sábado, 3 de janeiro de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro. Contraponto. 2006. 

ROSANVALLON, Pierre. L’État en France de 1789 à nos jours. Seuil. Paris 1990. 

15- Há um tríptico a ser respeitado com relação ao regime de prognósticos em disputa. Do sistema de adivinhações pelo vôo dos pássaros à curva regular dos platôs estatísticos, uma terceira dimensão faz parte a cena dos prognósticos. Afinal, o tempo futuro também pertence à escatologia, terreno no qual a Revolução francesa se fará, à luz da reflexão de Reinhart Koselleck (2006), herdeira da Reforma luterana – afinal, grande parte de seu repertório diz respeito a uma reforma de Estado sem precedentes. Assim, da mesma forma que a Reforma luterana traz consigo sinais do fim do mundo condensados em um futuro abreviado, num fim por vir cujo desdobramento seria o próprio sentido da história humana, a Revolução culmina como determinação de um novo tempo – o que aproxima o evento a uma espécie de condição mítica abordada tanto por Lévi-Strauss, François Furet e Hayden White.

Em 10 de maior de 1793, em seu famoso discurso sobre a Constituição revolucionaria Robespierre declara: “é chegada a hora de conclamar cada um para seu verdadeiro destino. O progresso da razão humana preparou esta grande Revolução, e vós sois aqueles sobre os quais recai o especial dever de acelerá-la”. A providencial fraseologia de Robespierre não é capaz de dissimular o horizonte que expectativa alterou-se em relação à situação inicial. Para Lutero, a abreviação do tempo é um sinal visível da vontade divina de permitir que sobrevenha o Juízo Final, o fim do mundo. Para Robespierre, a aceleração do tempo é uma tarefa do homem, que deverá introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado. Ambas as posições, assim como o fato de que a Revolução derivou da Reforma, marcam o início e o fim do período de tempo aqui considerado.” (Koselleck, 2006:25)

Tanto a Reforma quanto a Revolução oferecem diferentes fraturas temporais com relação às quais servem como meios de aceleração – seja por via da história da salvação (heilgeschichte), seja por via da história política -, diferenças essas que reconstituem formas de temporalização diferentes que entram em causa na longa reforma do Estado absolutista – no caso francês, de Louis XIII a Louis XIV (cujo entremeio conta com Richelieu e Mazarin). Dispor lado a lado Robespierre e Lutero é dispor o prognóstico e o profético face a face. Assim:

O prognóstico produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao passo que  profecia apocalíptica destrói o tempo, de cujo fim ela se alimenta. Os eventos, vistos da perspectiva da profecia, são apenas símbolos daquilo que já é conhecido. Se os vaticínios de um profeta não foram cumpridos, isso não significa que ele tenha se enganado. Por seu caráter variável, as profecias podem ser prolongadas a qualquer momento. Mais ainda: a cada previsão falhada, aumenta a certeza de sua realização vindoura. Um prognóstico falho, por outro lado, não pode ser repetido nem mesmo como erro, pois permanece preso a seus pressupostos iniciais.” (Koselleck, 2006:32)

O alvorecer progressivo da administração pública, a que estabelece critérios da organização social como forma de planejamento da vida em comum, visa dispor do refinamento dos meios de produção de prognósticos, não somente relativos ao método em si como na continuidade incessante da observação de temas e variáveis consideradas estratégicas. Obviamente que este modo de temporalização produz um efeito em particular:

O prognóstico racional contenta-se com a previsão das possibilidades no âmbito dos acontecimentos temporais e mundanos, mas por isso mesmo produz um excesso de configurações estilizadas das formas de controle temporal e político. No prognóstico, o tempo se reflete de maneira sempre surpreendente; a constante similitude das previsões escatológicas é diluída pela qualidade sempre inédita de um tempo que escapa de si mesmo, capturado de modo prognóstico. Dessa forma, do ponto de vista da estrutura temporal, o prognóstico pode ser entendido como um fator de integração do Estado, que ultrapassa, assim, o mundo que lhe foi legado, com um futuro concebido de maneira limitada.”(Koselleck, 2006:33)

O prognóstico como tempo capturado pelo planejamento orçamentário do Estado serve como exemplo que o próprio Pierre Rosanvallon ancora na historiografia de Koselleck, de forma a oferecer uma entrada privilegiada para o problema da secularização, aqui lido na chave da sobrevivência cultural. Ele disserta sobre a transparência financeira na qual o grande problema é exatamente a contra-produtividade do segredo exatamente porque não consegue traduzir com clareza sistemática o sistema de decisões orçamentárias de Estado. Entendendo que das alterações determinantes do processo revolucionário de 1879 em diante se encontra a instauração de um governo representativo em que diversas partes operam no seio do poder soberano – a soberania se dilui em sistema de decisões -, ainda que não interfira imediatamente no domínio das intervenções de Estado, oferece uma nova forma para o mesmo[1]. Afinal, para que seja possível algo como a votação de um orçamento, é preciso não somente um orçamento estabelecido pautado em uma determinada concepção de riqueza. É preciso que o orçamento esteja articulado em um determinado modelo de prognóstico que capturem o tempo futuro a título provisório, mas de forma inescapavelmente sistemático. O Estado absolutista, centralizador que é, se consolida também por meio da expulsão dos símbolos proféticos da estrutura de decisão que são signos de decisões tomadas em segredo ou no seio de uma outra ordem que não nas instâncias da política em um sistema representativo:

O orçamento votado sob a forma de uma lei de finanças se transformou no espelho criptografado das atividades do Estado, vindo a extinguir uma longa tradição de desordem e segredo. Constrangidos pelo Estado – “é impossível, agora, que haja um ministro das Finanças desonesto”, disse Villèle, em 1826 -, simboliza o advento de um Estado fiscal regular. Instauração de uma regularidade “técnica” que se dobra em uma regularidade “política” por via da publicidade das cifras, fazendo do orçamento um elemento central do debate público. Para além do círculo estreito dos parlamentares, a discussão a respeito da lei de finanças na Câmara suscita comentários e interrogações por todo o país. O orçamento é comentado pelos jornais, dando lugar à circulação de uma enormidade de brochuras e libelos que traduzem uma reapropriação do Estado pela sociedade.” (Rosanvallon, 1990:35).


[1] «Parler d’intérêt public, c’est, dans le langage classique, parler de l’intérêt de l’Êtat, l’Êtat existant comme sujet propre, séparé distinct de la société civile. La notion d’intérêt général de tous les hommes renvoie au contraire à une abstraction, qui est le support de l’idée de nation. L’État ne peut plus être représenté dans ce cadre que comme immergé dans cette nation, il n’a plus d’existence autonome. Sa dépendance se manifeste d’abord économiquement, puisq’«un souverain n’a qu’autant que ses sujets en possèdent ». Il y a donc une confusion qui s’établit entre le suverain et la nation : « Le Roi et le peuple ne sont qu’une seule et même chose, quelque fondé qu’ait été jusqu’ici l’usage sur une maxime toute contraire. » L’État séparé repose sur la subordination qui se définit pratiquement, comme distance et rapport inégalitaire ; l’État immergé est au contraire fondé théoriquement sur la confusion et l’égalité des intérêts. » (Rosanvallon, 1990 :29). As citações internas à nota são de Pierre Le Pesant de Boisguilbert.

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