CERTEAU, Michel
de. A escrita da história.
Forense Universitária. Rio de Janeiro.
1982.
________________________.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica
e crise : uma contribuição à patogênese do mundo
burguês.
Contraponto. Rio de Janeiro. 1999.
RIGAUX, François. A lei dos juízes. Martins Fontes. São
Paulo. 2003.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.
Talvez seja
importante lembrar que no mesmo período em que o artigo que serve de capítulo
de abertura de Le lieu de l’autre,
Michel de Certeau publicava seu L’écriture
de l’histoire, publicado no Brasil em 1982. O que o artigo em questão
desenvolve, assim parece, ou retomam aquilo que é o propósito do livro de 1975
ou, de outra forma, aprofundam temas que foram abordados de forma demasiado
sumária. A seção sobre a heresia e a redistribuição do espaço que serve de
abertura para Le lieu de l’autre
serve como nota daquilo que parece cumprir uma etapa da reflexão do historiador
jesuíta no qual se lê o desenlace da territorialização da fé – um capítulo da
história do cristianismo extremamente fecundo, igualmente posto como elemento
central nas sociologias de Max Weber e Ernst Troeltsch e na historiografia de
Ernst Hartwig Kantorowicz. No caso de Weber é desnecessário citar a recorrência
do problema da dominação como conformação ética e jurídica do balanço entre
autoridade e poder político, fartamente discutidos em uma seção considerável de
Economia e Sociedade, para não dizer
em outros tantos trabalhos do mesmo, inclusive os de teor propriamente
metodológico. Troeltsch, ainda que menos comentado, é responsável por um
tratado em que o que encontramos é fundamentalmente uma sociologia da história
institucional da igreja católica e o papel fundamental das igrejas territoriais (landeskirchen)
na formação da cristandade, particularmente no medievo posterior de quando das
ameaças oriundas da pressão geopolítica do islã, por um lado e, de outro, a
emergência dos principados protestantes já na emergência do Renascimento –
tratado complementado pelos seminários sobre protestantismo e modernidade. Por
sua vez Kantorowikz é responsável por uma historiografia da metáfora dos dois
corpos do rei sendo o segundo a representação da continuidade da Coroa na forma
de uma pessoa imortal e co-extensiva ao território, este lido como análogo ao Corpus Mysticum do corpo eucarístico
cristão que, não menos importante, tem no fisco uma das formas essenciais de
sua manipulação (The King’s Two Bodies).
Os capítulos
desta história podem ser estendidos para o ensaísmo de Arthur Versluis, os trabalhos seminais de Carl Schmitt e Hans Blumenberg, e a
historiografia dos dispositivos de perseguição de Bob Ian Moore. Contudo seria ocioso, e eu incapaz de levar
adiante o esforço em ser exaustivo na apresentação de uma bibliografia em que
seja posta a questão da organização política da fé como um problema de
instituição do espaço, a formação dos termos de conciliação dos povos irmãos e
a definição do lugar do outro, tema que dá nome à coletânea do livro de Michel
de Certeau. Como historiador de Certeau está longe de ser um escritor
convencional. A organização meramente cronológica das fontes não é suficiente
para a crítica das mesmas, e sua prosa não se permite cair no engodo da
anterioridade quando, no final das contas, aquilo que veio depois pode e
frequentemente determina aquilo que o historiador coloca como origem histórica
de algo. Mais atento ao que ele mesmo chama de deslocamento nos quadros de referência em uma especialidade
particular da historiografia – história da religião na modernidade clássica
europeia -, de Certeau se volta frequentemente para dois movimentos. O
primeiro, aquilo que constitui o esforço integrativo da igreja ser a igreja não
a despeito, mas por causa de suas diversas dimensões e contradições – o que é
obrigatório quando se escreve desde o ponto de vista da Companhia de Jesus,
tantas vezes colocada sob suspeição teológica. O segundo diz respeito ao objeto
que chama a atenção do historiador francês, a saber, o arco narrativo da
religião na era moderna:
“Para esboçar inicialmente esta trajetória de
uma maneira global, e tal como se anuncia, pode-se dizer que os séculos XVII e
XVIII mostram a história de um divórcio. Não que as relações entre “moral” e
“religião” tenham sido harmoniosas ou fáceis anteriormente. Muitos trabalhos o
demonstram: elas foram tempestuosas, nunca estabilizadas, por exemplo, naquilo
que se refere à usura, à sexualidade e ao poder temporal[1],
mas o princípio referencial de sua união não fora posto em causa. No decorrer
da Idade Média, e ainda no século XVI, continua-se admitindo que a moral e a
religião tem uma mesma fonte: a
referencia ao Deus único organiza, em conjunto, uma revelação histórica e uma
ordem do cosmo; ela faz das instituições cristãs a legibilidade de uma lei do
mundo. A sociedade se articula nos termos de uma crença integrativa.”(1982:153)
Aquilo que
fundamenta a ordem jurídica dos espaços em modernização abandona critério
católico/eclesiástico de jurisdição vindo a instaurar progressivamente outras
formas de reconhecimento da legalidade e da correção de uma ação qualquer,
assim como aquele que é passivo de um juízo ordinário a este respeito[2].
“Dito de outra maneira, a ética representa o
papel antigamente outorgado à teologia. Uma “ciência dos costumes”, de agora em
diante, julga a ideologia religiosa
e seus efeitos, lá onde a “ciência da fé” classificou os comportamentos em uma
subseção intitulada “teologia moral”, e hierarquiza as condutas segundo os
códigos da doutrina. Desta evolução existem vários sinais: o primado epistemológico
da ética na reflexão sobre a sociedade; a apreciação da religião segundo
“valores” que não são mais os seus (o bem comum, a exigência da consciência, o
progresso, etc.); a retirada da religião para as “práticas religiosas” ou o seu
alinhamento com as categorias impostas por uma sociedade; a marginalização do
culto com relação à lei civil ou moral; etc.” (op.cit.:154)
Nos deslocamentos dos quadros de referência
que não deixam de apontar para uma certa leitura de Michel Foucault e suas eras
epistemológicas postas no território da prática mais vulgar, encontramos uma
convergência entre o domínio temático que fornece o objeto empírico e o
problema da ordem metodológica que discute a sua objetividade. Porque o que
está em questão nos ensaios do historiador, neste período, não é a redação de
sumas cronológicas mas sua problematização em seu afazer. Neste afazer de
proporções metodológicas o tema da heresia – ou a redistribuição do espaço[3]
- merece atenção especial não somente por ser a primeira seção do artigo, mas
por ser um problema reincidente. No artigo sobre a formalidade das práticas é o deslocamento da ortodoxia – de
teológica para uma ortodoxia legal-estatista – que propicia e condiciona a
transformação da heresia em alteridade em que seja pesada a seu desvio
propriamente social, conceito chave
para a constituição de unidade contra a qual uma heresia deve atentar. A afirmação central das Luzes é a da
legalidade e da inteligibilidade, afirmara Pierre Chaunu. É a uniformidade da Lei como critério de união
que a conversão da heresia deve se dar.
Do ponto de
vista metodológico que não abre mão ao menos da inteligibilidade, a heresia se
apresenta como legibilidade doutrinal de
um conflito social apresentada como forma binária, do mesmo tipo que
outrora teria pautado debates como o que se dera entre David Maybury-Lewis e
Claude Lévi-Strauss – do dual societies
exist? No final das contas são dualismos, ou tensões duais em que o
critério político é recuperado, aquele que define estar dentro ou fora da
Igreja, ser ou não ser cidadão, estar incluído ou excluído do grupo – no que
pese o paradoxo do soberano, o excluído que inclui. Assim, clérigos/burocratas
(clercs) e sua leitura das práticas
intelectuais e teológicas de devoção rurais no século XV; a clivagem entre
Norte e Sul no século XVI no que tanjam as igrejas reformadas e a Reforma
tridentina; o universo da querela dos Antigos e Modernos que se reflete tanto
numa discussão diacrônica do progresso quanto a versão geográfica da
sincronização do progresso, também atendendo pelo nome de colonização; são
estes os elementos que Certeau considera determinantes para a proliferação da heresia que vai
culminar, como vimos, em uma nova forma na qual a ordem eclesiástica perde o
monopólio do ajuizamento e quem ajuíza é exatamente o corpo que outrora era
somente o braço secular da cabeça eclesiástica, o Corpus Mysticum, cabeça e membros.
A heresia se transforma em cisma exatamente porque a primeira,
diluída nos conteúdos legais que não a reconhecem como tal mas sempre como
outra coisa – de um ponto de vista histórico e institucional interessado. Igrejas
assumem a face partidária e fidelidade e
divergência religiosas se politizam em fenômenos de reinterpretação social
(op.cit.:25).
“Os conteúdos
permanecem, mas submetidos a um tratamento novo que, proposto pelos cortes
perpetrados pelas cisões, apresenta-se mais tarde pela fórmula da gestão
política das diferenças. Os móveis herdados são redistribuídos em um novo
espaço que organiza uma outra maneira se os repartir e deles se servir. Sob
esse prisma a cisma amarrota os dados, fisga o gesto político ou científico de
reclassificar e de manipular. É um trabalho sobre a forma social – diferente e
complementar ao da evolução que, em outro caso, muda os conteúdos ainda que sem
modificar a forma social onde se dão os desdobramentos ideológicos.”
(id.ibid.)
O controle
de manifestações como os da feitiçaria e mesmo a problematização emergencial da
educação faz com que o movimento dos elementos constitutivos assuma sua clareza
brutal de reforma das instituições, sendo uma delas obviamente a eclesiástica. Esta
reforma que nos oferece um sentido muito mais radical e agressivo do que a mera
remissão ao evento protestante tem, aqui, o papel de oferecer ao problema da
gestão da diferença – uma variação particular de como encarar o governo de um
território – o recorte dos lugares onde se darão as práticas e a manifestação
da religião, isto é, da divergência perigosa. É o Ancien Régime, período em que
o acirramento das querelas passa a ser mediado por um ator que é gerido pela
Razão de Estado que tem por fim a qualidade de organizar as relações por
critérios exógenos aos grupos que passam a ser tratados, enfim, como população
(Foucault,2009:117-155). É neste território que as diferenças perigosas se
transformam mais e mais numa questão de foro privado (Koselleck, 1999), ou
seja, ajuizado pelos praticantes em sua associação particular fazendo
assemelhar igrejas de associações esportivas pelo efeito da cláusula arbitral
que exclui da competência jurisdicional aquilo que outrora fora reconhecido
como hierarquia (Rigaux, 2003:17-21). Da ordenação do lugar público sob julgo
do Estado, a ordenação particular das denominações em seus lugares de culto, em
estabelecimentos da fé cujo corte
organizador circunscreve um campo apropriado na superfície do mundo. Mas
que se entenda que o assunto é França e que a religião fracionada em
privacidade incomunicável é a católica. Porque o movimento contrário, o de
acirramento das diferenças perigosas, se dá na afirmação das diferenças ainda
que em foro privado. Já é possível ao menos dizer.
A escala desta discussão é, ainda assim,
enorme e aparentemente divorciada das práticas – algo similar ao divórcio entre
o religioso e o discurso moral. O divórcio se dá por uma espécie de holograma
do tempo das instituições que projetam significantes como se seu significado
estivesse dado na tradição e que a mesma fosse, por isso, sinal de estabilidade
semântica. Como se a relação entre símbolos e seus afazeres fossem da ordem da
fixidez, coisa que a história quantitativa de historiadores como Michel Vovelle
só fizeram reproduzir em atentar que é preciso fazer com que a tradição faça
sentido de novo, a cada ato. E que a tradição mesmo é uma operação deste tipo,
aquela que faz viger de novo o Antigo; fazer dizer de novo o indizível; figurar
mais uma vez o que se perdeu no tempo histórico na encenação da eternidade do
mundo. É neste plano que a ambivalência
do gesto se insinua sob a univocidade da cifra (2005:27). A recuperação das
dimensões práticas é, por fim, o horizonte da prática historiográfica que se
desdobra em escritura de textos: os que lê e os que escreve. Este pode ser, por
sua vez, um gesto etnográfico por excelência do tipo follow the native, especialmente por percorrer o universo do
silenciamento da religião e da emergência de dispositivos de dizer sobre aquilo
que deveria permanecer ausente do discurso dado os riscos que oferece. Dito de
outra forma, o registro escriturário daquilo que seria silêncio na comunicação
presente.
[1] Aqui de Certeau cita John T. Noonan.
[2] Os trabalhos de Robert
Mandrou sobre magistrados e feiticeiros no mesmo período, assim como os
trabalhos de Claude Reichler sobre diabolia, comédia e libertinagem são
exemplares na coleta da documentação que re-encena o divórcio da linguagem
sobre a moral da linguagem religiosa. O que é certo e o que é errado prescinde
de afirmações a respeito de Deus e mesmo, desde o plano enunciativo, de sua
existência – como é o caso de d’Holbach.
[3] Certeau (2005:23-26).
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