma dimensão importante, a que pergunta “o que foi que aconteceu?”. Recuperar a dimensão polêmica da mística, no caso, é abrir espaço para uma nova articulação dada em um lugar em que a condenação não se dê restituindo à ação jogada às ruínas uma gama de sentidos possíveis – sua contingência de um tempo presente.
Angelus Silesius, de Paul Klee, a reunião impossível em um outro lugar.
            O caso é que Surin foi esquartejado. Não fisicamente, como se deu com Urban Grandier. Surin foi esquartejado em arquivos diversos num percurso editorial que para merecer a marca de labiríntica seria conceder ao desenho uma marca geométrica irreal. Não há nada que nos lembre o piso da catedral de Chartres aqui, porque as linhas são interrompidas, os percursos feitos em saltos e os escritos dispostos numa ordem que respeita mais o sigilo editorial de diversas gavetas de guardados do que uma estante temática de uma biblioteca. A unidade é garantida, mas incomunicável porque não fala a nossa língua, mas a dos anjos. A história por sua vez dispersa aquilo que de outra forma seria unidade e Michel de Certeau reuniu por uma década a dispersa editorial que acolhiam os escritos de Surin vindo a publicar, então, suas correspondências, seus exercícios espirituais (Guide de la Perfection) e o registro de suas atividades como exorcista. O trabalho é cuidadosamente reconstituído no primeiro volume de La Fable Mystique em que os arquivos e as edições de seus trabalhos são cuidadosamente elencados na abertura do último capítulo do livro. O que vemos nesta história, que é também a história da mística em uma versão microcósmica – ou monadológica – é a história de um homem arruinado, isto é, posto em ruína em que tudo o que lhe faz restar são escombros de papel redigido. Mas o caso da mística, assim como o as considerações sobre a heresia, oferecem um conteúdo a mais nesta história. O discurso místico fará as vezes de fala selvagem, uma das quais preenchem as lacunas da experiência que a temática do progresso insiste em anular.
            Surin não será, contudo, um cristão exemplar. Michel de Certeau, quem seguramente conhece muito bem a economia da exemplaridade tem a diferença histórica em outra conta. Vê nos cristão de outrora a unidade do cristianismo ainda que ao confrontá-los, não se reconheça neles. E aqui a mediação da linguagem é, toda ela, um problema a parte. E especial. Porque se trata da mística que é a arte de dizer escondido – ou de não dizer, de gaguejar, de transpirar a experiência.

            O problema da linguagem constitui um dos grandes debates literários, filosóficos e religiosos do período atravessado por Surin. Ele organiza sua obra em uma dialética da língua (sistema que definira e ocupa todo o campo do mundo) e da linguagem de Deus (a experiência espiritual que a “língua não pode exprimir” e que “não pode ser nomeada”). Em Surin não se instaura nenhuma linguagem acerca da verdade – posta ao lado do que é mundano. Somente um “estilo”, uma maneira de falar pode articular sobre a “língua” (esse dado prévio e universal) a “linguagem de Deus” (um corte): as “feridas” do espírito marcam na língua, progressivamente, seu estatuto de ser despossuído de seu Outro sem substitui-lo por qualquer outra coisa que lhe fale diretamente.” (2005:46)

            Em outras palavras, o discurso místico dificilmente disse algo que não seja sua forma de dizer. Porque, aproximando-o de um jargão epistemológico só se trata de linguagem positiva quando a linguagem é outra, de uma instância completamente Outra, Estrangeira em sua forma radical. Quando articulada na língua em que a história se efetiva, é pura negatividade perfazendo a curva assintótica que Thomas Csordas[2] tenta recuperar em suas diversas incursões etnográficas no universo da cura, tanto carismática quanto xamânica, o ponto no infinito em que a curva da língua dos homens se cruza com a curva da língua dos anjos num exercício que não se cansa de clamar pelo suporte de William Blake. O trabalho historiográfico, aqui, não é o de coleta de fontes, mas do exercício criativo de correlacionar e se relacionar com
aquilo que resta de Outrem. Não sendo um esforço de folclorizar o tempo alheio, é uma forma de restituir ao presente uma outra fonte passada fazendo do presente, ele mesmo, uma nova forma de relação.

            Não se pode então reduzir a história à relação que lhe entretém com o desaparecido. Se ela não é possível sem os “acontecimentos” dos quais trata, ela resulta ainda mais em um presente. Com relação ao que se passou, passado, supõe então uma lacuna que é o ato mesmo de se constituir como existente e pensante, hoje.” (op.cit.49)

            O campo da mística é um campo em que a dimensão da experiência se põe de forma radical porque intangível. É a expressão do tempo vivido em que nenhuma homogeneidade próprias às vulgatas do iluminismo, ou mesmo a concepção de tempo profano de Eliade e Guénon podem aceitar porque a dimensão do acontecimento é um obstáculo para a noção da continuidade. A primeira frase do14º fragmento da teoria da história de Walter Benjamim antecipa aquilo que será a raiz do discurso historiográfico de Michel de Certeau, a de que a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras” (Benjamim, 1996:229) em que a correlação é a oferta de um lugar sem que, assim, o historiador fale no lugar de Outrem.
           
           
           


[1] O caso de Mestre Eckhart é ilustrativo. Místico de primeira grandeza foi alvo de processo inquisitorial em 1326 pelo arcebispo de Colônia, Henrique de Virneburg. O franciscano condena 126 proposições de autor de Da divina consolação. A acusação de heresia nadou no paroxismo próprio da expressão da mística. Eckart vai à Avignon no ano seguinte apresentar seu protesto. Em 27 de março de 1329 o Papa João XXII condena 28 das 126 proposições por terem se aproximado demasiadamente de fabulações vindo a terminar a causa com o seguinte dispositivo: “Nós... expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos e alguns deles.” (Eckhart, 1999:27, introdução de Leonardo Boff, grifo meu). Ao lermos os escritos de ciência experimental de Jean-Joseph Surin, vemos que o jesuíta que conduziu o exorcismo das irmãs ursulinas de Loudun quase teve a mesma sorte.
[2] http://cilas.ucsd.edu/_files/faculty-cvs/csordas_thomas.pdf

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