KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos.
Rio de Janeiro. Contraponto. 2006.
ROSANVALLON, Pierre. L’État en France de 1789 à nos jours. Seuil. Paris 1990.
15- Há um tríptico a ser respeitado com relação ao
regime de prognósticos em disputa. Do sistema de adivinhações pelo vôo dos
pássaros à curva regular dos platôs estatísticos, uma terceira dimensão faz
parte a cena dos prognósticos. Afinal, o tempo futuro também pertence à
escatologia, terreno no qual a Revolução francesa se fará, à luz da reflexão de
Reinhart Koselleck (2006), herdeira da Reforma luterana – afinal, grande parte
de seu repertório diz respeito a uma reforma de Estado sem precedentes. Assim,
da mesma forma que a Reforma luterana traz consigo sinais do fim do mundo condensados
em um futuro abreviado, num fim por vir cujo desdobramento seria o próprio
sentido da história humana, a Revolução culmina como determinação de um novo
tempo – o que aproxima o evento a uma espécie de condição mítica abordada tanto
por Lévi-Strauss, François Furet e Hayden White.
“Em 10 de maior de 1793, em seu
famoso discurso sobre a Constituição revolucionaria Robespierre declara: “é
chegada a hora de conclamar cada um para seu verdadeiro destino. O progresso da
razão humana preparou esta grande Revolução, e vós sois aqueles sobre os quais
recai o especial dever de acelerá-la”. A providencial fraseologia de
Robespierre não é capaz de dissimular o horizonte que expectativa alterou-se em
relação à situação inicial. Para Lutero, a abreviação do tempo é um sinal
visível da vontade divina de permitir que sobrevenha o Juízo Final, o fim do
mundo. Para Robespierre, a aceleração do tempo é uma tarefa do homem, que
deverá introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado.
Ambas as posições, assim como o fato de que a Revolução derivou da Reforma,
marcam o início e o fim do período de tempo aqui considerado.” (Koselleck,
2006:25)
Tanto a Reforma quanto a Revolução oferecem diferentes fraturas temporais
com relação às quais servem como meios de aceleração – seja por via da história
da salvação (heilgeschichte), seja
por via da história política -, diferenças essas que reconstituem formas de
temporalização diferentes que entram em causa na longa reforma do Estado
absolutista – no caso francês, de Louis XIII a Louis XIV (cujo entremeio conta
com Richelieu e Mazarin). Dispor lado a lado Robespierre e Lutero é dispor o
prognóstico e o profético face a face. Assim:
“O prognóstico produz o tempo que o
engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao passo que profecia apocalíptica destrói o tempo, de
cujo fim ela se alimenta. Os eventos, vistos da perspectiva da profecia, são
apenas símbolos daquilo que já é conhecido. Se os vaticínios de um profeta não
foram cumpridos, isso não significa que ele tenha se enganado. Por seu caráter
variável, as profecias podem ser prolongadas a qualquer momento. Mais ainda: a
cada previsão falhada, aumenta a certeza de sua realização vindoura. Um
prognóstico falho, por outro lado, não pode ser repetido nem mesmo como erro,
pois permanece preso a seus pressupostos iniciais.” (Koselleck, 2006:32)
O alvorecer progressivo da administração pública, a que estabelece
critérios da organização social como forma de planejamento da vida em comum,
visa dispor do refinamento dos meios de produção de prognósticos, não somente
relativos ao método em si como na continuidade incessante da observação de
temas e variáveis consideradas estratégicas. Obviamente que este modo de
temporalização produz um efeito em particular:
“O prognóstico racional contenta-se
com a previsão das possibilidades no âmbito dos acontecimentos temporais e
mundanos, mas por isso mesmo produz um excesso de configurações estilizadas das
formas de controle temporal e político. No prognóstico, o tempo se reflete de
maneira sempre surpreendente; a constante similitude das previsões
escatológicas é diluída pela qualidade sempre inédita de um tempo que escapa de
si mesmo, capturado de modo prognóstico. Dessa forma, do ponto de vista da
estrutura temporal, o prognóstico pode ser entendido como um fator de
integração do Estado, que ultrapassa, assim, o mundo que lhe foi legado, com um
futuro concebido de maneira limitada.”(Koselleck, 2006:33)
O prognóstico como tempo capturado pelo
planejamento orçamentário do Estado serve como exemplo que o próprio Pierre
Rosanvallon ancora na historiografia de Koselleck, de forma a oferecer uma
entrada privilegiada para o problema da secularização, aqui lido na chave da
sobrevivência cultural. Ele disserta sobre a transparência financeira na qual o grande problema é exatamente a contra-produtividade do segredo
exatamente porque não consegue traduzir com clareza sistemática o sistema de
decisões orçamentárias de Estado. Entendendo que das alterações determinantes
do processo revolucionário de 1879 em diante se encontra a instauração de um
governo representativo em que diversas partes operam no seio do poder soberano
– a soberania se dilui em sistema de decisões -, ainda que não interfira
imediatamente no domínio das intervenções de Estado, oferece uma nova forma
para o mesmo[1]. Afinal,
para que seja possível algo como a votação de um orçamento, é preciso não
somente um orçamento estabelecido pautado em uma determinada concepção de
riqueza. É preciso que o orçamento esteja articulado em um determinado modelo
de prognóstico que capturem o tempo futuro a título provisório, mas de forma
inescapavelmente sistemático. O Estado absolutista, centralizador que é, se
consolida também por meio da expulsão dos símbolos proféticos da estrutura de
decisão que são signos de decisões tomadas em segredo ou no seio de uma outra
ordem que não nas instâncias da política em um sistema representativo:
“O
orçamento votado sob a forma de uma lei de finanças se transformou no espelho
criptografado das atividades do Estado, vindo a extinguir uma longa tradição de
desordem e segredo. Constrangidos pelo Estado – “é impossível, agora, que haja
um ministro das Finanças desonesto”, disse Villèle, em 1826 -, simboliza o
advento de um Estado fiscal regular. Instauração de uma regularidade “técnica”
que se dobra em uma regularidade “política” por via da publicidade das cifras,
fazendo do orçamento um elemento central do debate público. Para além do
círculo estreito dos parlamentares, a discussão a respeito da lei de finanças
na Câmara suscita comentários e interrogações por todo o país. O orçamento é
comentado pelos jornais, dando lugar à circulação de uma enormidade de
brochuras e libelos que traduzem uma reapropriação do Estado pela sociedade.”
(Rosanvallon, 1990:35).
[1] «Parler d’intérêt public, c’est, dans le langage classique, parler de
l’intérêt de l’Êtat, l’Êtat existant comme sujet propre, séparé distinct de la
société civile. La notion d’intérêt général de tous les hommes renvoie au
contraire à une abstraction, qui est le support de l’idée de nation. L’État ne
peut plus être représenté dans ce cadre que comme immergé dans cette nation, il
n’a plus d’existence autonome. Sa dépendance se manifeste d’abord
économiquement, puisq’«un souverain n’a qu’autant que ses sujets en
possèdent ». Il y a donc une confusion qui s’établit entre le suverain et
la nation : « Le Roi et le peuple ne sont qu’une seule et même chose,
quelque fondé qu’ait été jusqu’ici l’usage sur une maxime toute
contraire. » L’État séparé repose sur la subordination qui se définit
pratiquement, comme distance et rapport inégalitaire ; l’État immergé est
au contraire fondé théoriquement sur la confusion et l’égalité des intérêts. »
(Rosanvallon, 1990 :29). As citações internas à nota são de Pierre Le
Pesant de Boisguilbert.
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