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“Esses “caros desaparecidos” que domesticamos
nas fachadas do pensamento, envidraçados, isolados, maquiados e oferecidos
assim à edificação ou destinados à exemplaridade. E então os vemos escapar de
nossa empreitada. Eles se transformaram em
“selvagens” na medida em que sua vida e obras apareceram mais estreitamente
ligados a um tempo passado. Tal mutação do “objeto” estudado corresponderia
mais adiante à evolução da pesquisa que veio
a ser, pouco a pouco, “histórica”, pois isso que caracteriza um trabalho
como “histórico”, isso que permite dizer que se “faz história” (no sentido em
que a “produzimos” como em uma fábrica de automóveis), não é a aplicação exata
das regras estabelecidas (ainda que este rigor seja necessário). É a operação
que cria um espaço de signos proporcionados a uma ausência; que organiza o
reconhecimento de um passado, não à maneira da possessão presente de mais um
conhecimento, mas sob a forma de um
discurso organizado para uma presença ausente; que, para o tratamento do
material então disperso em nosso tempo ofereça lugar na linguagem e remeter à
morte.” (Certeau, 2005:47)
Não é difícil
encontrar a relação íntima entre os fragmentos de teoria da história de Walter
Benjamim e o tempo saturado de “agora” e a conformação do lugar do outro na história defendida por Michel de Certeau. A vida
mística de Jean-Joseph Surin, exorcista jesuíta responsável pelo caso de Loudun
no século XVII, é reconstituída como a figura de Paul Klee, Angelus Silesius. O silêncio da mística
é posta em par com a acídia, com a empatia com a derrota de uma frente e que,
ainda que derrotada, segue combatente. Se o primeiro excurso se deu às voltas
com a perseguição heresiológica, o segundo movimento tem como alvo o discurso
místico, aquele que diz o indizível e que, respeitando a história da
instituição católica, é aquele que, todo o tempo, é quase herético[1] -
quando não herético integralmente. Não cabendo condenar a condenação, a
historiografia deve zelar para uma dimensão importante, a que pergunta “o que
foi que aconteceu?”. Recuperar a dimensão polêmica da mística, no caso, é abrir
espaço para uma nova articulação dada em um lugar em que a condenação não se dê
restituindo à ação jogada às ruínas uma gama de sentidos possíveis – sua
contingência de um tempo presente.
Angelus Silesius, de Paul Klee, a reunião impossível em um outro lugar. |
O caso é que
Surin foi esquartejado. Não fisicamente, como se deu com Urban Grandier.
Surin foi esquartejado em arquivos diversos num percurso editorial que para
merecer a marca de labiríntica seria conceder ao desenho uma marca geométrica
irreal. Não há nada que nos lembre o piso da catedral de Chartres aqui, porque
as linhas são interrompidas, os percursos feitos em saltos e os escritos
dispostos numa ordem que respeita mais o sigilo editorial de diversas gavetas
de guardados do que uma estante temática de uma biblioteca. A unidade é
garantida, mas incomunicável porque não fala a nossa língua, mas a dos anjos. A
história por sua vez dispersa aquilo que de outra forma seria unidade e Michel
de Certeau reuniu por uma década a dispersa editorial que acolhiam os escritos
de Surin vindo a publicar, então, suas correspondências, seus exercícios
espirituais (Guide de la Perfection)
e o registro de suas atividades como exorcista. O trabalho é cuidadosamente
reconstituído no primeiro volume de La
Fable Mystique em que os arquivos e as edições de seus trabalhos são
cuidadosamente elencados na abertura do último capítulo do livro. O que vemos
nesta história, que é também a história da mística em uma versão microcósmica –
ou monadológica – é a história de um homem arruinado, isto é, posto em ruína em
que tudo o que lhe faz restar são escombros de papel redigido. Mas o caso da
mística, assim como o as considerações sobre a heresia, oferecem um conteúdo a
mais nesta história. O discurso místico fará as vezes de fala selvagem, uma das
quais preenchem as lacunas da experiência que a temática do progresso insiste
em anular.
Surin não
será, contudo, um cristão exemplar. Michel de Certeau, quem seguramente conhece
muito bem a economia da exemplaridade tem a diferença histórica em outra conta.
Vê nos cristão de outrora a unidade do cristianismo ainda que ao confrontá-los,
não se reconheça neles. E aqui a mediação da linguagem é, toda ela, um problema
a parte. E especial. Porque se trata da mística que é a arte de dizer escondido
– ou de não dizer, de gaguejar, de transpirar a experiência.
“O problema da linguagem constitui um dos grandes debates literários, filosóficos
e religiosos do período atravessado por Surin. Ele organiza sua obra em uma
dialética da língua (sistema que
definira e ocupa todo o campo do mundo) e da linguagem de Deus (a experiência espiritual que a “língua não pode
exprimir” e que “não pode ser nomeada”). Em Surin não se instaura nenhuma
linguagem acerca da verdade – posta ao lado do que é mundano. Somente um
“estilo”, uma maneira de falar pode
articular sobre a “língua” (esse dado prévio e universal) a “linguagem de Deus”
(um corte): as “feridas” do espírito marcam na língua, progressivamente, seu
estatuto de ser despossuído de seu Outro sem substitui-lo por qualquer outra
coisa que lhe fale diretamente.” (2005:46)
Em outras
palavras, o discurso místico dificilmente disse algo que não seja sua forma de
dizer. Porque, aproximando-o de um jargão epistemológico só se trata de
linguagem positiva quando a linguagem é outra, de uma instância completamente
Outra, Estrangeira em sua forma radical. Quando articulada na língua em que a
história se efetiva, é pura negatividade perfazendo a curva assintótica que
Thomas Csordas[2]
tenta recuperar em suas diversas incursões etnográficas no universo da cura,
tanto carismática quanto xamânica, o ponto no infinito em que a curva da língua
dos homens se cruza com a curva da língua dos anjos num exercício que não se cansa de clamar pelo suporte de William Blake. O trabalho
historiográfico, aqui, não é o de coleta de fontes, mas do exercício criativo de
correlacionar e se relacionar com
aquilo que resta de Outrem. Não sendo um esforço de folclorizar o
tempo alheio, é uma forma de restituir ao presente uma outra fonte passada
fazendo do presente, ele mesmo, uma nova forma de relação.
“Não se pode então reduzir a história à
relação que lhe entretém com o desaparecido. Se ela não é possível sem os “acontecimentos” dos quais trata, ela
resulta ainda mais em um presente. Com relação ao que se passou, passado, supõe
então uma lacuna que é o ato mesmo
de se constituir como existente e pensante, hoje.” (op.cit.49)
O campo da mística
é um campo em que a dimensão da experiência se põe de forma radical porque
intangível. É a expressão do tempo vivido em que nenhuma homogeneidade próprias
às vulgatas do iluminismo, ou mesmo a concepção de tempo profano de Eliade e Guénon
podem aceitar porque a dimensão do acontecimento é um obstáculo para a noção da
continuidade. A primeira frase do14º fragmento da teoria da história de Walter
Benjamim antecipa aquilo que será a raiz do discurso historiográfico de Michel
de Certeau, a de que a história é objeto
de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de “agoras” (Benjamim, 1996:229) em que a correlação é a oferta de
um lugar sem que, assim, o historiador fale no lugar de Outrem.
[1] O caso de Mestre Eckhart é ilustrativo. Místico de
primeira grandeza foi alvo de processo inquisitorial em 1326 pelo arcebispo de
Colônia, Henrique de Virneburg. O franciscano condena 126 proposições de autor
de Da divina consolação. A acusação
de heresia nadou no paroxismo próprio da expressão da mística. Eckart vai à
Avignon no ano seguinte apresentar seu protesto. Em 27 de março de 1329 o Papa
João XXII condena 28 das 126 proposições por terem se aproximado demasiadamente
de fabulações vindo a terminar a causa com o seguinte dispositivo: “Nós...
expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois
últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os
opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos e alguns deles.”
(Eckhart, 1999:27, introdução de Leonardo Boff, grifo meu). Ao lermos os escritos
de ciência experimental de Jean-Joseph Surin, vemos que o jesuíta que conduziu
o exorcismo das irmãs ursulinas de Loudun quase teve a mesma sorte.
[2]
http://cilas.ucsd.edu/_files/faculty-cvs/csordas_thomas.pdf
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