sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

ELIAS, Norbet. Sociedade de corte. Jorge Zahar. Rio de Raneiro. 1999.
LATOUR, Bruno. Pasteur: guerre et paix des microbes - suivi d'Irréductions. Les empécheurs de penser en ronde. Paris. 2011.
-->
QUÉTELET, Alphonse. Du systeme social et des lois qui le regissent. Guillaumin et Cie. Paris. 1848.
ROSANVALLON, Pierre. 
--> L’État en France de 1789 à nos jours. Seuil. Paris 1990
SUTTON, Geoffrey. Science for a polite society: gender, culture & the demonstration of enlightenment. Westview Press. Boulder/Oxford. 1995.


14-  A história do Estado é indissociável da história dos meios de conhecimento sobre os quais se apoia. Desde que a força bruta deixa de reinar sozinha, o poder passa a se indexar nas formas de saber: não á decisão relativa aos homens e às coisas que não seja medida e contada. Mesmo o termo estatística traduz, etimologicamente, esta situação. No século XVII a estatística significa “o que é relativo ao Estado”; um século mais tarde, o termo designa a enumeração metódica de uma série de fatos. É uma forma de deslizamento semântico da interpenetração de um conceito político e de uma forma de entendimento, exemplar em si mesmo. Durante os séculos XVII e XVIII a consolidação da soberania do Estado se apoia no progresso da demografia e da aritmética política. Os economistas que desenvolvem esta última disciplina escrevem do ponto de vista do soberano. É a ele que Montchrétien, Graunt, Petty, Vauban ou Boisguilbert esperam convencer e aconselhar. A obra pioneira de William Petty, datada do fim do século XVII, é particularmente interessante quanto a este respeito. É a primeira a sistematizar a idéia de que governar é contar, ou recensear, inseparavelmente. “Os que se ocupam da política sem conhecer a estrutura, a anatomia do corpo social – escreve – pratica uma arte demasiado conjectural, que é a medicina das antigas senhoras e dos empíricos” (Rosanvallon, 1990:37)

A revolta contra a influência de adivinhos e feiticeiras nos assuntos de Estado esboçada por William Petty em seu Anatomia política da Irlanda de 1672 não é fruto de qualquer desprezo relativo ao exercício de uma forma imprecisa de superstição. O que a remissão não somente à trajetória de Petty, mas de todo o serviço estatístico evoca é toda uma história em que toda sorte de arcanos, inclusive de Estado, é desestabilizada como grade de referencias seguras no que tangem a tomada de decisões. Diagnósticos e prognósticos entram em questão no mesmo momento em que novos meios de apresentação do futuro entra em pauta. Se Bruno Latour pôde, em um dado momento, chamar a atenção para a pasteurização da França (2011) na qual a paisagem urbana faz corresponder engenharia, sanitarismo e cidadania; em linhas gerais a substituição do vôo das andorinhas pelos platôs de Quételet parecem sugerir a do território francês ao cartesianismo. Não somente por apresentarem números no lugar de andorinhas, mas por sugerir uma outra forma de desenho que apesente o futuro que não seja pautado por exercícios de ornitologia.
A remissão à René Descartes não é meramente ilustrativa, mas relativa à efetivação não somente da filosofia do autor dos tratados sobre o método, o homem, o mundo, a dióptrica e a meteorologia; faz remissão também aos meios de apresentação de dados relativos aos objetos de reflexão que por fim culminam na metodologia por excelência das primeiras instituições oficiais de observação científica francesas. Dito de outra forma, diz respeito à transformação dos meios por via dos quais o mundo se torna uma possibilidade. Esta transformação é encenada, por Geoffrey Sutton (1995), pela passagem do ideal renascentista de ciência incorporado por Théophraste Renaudot e seu Bureau d’adresse para a instituição gradual da filosofia cartesiana, não somente como princípio filosófico mas como método de exposição e ideal de pedagogia. Que não percamos o foco, o que está sob foco é uma questão de método; methodos; meio – os mesmos que Rosanvallon menciona no começo da citação acima. O Estado moderno, após a Revolução, opera por via da proliferação de meios. Segundo Sutton, de todos os meios disponíveis, o que Descartes seguramente não queria era um que lhe desse problemas com a censura real.

The spirit of the Principia would inform the Cartesian school of natural philosophy for nearly a century after its appearance; that much should be noncontroversial. What is offered here is an idiosyncratic reading, a twentieth-century reading to be sure, but one that might help a twentieth-century audience to understand how a denizen of Renaudot’s Bureau d’adresse might have dealt with these books before anyone knew for sure that they would one day form the basis of a modernity that reminded a twinkle in the collective philosophical eye of the Rationalists. It is a reading that follows Descarte’s directions, one guided by the idea that only in understanding the broad sweep of the argument might we understand its parts, a reading willing to sacrifice a whole series of beautiful little insights into details for the sake of providing a coherent interpretation.” (Sutton, 1995:92)

O que Sutton defende é que mediante a profusão de debates que visassem reconstituir a origem do argumento a respeito de todo tipo de tema, próprio daquilo que encontrou no Bureau d’adresse de Renaudot, a novidade cartesiana oferecia uma exposição sistemática de cada um dos problemas tratados visando decompô-lo em suas partes constitutivas buscando respaldo, ao invés de tratados da antiguidade, em observações experimentais que ele mesmo conduzia. Contudo, a premissa não reduzia o observado à mera observação. A articulação e a apresentação das relações oferece uma novidade tão radical quanto aquela que se oferece como um método específico. Ao invés dos cadernos de notas Renascentistas que produziam algo muito próximo de uma miscelânea de fatos, casos e passagens de autores antigos, o instrumento cartesiano por excelência é a demonstração feita sistematicamente. Assim, a leitura dos Principia implicava em sua leitura por inteiro dado que a elucidação de uma determinada passagem se encontrava alhures, sem a utilização de comentários ou de fórmulas de contemplação; sem arcanos? Assim, dentre todos os aspectos que Sutton poderia ressaltar, é o caráter pedagógico da revolução cartesiana aquele que ele resolve destacar:

Pedagogy seems a peculiar place to locate the crux of Cartesian modernity; to do so would surely overstate the case. Nevertheless, the notion of system – be it philosophical, physical, mathematical, or biological – grounded all Descarte’s work. It introduced a search for consistency altogether novel in late Renaissance discussions method. Moreover, this conception of consistency is at odds with our own ideas about the internal coherence of a rigorous theory. The parts of the Cartesian system needed not so much to fit together as to find a secure place in the whole. Thus, once the system was grasped, inconsistencies among the various parts did not produce the sort of cognition dissonance in Descartes or his readers that it would in philosophers of the nineteenth and twentieth centuries. Instead, Descartes acknowledged what he saw as very real but minor difficulties and omissions; for example: “I have not described in my Principles all the motions of each planet, but I have supposed in general all those that observers have found and I have attempted to explain causes”. “(Sutton, 1995:94-95)

Assim, ao invés da doutrina dos quatro elementos, os três graus de sutileza da matéria; ao invés da essência da alma, o local em que a alma se manifesta no corpo; ao invés de remissões as mais diversas ao mais diverso, a descrição dos meios pelos quais um dado fenômeno se concretiza. Tudo apresentado da forma como ainda se entende como sistematicamente, sempre remetendo o caso singular a uma dimensão média de regularidade – como o platô de Quételet[1]. O argumento ao redor da ciência estatística tem em vista a reconstituição dos princípios que regem a sociedade, não mais como uma reunião da corte como fora chamado nos tempos de Louis XIV (Elias, 1999), mas como um sistema médio de difusão de regularidades que fazem das ações coletivas verdadeiras ondas de transmissão, de violência inclusive. A produção estatística visa dar visibilidade àquilo que, de outra forma, segue invisível aos olhos do investigador exatamente porque a escala das ações de Estado não é humana. Como, por exemplo, o fluxo de transações financeiras do Estado e o comprometimento orçamentário do endividamento público – um dos catalisadores da Revolução francesa.


[1] Quand, du haut d’un vaisseau, j’arrête mes re gards sur l’Océan, j’aperçois des vagues immenses qui passent majestueusement devant moi, sans que je puisse reconnaître le lieu où elles se sont formées ni celui où elles vont s’effacer.
Si je descends ensuite du vaisseau pour prendre place dans une barque à peu près au niveau de la mer, et si je concentre mon attention sur les pe tits mouvements oscillatoires qui rident la surface de l’eau, je perds de vue le magnifique spectacle qui m’occupait d’abord. C’est tout au plus si mes regards saisissent une étendue qui dépasse les li— mites de la vague sur laquelle je suis porté; mais je vois ‘une infinité de détails qui m’avaient échappé.
Tel est aussi le spectacle que présentent les peuples. Vus à une certaine distance, ils se dessinent, se diversifient entre eux et suivent leurs destinées, sans qu’on puisse saisir, la plupart du temps, leur origine ni leur fin: les uns turbulents et superbes; les autres souples et développant les étudier, il faut concentrer son attention sur elles, et perdre de vue l’immensité de cet autre océan sur lequel on navigue, il faut saisir rapidement leurs formes fugitives qui rarement étendent à quelque distance le cercle de leur action. Mais ces vagùes mêmes, qui nous représentent les peuples, ne sont rien à côté d’une onde plus vaste, à côté de l’onde des marées qui domine l’océan à travers lequel elle se déroule lentement dans sa marche triomphale. C’est ainsi que les peuples s’effacent également en présence de l’humanité ». (Quétélet, 1848 :ii-iii)

Nenhum comentário: