IV- L’idiotie :
raisons d’être ce qu’on dit.
O percurso das pesquisas
sobre religião, com relação ao qual eu sou neófito, parecem marcar uma
dificuldade cada vez maior em haver precisão em endereçar as questões a um rumo
preciso. A ironia do problema está exatamente na busca de um sistema
classificatório preciso que determine o que viria a ser a religião de um ponto
de vista comparado, reunindo a humanidade antropológica, isto é, abraçada por
uma só disciplina de investigação, ao redor da evidência empírica da espécie.
Assim, a incorporação da história sagrada à história natural tem a consequência
pesada de encontrar a vida religiosa aonde houver vida humana sem conseguir
determinar se há precedência de um dos termos sobre o outro. Ainda assim, uma
aporia persiste que é conferir uma relação consistente entre o significante religião (cuja raiz filológica, segundo
as investigações de Émile Benveniste em seu vocabulário das línguas
indo-européias relembra a dicotomia hermenêutica entre reconstituir o termo a
partir, ou do relegere de sua preferência,
ou do religare que considera ser uma
perversão da filologia católica), repito, a aporia está em estabelecer uma
relação consistente entre o significante religião
e um significado que consiga oferecer suporte à variedade da vida religiosa – e
a remissão à William James é proposital uma vez que é dele o exercício de
conformar a vida religiosa a um ato, a uma vontade, a de ter um universo para
chamar de tu, segundo a fórmula
peculiar de seu seminário Will to believe.
A taxinomia que preside as ciências da religião, nos moldes do pensamento
moderno opera não somente na chave filológica mas, em geral, em um fundamento
filogenético em que a religião precisa responder a um fundamento de origem que
seja, antes de tudo, cronológico em que o enredamento de causas respeite o
estalo criativo, ou criador. Ainda que criação pareça ser uma constante
mitológica, e de certa forma, parece ser, aquilo se cria e a partir do quê se
cria é uma questão a parte, uma vez que não são poucos os mitos que narram a
criação do mundo a partir de um mundo, sem demarcar qualquer marco zero repetindo a máxima de Macedónio Fernandez de que o mundo foi inventado antigo.
Religião não é um assunto para principiantes, mas também não parece ser um
assunto para o conselho de sábios. Ao menos, não de qualquer forma.
O
vocabulário semiológico a partir do qual Michel de Certeau descreve o problema
da religião como categoria está
diretamente ligado tanto às fontes de uma leitura de Ferdinand de Saussure
quanto às dificuldades impostas pela racionalização da ordem eclesiástica à
vida do espírito. A figura sociológica da gaiola
de ferro, ou a resposta da Husserl às ciências experimentais de laboratório
tal como exposto em Krisis, ou a
reconstituição da esfera produtiva no ato da troca financeira operada por
Simmel em Philosophie des Geldes
pertencem de alguma forma este mesmo domínio no qual a fixação do termo daquilo
que é afasta o agente daquilo que ele mesmo faz. Cria uma mediação para a qual a expressão é obrigatória para que haja
conciliação dos termos de comunicação entre agentes que devem se relacionar
para além da pessoalidade. Mas aquilo que aponta como conciliação é, para todos
os efeitos a remissão a um procedimento comum, ponto no qual parte
significativa da história moderna, naquilo que ela tem de especificamente
moderno, converge para uma história da burocracia e sua coordenação estatística
daquilo que pode e deve ser encarado como algo comum, ou sociologicamente
relevante – justificando inclusive o impacto da sociologia na teoria do
conhecimento.
Não são poucas as conexões entre
aquilo que é possível conhecer na era moderna e sua conformação na linguagem
jurídica, assim como a elaboração de termos e fundamentos jurídicos organizados
a partir do sistema da natureza, se posso fazer aqui menção ao projeto
Iluminista que perpassa a história francesa desde d’Holbach até Auguste Comte.
Não foi outra a conduta libertina durante a caça às bruxas na França do século
XVII, e uma certa historiografia da ciência aprofunda o vínculo entre direito e
ciência moderna, cabendo mencionar mais fortemente as pesquisas de Barbara Shapiro
e Lorraine Daston. O caso é que este vínculo tem desdobramentos que vão além da
mera supressão dos atos públicos de superstição e intolerância religiosa. O
vínculo entre ciência e jurisprudência, para fins de segurança, interrompe a
conexão entre a experiência e a experiência ela mesma sob a acusação de sedição, isto é, de interromper a relação da mediação com a mediação ela mesma. Não é que os poderes constituídos façam isso
todo o tempo, mas podem fazê-lo quando for legítimo ou mesmo, quando for possível a
depender da configuração das linhas de força que demandem a evocação do
monopólio da violência, em nome do procedimento. E é por isso que a figura do
idiota é importante, ou ao menos didática para que este problema se ponha, sem
que seja atingida a radicalidade polêmica do caso da loucura e das instituições
de saúde mental que criaram a tensão, pouquíssimo considerada entre as teses de
Michel Foucault e Marcel Gauchet.
A verdade é que eu mal comecei a ler
o livro de Alain Supiot, sobre a função antropológica do direito, para ver
imediatamente a tensão constitutiva daquilo que elegi como pesquisa, o mesmo
tipo de incômodo que conduziu Victor Turner de uma análise estritamente
funcionalista para a análise simbólica das relações diretas com o sagrado: o
problema da experiência como constituinte das relações fundadas, com solo,
convergência e dispersão (o disfórico, frequentemente negligenciado nas
análises que portem algum caráter sociológico).
Supiot (2005) começa seu livro com o argumento filogenético no qual a
emergência do sentido tal como expresso pela linguagem se dá na mesma chave do
exercício da determinação da lei como fenômeno socialmente relevante. Algo na
chave da relação entre a fundação da sociedade e o pressuposto inapelável da
proibição do incesto, mas com marcas um pouco mais delicadas.
“ Les liens du Droit et liens de la parole se mêlent ainsi pour faire
accéder chaque nouveau-né à l’humanité, c’est-à-dire pour attribuer à sa vie
une signification, dans le double sens, général et juridique, de cet mot. Coupé
de tout lien avec ces semblables, l’être humain est voué à l’idiotie, au sens
étymologique du terme (grec idios :
« qui est restreint à soi-même »). Est pareillement menacé d’idiotie
celui qui, enfermé dans sa propre vision du monde, est incapable de comprendre
qu’il en est d’autres possibles, c’est-à-dire incapable de s’accorder avec ses
semblables sur une représentation du monde où chacun ais sa juste place.
L’aspiration à la Justice n’est donc pas le vestige d’une pensée préscientifique,
mais représente, pour le meilleur e pour le pire, une donnée anthropologique
fondamentale. L’homme peut tuer et mourir pour une cause qu’il estime juste (sa
Liberté, sa Patrie, son Dieu, son Honneur, etc.) et de ce point de vue il y a
en chacun de nous une bombe. » (2005 :09)
Pois que o rumo em direção à justiça
é, por sua vez a produção e o recurso à Lei que opera em analogia – difícil
saber até qual ponto, em identidade – com a linguagem. A ascese à Lei e
humanidade são um só processo, a matriz do sentido e da ordem impulsionada pelo
senso de Justiça. E a ordem é fruto da regência de um Legislador original, que
serve como Legislador. E no meio disto, o idiota, perdido em sua incapacidade
ou mesmo sua carência, a forma mais frágil de ser fora da lei.
No anseio de produzir um sistema
classificatório abrangente que permitisse um sistema comparativo, ou mesmo uma
legislação que abarcasse a variedade religiosa segundo sua função social,
invenção esta do processo revolucionário de 1789, e não da sociologia francesa
como se imagina, prossegue naquilo que é, no final das contas a definição de
uma regra. Ou melhor, um regulamento daquilo que não somente é ou não, mas
daquilo que é ou não relevante como religioso. Nisso, a apreciação e, ao mesmo
tempo condenação da obra de William James por Marcel Mauss operando exatamente
na mesma chave que nos leva de volta ao trabalho de Michel de Certeau sobre a
idiotia no qual um idiota, ao conseguir ler, talvez venha a se reconhecer com
maior felicidade – da mesma forma que a proposição da comunicação esquizofrênica
traz o esquizo para conversar. Sobre o que for.
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