segunda-feira, 10 de março de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.


CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Forense Universitária. Rio de Janeiro.
1982.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise : uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Contraponto. Rio de Janeiro. 1999.
RIGAUX, François. A lei dos juízes. Martins Fontes. São Paulo. 2003.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.

            Talvez seja importante lembrar que no mesmo período em que o artigo que serve de capítulo de abertura de Le lieu de l’autre, Michel de Certeau publicava seu L’écriture de l’histoire, publicado no Brasil em 1982. O que o artigo em questão desenvolve, assim parece, ou retomam aquilo que é o propósito do livro de 1975 ou, de outra forma, aprofundam temas que foram abordados de forma demasiado sumária. A seção sobre a heresia e a redistribuição do espaço que serve de abertura para Le lieu de l’autre serve como nota daquilo que parece cumprir uma etapa da reflexão do historiador jesuíta no qual se lê o desenlace da territorialização da fé – um capítulo da história do cristianismo extremamente fecundo, igualmente posto como elemento central nas sociologias de Max Weber e Ernst Troeltsch e na historiografia de Ernst Hartwig Kantorowicz. No caso de Weber é desnecessário citar a recorrência do problema da dominação como conformação ética e jurídica do balanço entre autoridade e poder político, fartamente discutidos em uma seção considerável de Economia e Sociedade, para não dizer em outros tantos trabalhos do mesmo, inclusive os de teor propriamente metodológico. Troeltsch, ainda que menos comentado, é responsável por um tratado em que o que encontramos é fundamentalmente uma sociologia da história institucional da igreja católica e o papel fundamental das igrejas territoriais (landeskirchen) na formação da cristandade, particularmente no medievo posterior de quando das ameaças oriundas da pressão geopolítica do islã, por um lado e, de outro, a emergência dos principados protestantes já na emergência do Renascimento – tratado complementado pelos seminários sobre protestantismo e modernidade. Por sua vez Kantorowikz é responsável por uma historiografia da metáfora dos dois corpos do rei sendo o segundo a representação da continuidade da Coroa na forma de uma pessoa imortal e co-extensiva ao território, este lido como análogo ao Corpus Mysticum do corpo eucarístico cristão que, não menos importante, tem no fisco uma das formas essenciais de sua manipulação (The King’s Two Bodies).
            Os capítulos desta história podem ser estendidos para o ensaísmo de Arthur Versluis, os trabalhos seminais de Carl Schmitt e Hans Blumenberg, e a historiografia dos dispositivos de perseguição de Bob Ian Moore. Contudo seria ocioso, e eu incapaz de levar adiante o esforço em ser exaustivo na apresentação de uma bibliografia em que seja posta a questão da organização política da fé como um problema de instituição do espaço, a formação dos termos de conciliação dos povos irmãos e a definição do lugar do outro, tema que dá nome à coletânea do livro de Michel de Certeau. Como historiador de Certeau está longe de ser um escritor convencional. A organização meramente cronológica das fontes não é suficiente para a crítica das mesmas, e sua prosa não se permite cair no engodo da anterioridade quando, no final das contas, aquilo que veio depois pode e frequentemente determina aquilo que o historiador coloca como origem histórica de algo. Mais atento ao que ele mesmo chama de deslocamento nos quadros de referência em uma especialidade particular da historiografia – história da religião na modernidade clássica europeia -, de Certeau se volta frequentemente para dois movimentos. O primeiro, aquilo que constitui o esforço integrativo da igreja ser a igreja não a despeito, mas por causa de suas diversas dimensões e contradições – o que é obrigatório quando se escreve desde o ponto de vista da Companhia de Jesus, tantas vezes colocada sob suspeição teológica. O segundo diz respeito ao objeto que chama a atenção do historiador francês, a saber, o arco narrativo da religião na era moderna:

            Para esboçar inicialmente esta trajetória de uma maneira global, e tal como se anuncia, pode-se dizer que os séculos XVII e XVIII mostram a história de um divórcio. Não que as relações entre “moral” e “religião” tenham sido harmoniosas ou fáceis anteriormente. Muitos trabalhos o demonstram: elas foram tempestuosas, nunca estabilizadas, por exemplo, naquilo que se refere à usura, à sexualidade e ao poder temporal[1], mas o princípio referencial de sua união não fora posto em causa. No decorrer da Idade Média, e ainda no século XVI, continua-se admitindo que a moral e a religião tem uma mesma fonte: a referencia ao Deus único organiza, em conjunto, uma revelação histórica e uma ordem do cosmo; ela faz das instituições cristãs a legibilidade de uma lei do mundo. A sociedade se articula nos termos de uma crença integrativa.”(1982:153)

            Aquilo que fundamenta a ordem jurídica dos espaços em modernização abandona critério católico/eclesiástico de jurisdição vindo a instaurar progressivamente outras formas de reconhecimento da legalidade e da correção de uma ação qualquer, assim como aquele que é passivo de um juízo ordinário a este respeito[2].

            Dito de outra maneira, a ética representa o papel antigamente outorgado à teologia. Uma “ciência dos costumes”, de agora em diante, julga a ideologia religiosa e seus efeitos, lá onde a “ciência da fé” classificou os comportamentos em uma subseção intitulada “teologia moral”, e hierarquiza as condutas segundo os códigos da doutrina. Desta evolução existem vários sinais: o primado epistemológico da ética na reflexão sobre a sociedade; a apreciação da religião segundo “valores” que não são mais os seus (o bem comum, a exigência da consciência, o progresso, etc.); a retirada da religião para as “práticas religiosas” ou o seu alinhamento com as categorias impostas por uma sociedade; a marginalização do culto com relação à lei civil ou moral; etc.” (op.cit.:154)

            Nos deslocamentos dos quadros de referência que não deixam de apontar para uma certa leitura de Michel Foucault e suas eras epistemológicas postas no território da prática mais vulgar, encontramos uma convergência entre o domínio temático que fornece o objeto empírico e o problema da ordem metodológica que discute a sua objetividade. Porque o que está em questão nos ensaios do historiador, neste período, não é a redação de sumas cronológicas mas sua problematização em seu afazer. Neste afazer de proporções metodológicas o tema da heresia – ou a redistribuição do espaço[3] - merece atenção especial não somente por ser a primeira seção do artigo, mas por ser um problema reincidente. No artigo sobre a formalidade das práticas é o deslocamento da ortodoxia – de teológica para uma ortodoxia legal-estatista – que propicia e condiciona a transformação da heresia em alteridade em que seja pesada a seu desvio propriamente social, conceito chave para a constituição de unidade contra a qual uma heresia deve atentar. A afirmação central das Luzes é a da legalidade e da inteligibilidade, afirmara Pierre Chaunu.  É a uniformidade da Lei como critério de união que a conversão da heresia deve se dar.
            Do ponto de vista metodológico que não abre mão ao menos da inteligibilidade, a heresia se apresenta como legibilidade doutrinal de um conflito social apresentada como forma binária, do mesmo tipo que outrora teria pautado debates como o que se dera entre David Maybury-Lewis e Claude Lévi-Strauss – do dual societies exist? No final das contas são dualismos, ou tensões duais em que o critério político é recuperado, aquele que define estar dentro ou fora da Igreja, ser ou não ser cidadão, estar incluído ou excluído do grupo – no que pese o paradoxo do soberano, o excluído que inclui. Assim, clérigos/burocratas (clercs) e sua leitura das práticas intelectuais e teológicas de devoção rurais no século XV; a clivagem entre Norte e Sul no século XVI no que tanjam as igrejas reformadas e a Reforma tridentina; o universo da querela dos Antigos e Modernos que se reflete tanto numa discussão diacrônica do progresso quanto a versão geográfica da sincronização do progresso, também atendendo pelo nome de colonização; são estes os elementos que Certeau considera determinantes para a proliferação da heresia que vai culminar, como vimos, em uma nova forma na qual a ordem eclesiástica perde o monopólio do ajuizamento e quem ajuíza é exatamente o corpo que outrora era somente o braço secular da cabeça eclesiástica, o Corpus Mysticum, cabeça e membros.
            A heresia se transforma em cisma exatamente porque a primeira, diluída nos conteúdos legais que não a reconhecem como tal mas sempre como outra coisa – de um ponto de vista histórico e institucional interessado. Igrejas assumem a face partidária e fidelidade e divergência religiosas se politizam em fenômenos de reinterpretação social (op.cit.:25).

            Os conteúdos permanecem, mas submetidos a um tratamento novo que, proposto pelos cortes perpetrados pelas cisões, apresenta-se mais tarde pela fórmula da gestão política das diferenças. Os móveis herdados são redistribuídos em um novo espaço que organiza uma outra maneira se os repartir e deles se servir. Sob esse prisma a cisma amarrota os dados, fisga o gesto político ou científico de reclassificar e de manipular. É um trabalho sobre a forma social – diferente e complementar ao da evolução que, em outro caso, muda os conteúdos ainda que sem modificar a forma social onde se dão os desdobramentos ideológicos.” (id.ibid.)

            O controle de manifestações como os da feitiçaria e mesmo a problematização emergencial da educação faz com que o movimento dos elementos constitutivos assuma sua clareza brutal de reforma das instituições, sendo uma delas obviamente a eclesiástica. Esta reforma que nos oferece um sentido muito mais radical e agressivo do que a mera remissão ao evento protestante tem, aqui, o papel de oferecer ao problema da gestão da diferença – uma variação particular de como encarar o governo de um território – o recorte dos lugares onde se darão as práticas e a manifestação da religião, isto é, da divergência perigosa. É o Ancien Régime, período em que o acirramento das querelas passa a ser mediado por um ator que é gerido pela Razão de Estado que tem por fim a qualidade de organizar as relações por critérios exógenos aos grupos que passam a ser tratados, enfim, como população (Foucault,2009:117-155). É neste território que as diferenças perigosas se transformam mais e mais numa questão de foro privado (Koselleck, 1999), ou seja, ajuizado pelos praticantes em sua associação particular fazendo assemelhar igrejas de associações esportivas pelo efeito da cláusula arbitral que exclui da competência jurisdicional aquilo que outrora fora reconhecido como hierarquia (Rigaux, 2003:17-21). Da ordenação do lugar público sob julgo do Estado, a ordenação particular das denominações em seus lugares de culto, em estabelecimentos da fé cujo  corte organizador circunscreve um campo apropriado na superfície do mundo. Mas que se entenda que o assunto é França e que a religião fracionada em privacidade incomunicável é a católica. Porque o movimento contrário, o de acirramento das diferenças perigosas, se dá na afirmação das diferenças ainda que em foro privado. Já é possível ao menos dizer.
             A escala desta discussão é, ainda assim, enorme e aparentemente divorciada das práticas – algo similar ao divórcio entre o religioso e o discurso moral. O divórcio se dá por uma espécie de holograma do tempo das instituições que projetam significantes como se seu significado estivesse dado na tradição e que a mesma fosse, por isso, sinal de estabilidade semântica. Como se a relação entre símbolos e seus afazeres fossem da ordem da fixidez, coisa que a história quantitativa de historiadores como Michel Vovelle só fizeram reproduzir em atentar que é preciso fazer com que a tradição faça sentido de novo, a cada ato. E que a tradição mesmo é uma operação deste tipo, aquela que faz viger de novo o Antigo; fazer dizer de novo o indizível; figurar mais uma vez o que se perdeu no tempo histórico na encenação da eternidade do mundo. É neste plano que a ambivalência do gesto se insinua sob a univocidade da cifra (2005:27). A recuperação das dimensões práticas é, por fim, o horizonte da prática historiográfica que se desdobra em escritura de textos: os que lê e os que escreve. Este pode ser, por sua vez, um gesto etnográfico por excelência do tipo follow the native, especialmente por percorrer o universo do silenciamento da religião e da emergência de dispositivos de dizer sobre aquilo que deveria permanecer ausente do discurso dado os riscos que oferece. Dito de outra forma, o registro escriturário daquilo que seria silêncio na comunicação presente.


[1] Aqui de Certeau cita John T. Noonan.
[2] Os trabalhos de Robert Mandrou sobre magistrados e feiticeiros no mesmo período, assim como os trabalhos de Claude Reichler sobre diabolia, comédia e libertinagem são exemplares na coleta da documentação que re-encena o divórcio da linguagem sobre a moral da linguagem religiosa. O que é certo e o que é errado prescinde de afirmações a respeito de Deus e mesmo, desde o plano enunciativo, de sua existência – como é o caso de d’Holbach.
[3] Certeau (2005:23-26).

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