quarta-feira, 6 de março de 2013

Os pássaros, o gorjeio, e o idiota vizinho de Godofredo


            “O desejo maior não teria, o de ter acordado algo animado. Não poderia ser porque o sono já domado havia sido engaiolado para que cantasse em coro com os pintassilgos do vizinho. O desejo maior era o de não se transformar subitamente num idiota no percurso do dia. O desejo era não se transformar num idiota subitamente sem ter feito nada de diferente nos últimos meses e então, como uma pedra, saber ter sido um idiota. A vontade era tirar o sono da gaiola, ainda que o medo de que alçasse vôo frenasse a mão alguns instantes antes do momento derradeiro. Mas queria dormir porque a idiotia súbita lhe dava tamanha tristeza que todo ímpeto sumia. Mal olhava para o outro lado, só para saber quem fazia barulho na calçada e lá ia o ímpeto entrar na gaiola para cantarolar hinos cívicos acompanhando a passarinhada do major Godofredo. Ainda que pudesse ser saudoso das campanhas produzidas durante a ditadura, e que professasse um revisionismo tão profundo do processo de 1964 que beirava a negação da presença de militares no golpe de Estado feito à contra-golpe, o major Godofredo tinha tendências mitômanas ainda mais particulares. Haja visto que ele assobiava o zunido tonto gorjeado pelo sono, e não os hinos que seus passarinhos cantarolavam. E agora, o dueto do sono com o ímpeto, algo semelhante a uma versão de viola para um bolero foi imediatamente incorporado ao repertório de silvos e trinados do major. Não me lembro de ouvi-lo acompanhar seus passarinhos uma só vez e quem lhe faz companhia foram sempre o sono e o ímpeto. Godofredo sabia, assim, que seu vizinho havia se transformado em perfeito idiota. O arranhado de um certo Fá menor cruzou a marca do zero e jogou a temperatura da sala de jantar para algo ainda mais frio.
            Idiota súbito, pensava, espirando em golpes de ar que cobriam os pés de vento. Idiota súbito, até que se dava conta de que há pouco de súbito na idiotia repetida no universo de dois, três, seis meses. O estado prolongado da confusão,  o longo período em que a farsa mais verossímil caminhou de mãos dadas com o sono e, então o ímpeto, engaiolados na companhia sonora do major Godofredo repetiu à meia-voz a máxima de que o melhor esconderijo de algo está em sua maior publicidade, feito a carta roubada. Assim, cantarolava tabém com a confusão, levando-a para passear, dando-a de comer e participando de suas apresentações na escola desde que aprendera a ler e a escrever participando da farsa de ser o idiota que logo é. Nada de súbito, não acordara idiota, não fora nada senão o longo tempo, o percurso no qual a idiotia saiu da gaiola sem ter dela fugido sequer por um segundo. Restava saber se uma vez ciente de sua estupidez maior sairia mais uma vez na rua reportando de forma inocente todas as coisas tontas que um idiota da aldeia pode cometer  andando de mãos dadas com a confusão, ou se quebraria a personagem violando por fim, a trama. Mas a esta altura, embalado pelo som de mais um bolero a três vozes a imagem de não ter mais ninguém para enganar parecia lhe dar a vantagem de dois corpos sobre si mesmo. Restava então eleger os dois corpos, no que, para fins de harmonia do desenho deveriam ser, mais uma vez, a confusão e a idiotia. Restava, a esta altura, alguma noção de procedimento. Há todo um universo de turbilhões entre correr atrás da confusão e da idiotia e, por outro lado, conduzi-los pelas mãos simulando a mesma correria. Esta deveria ser, por fim, esta história narrada com a trilha sonora dos boleros a três vozes, as de Godofredo, ímpeto e sono. Os últimos, agrilhoados, só poderão rumorejar gorjeios sagrados de Ângela Maria.”