“O desejo maior não teria, o de ter
acordado algo animado. Não poderia ser porque o sono já domado havia sido
engaiolado para que cantasse em coro com os pintassilgos do vizinho. O desejo
maior era o de não se transformar subitamente num idiota no percurso do dia. O
desejo era não se transformar num idiota subitamente sem ter feito nada de
diferente nos últimos meses e então, como uma pedra, saber ter sido um idiota.
A vontade era tirar o sono da gaiola, ainda que o medo de que alçasse vôo
frenasse a mão alguns instantes antes do momento derradeiro. Mas queria dormir
porque a idiotia súbita lhe dava tamanha tristeza que todo ímpeto sumia. Mal
olhava para o outro lado, só para saber quem fazia barulho na calçada e lá ia o
ímpeto entrar na gaiola para cantarolar hinos cívicos acompanhando a
passarinhada do major Godofredo. Ainda que pudesse ser saudoso das campanhas
produzidas durante a ditadura, e que professasse um revisionismo tão profundo
do processo de 1964 que beirava a negação da presença de militares no golpe de
Estado feito à contra-golpe, o major Godofredo tinha tendências mitômanas ainda
mais particulares. Haja visto que ele assobiava o zunido tonto gorjeado pelo
sono, e não os hinos que seus passarinhos cantarolavam. E agora, o dueto do
sono com o ímpeto, algo semelhante a uma versão de viola para um bolero foi
imediatamente incorporado ao repertório de silvos e trinados do major. Não me
lembro de ouvi-lo acompanhar seus passarinhos uma só vez e quem lhe faz
companhia foram sempre o sono e o ímpeto. Godofredo sabia, assim, que seu
vizinho havia se transformado em perfeito idiota. O arranhado de um certo Fá
menor cruzou a marca do zero e jogou a temperatura da sala de jantar para algo
ainda mais frio.
Idiota súbito, pensava, espirando em
golpes de ar que cobriam os pés de vento. Idiota súbito, até que se dava conta
de que há pouco de súbito na idiotia repetida no universo de dois, três, seis
meses. O estado prolongado da confusão,
o longo período em que a farsa mais verossímil caminhou de mãos dadas
com o sono e, então o ímpeto, engaiolados na companhia sonora do major
Godofredo repetiu à meia-voz a máxima de que o melhor esconderijo de algo está
em sua maior publicidade, feito a carta roubada. Assim, cantarolava tabém com a
confusão, levando-a para passear, dando-a de comer e participando de suas
apresentações na escola desde que aprendera a ler e a escrever participando da
farsa de ser o idiota que logo é. Nada de súbito, não acordara idiota, não fora
nada senão o longo tempo, o percurso no qual a idiotia saiu da gaiola sem ter dela
fugido sequer por um segundo. Restava saber se uma vez ciente de sua estupidez
maior sairia mais uma vez na rua reportando de forma inocente todas as coisas
tontas que um idiota da aldeia pode cometer andando de mãos dadas com a confusão, ou se
quebraria a personagem violando por fim, a trama. Mas a esta altura, embalado
pelo som de mais um bolero a três vozes a imagem de não ter mais ninguém para
enganar parecia lhe dar a vantagem de dois corpos sobre si mesmo. Restava então
eleger os dois corpos, no que, para fins de harmonia do desenho deveriam ser,
mais uma vez, a confusão e a idiotia. Restava, a esta altura, alguma noção de
procedimento. Há todo um universo de turbilhões entre correr atrás da confusão
e da idiotia e, por outro lado, conduzi-los pelas mãos simulando a mesma
correria. Esta deveria ser, por fim, esta história narrada com a trilha sonora
dos boleros a três vozes, as de Godofredo, ímpeto e sono. Os últimos,
agrilhoados, só poderão rumorejar gorjeios sagrados de Ângela Maria.”
Um comentário:
Porque todos sabem que Fa Menor é Mi.
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