IV-
L’idiotie : raisons d’être ce qu’on dit. (continuação, parte II)
Que não se leia aqui qualquer acusação mais violenta às
figuras de Durkheim e Mauss. Ainda que o aparte seja honesto, e que o
comportamento reticente de ambos ao flerte imediato com os dados da experiência
seja mais do que professado, ambos advogam em favor dos direitos dos povos
primitivos, ainda que postos sob a tutela vigorosa da Declaração Universal dos
Direitos do Homem cujo conteúdo convém avaliarmos mais adiante. Ainda assim,
lembrando que um curso oferecido por Émile Durkheim na Sorbonne no ano de (1805)
se deu exatamente com vistas em recusar a obra de William James pelo fato desta
carecer de sociologia – faço aqui um exame raso e demasiadamente caricatural -,
as reticências tem efeitos importantes. No caso, convém resguardar os direitos
universais do idiota. Mas um idiota é somente um idiota. É aqui que a
intervenção de Michel de Certeau merece atenção, dado que o idiota merece ser
tratado também como um brincalhão, um trickster
de um tipo bastante especial, daqueles que guardam um segredo.
“Le
secret n’est pas seulement l’état d’une chose qui échappe ou se dévoile à un
savoir. Il désigne un jeu des acteurs. Il circonscrit le terrain de relations
stratégiques entre qui le cherche et qui le cache, ou entre qui est supposé le
connaître et qui supposé l’ignorer (le « vulgaire ») . Selon une
tradition illustrée par El Héroe
(1637) de Baltasar Gracián, le secret noue, par de liens illocutoires, les
personnages qui le chassent, le gardent ou le dévoilent ; ils est le
centre de la toile d’araignée que tissent autour de lui des amoureux, des
traîtres, des jaloux, des simulateurs ou des exhibitionnistes. Le caché
organise un réseau social. » (1882 :133)
O idiota, se
portador de um segredo, joga um jogo. Obviamente que não é qualquer idiota, e
não se trata de qualquer jogo. É preciso que seja um idiota que efetivamente
guarde um segredo e é preciso que alguém possa ao menos desconfiar que tal
segredo exista, subtraindo do vulgo a percepção do que de fato está acontecendo
e pondo as cartas na mesa em um ambiente mais reservado das vistas alheias até
que alguém possa ser declarado vencedor, ou contemplado pelas benesses de um
jogo bem jogado.
Antes de
mais nada é preciso querer saber e querer esconder estabelecendo a ligação
potencial entre as duas partes da contenda que, a princípio sequer precisa
acontecer. O ato do desvelamento é posto em antecipação pelo artifício da
vontade, pelo conhecimento do objeto futuro a ser desvelado e que, neste mesmo
movimento, estará escondido até então provavelmente pela própria vontade,
porque estar escondido é de sua própria natureza. Vouloir savoir e vouloir cacher. Ainda que se trate de um
tratado sobre a ciência da mística, quando os termos são postos desta forma à
maneira de uma relação de vínculo em que o par não equivale, mas é fortemente
complementar, é difícil saber enfim quem é o idiota – assim como é difícil
saber quem, num ato de exorcismo é de fato possuído pelo diabo.
Toda a
dificuldade do exercício da mística está no reconhecimento daquilo que não pode
ser dito e que tem na sua expressão a manutenção do exercício do segredo, da
elaboração do código que não leva a lugar algum que não à contemplação do
acolhimento da manifestação do símbolo, que em muito pouco tem a ver com a
descoberta de um princípio ativo da química que não seja o estatuto do objeto
futuro, como Gaston Bachelard estabeleceu com clareza exemplar. Nisso, a
manifestação da forma dada como experiência é ela mesma a composição daquilo
que se mostrará como segredo, exatamente porque o segredo é a apresentação do
mistério, e não a simples ocorrência do mundo. Nos termos de Mircea Eliade,
cuja fórmula desconfio mas tem o mérito de ser pedagógica, é a precipitação de
heterogeneidade em meio ao espaço e tempo homogêneos – a experiência do sagrado. Contudo, é a ligação entre os dois campos,
entre as duas formas que o problema da mística se dá, é a onde a relevância da
hermenêutica cria um conjunto de regras particular, o mesmo que Bruno Latour
distingue na operação diferencial de falar sobre religião e falar
religiosamente. No caso, o idiota seria
aquele que não sabe distinguir um termo do outro. Será?
Os santos
místicos tem uma peculiaridade que Michel de Certeau faz questão de acentuar.
Sua hagiografia pertence a um universo delicado, afastado da crônica evidente
dos feitos morais que acontecem no reino deste mundo, cujos milagres operam na
forma narrativa palpável. O santo místico vem a conhecer algo mais do que a
realizar uma ação específica o que culmina na produção de uma linguagem específica,
numa forma de dizer a tradução daquilo que não pode ser dito. É algo semelhante
à tese da intradutibilidade da poesia, da obliteração da experiência imediata
da língua original, da traição do poeta-criador carregado de um misticismo tão
inconfessável quanto sugestivamente concreto. É o caminho dos Doutores
Místicos, do corpus de Dyoniso Aeropagita e a longa sequência de investigações
conduzidas de forma tão desigual como por St. Tomás de Quino e Sta. Tereza
d’Ávila. É no exercício da unificação, da experiência da comunhão e mesmo da
sugestão de haver algo específico como é a própria experiência como fonte de
conhecimento que a cisão entre formas de conhecer a mesma comunhão se dá. E é
aonde encontramos a diferença entre o idiota e o cientista; o louco e o
ficcionista.
“Dans
ces exemples, comme bien d’autres, les « voies » ou les figures de la
connaissance se modalisent selon une distribution anthropologique ou
cosmologique ; elles restent accidentelles et quasi
« adjectives » par rapport à l’Unique principe qui les innerve, les
correlle et s’y manifeste. Quelque chose d’autre arrive lorsque, parallèle à la
division sociale qui renforce et explicite, entre « litterati » et
« idiotae », entre riches et pauvres, entre villes et campagnes,
l’existence de champs culturels et de types d’expérience hétérogènes, c’est- à
dire, l’organisation de la société en espaces différents qui renvoient à des
rapports de force (politiques,
juridiques ou rhétoriques) et non plus, essentiellement, à des hiérarchisations
de status ou d’ «états », le savoir lui aussi se transforme et
s’élucide selon la double formalité d’une spatialisation et d’une
opérativité : il sera fait de régions dont la différence n’est pas
surmontable, et de méthodes spécifiques à chacune d’elles. »
(op.cit. :144)
Não é por
qualquer equívoco lógico que de Certeau aponta para uma determinada genealogia
entre a ciência mística e o desenvolver de uma determinada ciência da psique
que, destacada do mecanicismo intrínseco à fundação da psicologia pela orientação
materialista, dá vazão aos problemas da dinâmica e da identificação, delicada,
entre o cientista e o objeto cuja diferenciação revela, dentre outras coisas, o
espaço hermenêutico. É aonde o mistério se apresenta em seu primeiro grau. Atentando aos sinais de distinção, aparece o
primeiro elemento expresso pelo pedido de cautela da parte das instituições
eclesiásticas com relação à precipitação de novas palavras, produzindo um
vocabulário escorregadio como o espaço entre os corpos dos tableaux de Bosch. Pode-se dizer quase qualquer coisa com a
invenção de palavras, o que pode generalizar o estado de idiotia em que tudo
opere como impossibilidade de comunicação, da mesma forma que do contrário
parece haver um sistema de redução do campo da conversação. No final das
contas, a história não oferece alternativa suaves, e tampouco soluções
definitivas. Todavia, a demarcação de campos específicos em que se dão
distinções permite que alguém como Pierre Bayle possa ter encontrado a manifestação
prototípica do obscurantismo religioso. Vale dizer que esta acusação não
precisa ser reputada, necessariamente, a um agente externo, um cético por
excelência. A racionalização da voz e a operação da palavra em prol da ordem da
comunicação eclesiástica, ou burocracia, também impera na definição e nos
contornos da fundamentação da parole
mystique-religieuse, aquilo que o mesmo Michel de Certeau chamará mais
adiante de politique de la langue,
com relação à ocasião da reforma da língua francesa pelo esforço monumental
conduzido pelo abade Henri Gregoire a partir de 1790.
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