quinta-feira, 21 de março de 2013

Notas do Subterrâneo: faiblesse de croire, São João da Cruz e Diego de Jesus


L’idiote exemplaire selon la méthode exemplaire : Saint Jean de la Croix y el doctorcito.

 DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.

1983.
________________________ La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.
KOSELLECK,  Reinhart. L’experience de l’histoire. Seuil. Paris. 1997.



           A trajetória de São João da Cruz, carmelita, deve começar por Diego de Jesus (1520-1671). Não porque não tenha São João direito à existência própria, mas por ser Diego de Jesus aquele que inicia o ciclo de São João com relação à publicação de sua obra, aquilo que se oferece como edição da obra. Das contribuições promovidas pela historiografia francesa, em especial aquela que trabalha no compasso, e por vezes no contraponto da história das mentalidades, uma das contribuições decisivas está na forma operada de contribuição para a crítica das fontes. Não necessariamente visando constituir uma verdade positiva daquilo que de fato um determinado documento diz, mas na composição de alguns determinantes sociológicos que fazem com que um determinado documento não somente venha à luz, mas entre em circulação. Nisso, uma das contribuições de trabalhos não somente como os de Michel de Certeau, mas também de Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Jean Hébrard, Dominique Julia, Jacques Revel e Jean-Yves Mollier; mas não somente, cabendo também acrescentar nomes como o de Robert Darnton, Robert Mandrou, Michel Vovelle, Paul Zumthor e Carlo Ginzburg está em recompor as relações que precipitam em um documento significativo. A discussão de Chartier sobre a composição da cena da autoria nos meandros da publicação de um volume impresso entre os séculos XVI e XVII, por exemplo, são sugestivos quanto ao problema não só da edição, mas quanto a fundamentação da figura autoral. Isto porque, para fins de fiscalização do negócio do livro a identidade autoral se encontrava, antes de mais nada, naquele que hoje se encontra na figura do Publisher, isto é, do editor. Aquele que acerta os detalhes finais e corta o texto vindo a produzir uma espécie de arte-final, ainda que não assine o conteúdo, é o seu autor. No final de contas, a autoria não designa somente uma divisão do trabalho se não encontramos aonde a autoria está.
            No caso, a sucessão das edições do corpus de São João da Cruz faz com que o mesmo seja, no final de contas, um produto do controle da palavra mística quanto a sua apresentação, seja dentro ou fora da igreja. São João é, por fim, o texto estabelecido. As partículas da obra mística de São João são publicadas a partir de 1618, 27 anos após a morte do santo. Recebe uma tradução francesa de René Gaultier publicada em 1622, uma versão editada em Roma em 1627, cuja tradução italiana servirá de base para a primeira publicação em espanhol em Madrid, já em 1630. A temática da originalidade poética do canto místico – no caso, Cántico – não é a questão. É o fato de ter cumprido uma determinada circulação, de ter passado por um conjunto de mãos que intervém que o texto de São João servirá como figura, não de outra pessoa mas de São João, ele mesmo. As notas de Diego de Jesus acompanham todas estas edições dos Cánticos da mesma forma que o farão as notas de Luis de Léon com os Libros de la madre Teresa de Jesús, em 1588. Difícil para mim não imaginar aqui algo em redor da divagação de James Hillis sobre a figura do hóspede-parasita, uma das figurações do fantasma. Mas é, seguramente, leviano sequer sugerir a analogia que, ainda que leviana, me agrada.
            A aparição de Luis de Léon não é acidental. Isto porque as obras de São João da Cruz e sua circulação atritam exatamente com as de Teresa de Jesus quanto à forma da revelação do conteúdo místico. Respectivamente entram em choque a paixão apostólica e a contemplação cativante, colocando a paixão de São João da Cruz mais próximo do campo da Reforma do que na Contra-Reforma, particularmente por causa da figuração dos excessos da fé compreendidos como excesso doutrinal em contraposição à autonomia institucional, tema que pauta grande parte da querela do jansenismo contra os jesuítas.
            A primeira edição dos escritos de São João da Cruz tem ela mesma uma história longa que começa a ser tramada ainda em 1602 quando Thomas de Jesus recebe a autorização para definir o corpo a ser editado. Em 1603 Doria, teresiano, recusa a incorporação do Cántico no corpo da obra. Adiante, o padre Alonso de Jesus se torna o geral da ordem, cancelando todos os trabalhos ao redor dos escritos de São João da Cruz, em 1607, o que só fio retomado em 1613 já por Diego de Jesus. É expresso por Diego o desejo de, na edição, realizar uma aproximação com os originais então demasiado afastados e devidamente esquartejados pela doutrina diretora. A aproximação será parcial, não somente pelo conteúdo místico, mas pela organização da mística, que vai muito além do mero controle eclesiástico, vale dizer. Isso porque parte do trabalho de Diego de Jesus é redigir algo que tornará a escrita mística legível, elegendo um código viável como meio de decodificação daquilo que, de outra forma, é inacessível e que deve seguir sendo assim. O método e uma redação caucionária, e não terapêutica. Ao fazê-lo, deve constituir uma província antes inexistente e determinar os elementos da linguagem mística, a mesma com relação a qual deve produzir a decodificação, ainda que parcial de tudo aquilo que é outra coisa e que, como tal receberá um outro nome desde o começo, nos artigos de fé e mística (op.cit.: 179-183).

            “Une coupure circonscrit le discours qui se construit, et le sépare d’un monde déjà épelé. La nomination invente une terre nouvelle, à la manière des récits de voyage ou mieux, comme le fit Adam une première fois : « Il donna des noms (ses noms) à toutes choses – Appellavitque Adam nominnibus suis cuncta… ». Au commencement de la langue mystique, il y a des mots d’auteur qui répètent le geste adamique. » (op.cit. :185)

            Aquele que estabelece a ciência da mística volta à mesma situação de Michel de Certeau que, ao escrever La Fable Mystique diz escrever um livro impossível. Mas, como disse a respeito do mesmo de Certeau, o exercício erudito não está em recuperar o passado existente na figura – como o seria num exercício de história positiva - , mas de deixar o mesmo passado sair da sala secreta aonde ele se esconde vindo a participar daquilo que, até que se prove o contrário, ele mesmo conspirara em favor – o presente do enunciado cuja marca maior é o de um passado que não pode falar por si mesmo. E aos poucos cercamos o que pode ser o idiota, não sem antes nos reservarmos ao direito de algumas surpresas importantes. Por exemplo: saberia o idiota fingir a idiotia que lhe é própria? Sabe ele fingir a dor que deveras sente?
            O que importa saber aqui é que a mística e o místico, um não pode mais ser sem o outro. O autor se perde como fonte autônoma e vindo a ser a forma pela qual pode circular, revigorando sutilmente a noção de dádiva que se deixa levar pelo momento[1]. Não que não seja possível distinguir Diego de Jesus e São João da Cruz, um do outro. Na verdade, todo o esforço da mística está em distinguir o douto do místico, atentando para uma zona limítrofe sempre difícil de policiar, que é a que determina a transformação de uma heterodoxia em heresia. Ao invés de uma teologia positiva que fará recurso dos estudos da patrística e a ordem da igreja primitiva – exercício que caracteriza a precipitação do jansenismo -, é uma teologia negativa que se precipita dos trabalhos no Monte Carmelo, que literalmente destrincha as palavras  constituindo uma produção analítica propriamente dita, isto é, por quebras sucessivas da unidade maior em unidades menos.
            Diego de Jesus anuncia, no trecho selecionado por de Certeau, que deve lidar com os signos de excesso, tal como São Paulo conclama o excesso de caridade de Jesus e o excesso de amor aos Mandamentos de Deus da parte dos fiéis. Signos que dizem coisas demais e que demandam orientação introdutória que estabeleça alguns critério de separação. Como, por exemplo, daquilo que dizem os filósofos e os teólogos com relação ao que diz o místico, todos distintos por suas tarefas.

            “De l’ “anéantissement”, le Philosophe et le Théologien scolastique diront que c’est manquer du tout d’être, en sorte qu’il ne reste de l’être ni existence, ni forme, ni union, ni matière, qui est le premier sujet qui dure toujours ès générations et corruptions, là où la mystique dira l’ « anéantissement » de l’âme est une sainte négligence et abandon de soi-même, tel que ni par souvenir, ni par affection, ni par pensée, elle ne se soucie de soi ni de créature, afin de se pouvoir transformer entièrement en Dieu».  (Diego de Jesus, apud Certeau, 1982, 190)

            O comentário, a análise do texto místico atenta para o tipo de deslocamento que a linguagem excessiva produz, na qual tudo não é senão unidade e todas as coisas se movem podendo trocar de lugar, não à esmo, mas com velocidade incompatível com o nome das coisas. Perde-se o controle da coisa significada, e sempre algo mais está em questão. Na verdade, sempre muito mais. Assim,  a ciência mística não se constitui ao criar um corpo linguístico coerente (isto é, um sistema científico), mas ao definir operações legítimas (isto é, formalização de práticas) (op.cit., 196). Não é algo em si que ela mira, mas uma determinada relação prontificada pela linguagem com aquilo que é, vale repetir, a Unidade. Nisso a palavra mística avizinha e identifica aquilo que é distante e dessemelhante, promovendo relações indescritíveis, mas indispensáveis para a anunciação da conciliação com a existência. São tantas coisas dispostas neste jogo de similitudes selvagens que mesmo o místico corre o risco de se assemelhar com ele mesmo.



[1] Ainda que um sistema de dádiva seja um desafio analítico diante do qual eu não poderia simplesmente tomar um desvio e rumar para outra paisagem, é igualmente importante que se atente para o momento em que a dádiva se dá, momento este que estabelece demandas formais não necessariamente diretamente coerentes com o conjunto de premissas a partir da quais se pode definir o sistema dadivoso. Este talvez seja uma das diferenças mais importantes naquilo que o debate sobre dádiva resguarda, assim como aquilo que introduzem, por sua vez, tanto Bronislaw Malinowski quanto Marcel Mauss, isto é,  sistema desde o sistema na perspectiva maussiana, e o sistema desde o momento da troca trobriandesa.

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