quarta-feira, 17 de julho de 2013

La faiblesse de croire : la diabolie


DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.
1983.
REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.

1-
            Estão, desde então e desde sempre sob suspeita. Esta é a lição de Ernst Troeltsch a respeito dos místicos e daqueles que se reúnem ao seu redor. Ruim com eles, pior sem eles e a dimensão extática faz de seus eleitos a forma sensível da fé. E a forma sensível, o contato imediato é igualmente a fonte das tentações mais graves, especialmente quando o tema da natureza caída estrutura a ordem. O mundo e o Céu, o mesmo destilado sempre com mesma letra maiúscula que encontramos em Don Juan de Molière. Isto porque o hiato entre a ordem cósmica e a ordem política que guarda os segredos do outro mundo nem sempre estão em acordo e, para além disso a relação entre um extremo e outro delineia aquilo que é o próprio espaço da querela eclesiológica. A extensão e a forma da ordem no que tange a definição do domínio. Não à toa, e especialmente no alvorecer da modernidade clássica a tensão entre potestas e autoritas ofereceu e ainda oferece desafios nada insignificantes no que tange a justificação da ordem, sua elaboração discursiva e a instituição do domínio. Aquele que vive o poder na pele sem ser o poder ele mesmo é, assim, um desafio para a divulgação das boas novas, quando são de fato algo otimistas.
            Assim, o que fazer com o relato místico, com as experiências de contato direto com os mirabilia, com tudo aquilo que desafia a mera classificação desafiando a dignidade fundamental que impotente não consegue fazer nada senão evidenciar a sua pequenez diante a linguagem adâmica falida desde a Queda? Nem tanto esta questão, a do quê fazer, mas descrever como fazer. Ou melhor, descrever como em determinados casos a Igreja, pela agência que lhe é peculiar em momentos determinados resolveu uma certa gama desses eventos,  é aquilo que serve de base para as investigações primeiras de Michel de Certeau, particularmente ao redor do estabelecimento dos escritos de Jean-Joseph Surin - exorcista de formação jesuíta e o principal investigador do caso da possessão das irmãs ursulinas em Loudun, entre 1630-1636. França. Ele mesmo sendo um intelectual da igreja, igualmente jesuíta redige mais adiante um trabalho de fôlego sobre exatamente a determinação filológica e teológica de obras místicas que resolvem no livro La Fable Mystique, I – XVIe-V+XVIIe siècle. Neste livro em questão, além de descrever em detalhes como se deu a circulação dos escritos místicos de Surin, Certeau assume o risco de olhar-se no espelho e ver-se na escrita mística que é auxiliada por uma outra, secular e dedicada a transmitir sem iludir cujo teatro é encenado principalmente pela relação entre Diego de Jésus e São João da Cruz. Exercício de depuração e ordenamento sem fazer pleno sentido, sem abrir mão do inefável, do inexprimível. Não é o mesmo de determinar bulas, atas e manuais de direito canônico. Isto porque há algo que deve ser deixado de lado ou que é de qualquer forma delicado, fugidio porque ausente deste mundo. O texto a ser estabelecido não deve fazer as vezes de texto sagrado. Além disso, traz consigo a ordem, o procedimento que define que o místico em questão não fora ele mesmo, iludido. No que mais importa o texto se esvazia. E é sobre este vazio, no terreno em que há muita margem de manobra que o diabólico toma lugar.
           
            “Le lecteur, séduit par ce « rien », deviendra-t-il fou à son tour, ou bien, retourné chez lui, cherchera-t-il, s’il peut, à oublier ce qui lui est retiré ? De n’être jamais où on pourrait dire, la folle a falsifié le contrat que l’institution garantit et qui protège contre le « vertige » de ne pas savoir « à quoi m’en tenir sur le désir de l’autre, sur ce que je suis pour lui ». Finalement, aucun contrat, fût-ce le premier et dernier de tous, celui du langage, n’est pas par elle honoré. En répétant nos mots et nos histoires, elle y insinue leur mensonge. Peut-être, tandis que le sym-bolos est fiction productrice d’union, est-elle dia-bolos, dissuasion du symbolique par l’innommable de cette chose. » (Certeau, 1982 :58)

            Peculiarmente o trecho que cito acima não faz remissão a qualquer coleção de textos místicos. As citações acima são trechos de dois livros. O livro de Claude Reichler, La Diabolie, e a autobiografia de Roland Barthes, ambos semiólogos. Ainda bem. E com “ainda bem” não pretendo exprimir nenhum juízo em favor de Roland Barthes. Nem desfavorável. Muito pelo contrário. De fato não há nada que eu pretenda, ao menos não em demasia. Este é um ensaio no qual muito pouco, ou mesmo quase nada tende a acontecer. Por vezes demasiado lento, e em outros momentos acelerado aos saltos, pretende simplesmente sugerir notas de um exercício para o qual não estou e não pretendo estar à altura. É fruto da inventiva de assinalar alguns elementos para uma análise propriamente diabólica. Pelo visto, este não será um exercício solitário ainda que a companhia seja algo custosa.
            Quando ainda em Paris, com a curiosidade atiçada pelo título do volume redigido por Reichler, encomendei-o com vistas em tomar notas. Tomar conhecimento de sua existência por via do livro de Michel de Certeau, no entanto, traz uma pequena dificuldade. Isto porque segundo a investigação do jesuíta preferido de nove entre dez estruturalistas franceses – há quem prefira Matteo Ricci,  e mesmo António Vieira, é verdade – o discurso diabólico é uma espécie de discurso limite ainda mais perigoso que o idiota. Porque o apelo direto aos sentidos e a sedução extática são armas, antes de mais nada, do Príncipe deste Mundo – lembrando o título do pequeno livro de Raïssa Maritain. Sendo assim, o êxtase da relação imediata com o transcendente, com as forças maiores que a humanidade são perigosas exatamente por não trazerem clareza quanto aos signos de sua fonte. A imaginação e os dados imediatos, dois diabos que o cartesianismo se esmerou em exorcizar – o que em nada tem a ver com exterminar, mais uma vez muito pelo contrário.
            O livro de Reichler, contudo, está preocupado com coisa bastante diferente. Está atento ao discurso sedutor, falacioso mas não como caso limite. Somente como caso. Entre a lisura e a retidão, por um lado, e a sedução da falácia de outro, eis o que se mostra como tarefa do estudo:

            “(...) on tentera de décrire l’opposition de ces deux modes du dire comme étant celle de deux imaginaires investis par les sujets parlants dans le langage, qu’une ambivalence constitutive de celui-ci sécrète. » (1979 :10)
Paul Cézanne; Nature Morte. 

            Se o cenário de Michel de Certeau se aproxima da dimensão geopolítica da secularização e da formação do território que faz do místico o estrangeiro na modernidade, exatamente como o louco e o selvagem[1], Reichler afirma a autonomia da imaginação sedutora. Não como uma forma de cidadania, vale dizer, mas como uma postura que qualquer norma de linguagem, ainda que venha a exorcizar, não elimina. E sim, estamos falando de um tratado de semiótica. É a linguagem sobre a moral, e não a moral ela mesma que interessará ao diabólico – e assim se mostrará o quão difícil, se mesmo meramente possível, é falar do diabólico sem carregar desde então as suas marcas. Uma delas é exatamente o de carregar a linguagem consigo como se meramente linguagem fosse.



[1] Vale lembrar que Marcel Gauchet é altamente refratário à tese foucaultiana que delineia de forma mais enfática a equivalência sugerida entre loucos e estrangeiros. Ao contrário, é dele a tese de que o sistema manicomial é, à sua forma, o reconhecimento de cidadania deste tipo de cidadão pouco razoável. O caso é que é de Gauchet mesmo a forma de definição da cristandade como desenvolvimento progressivo de instituições de saídas da religião, fazendo de Deus o maior de todos os estrangeiros, tal como expresso tanto em Le desenchantement du monde  como em La condition politique. Se a relação entre louco e estrangeiro lhe soa arbitrária, as razões do religioso ser alguém em proximidade com o estrangeiro radical, não. Ao mesmo tempos ele reconhece as aporias da religião, e de como o enunciado religioso sofre para fazer sentido diante das instituições modernas. Restaria então, no seu caso, resolver a estranha facilidade em excluirmos da mesma fronteira, loucos, místicos e selvagens. 

5 comentários:

Fabiane Vinente disse...

Bernardo, sua erudição sempre me deixa atordoada. Vou dormir pensando em uma resposta à altura para esta postagem.

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...

Bia;

Ainda que eu reconheça a gentileza do que disse, fazer menção a qualquer pretensa erudição que eu detenho é um exagero, quando não simplesmente mentira. Mas se este boneco de cera que você criou servir para começarmos a conversar de fato - bate-papo que há algum tempo eu anseio -, tudo bem. Aceito. De mentirinha, igual a tal da erudição, mas aceito.

Fabiane Vinente disse...

Bernardo, espero que você não tenha levado a mal o meu gracejo atrapalhado. Esta coisa da linguagem na tela do computador deixa tudo mais seco. Realmente reconheço erudição no que você escreve, nas referências que você articula, mas não é depreciativamente que te falo isso. Você é criativo, inquieto e sua erudição, por estes motivos, é viva e cheia de matizes interessantes. Respeito demais você, não me entenda mal. Quero muito debater essas ideias, mas ainda não me sinto em condições para. Estava lendo a terceira parte da postagem e percebi que tinha que ler tudo novamente, desde o início, para dialogar contigo. Tenho muito que te apresentar um amigo lá do Museu, o Caco Xavier. Acho que vocês conversariam por horas.

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...

Bia;

Claro que não levei a mal. O caso é que essa de erudito eu não compro, especialmente tendo travado contato e amizade com dois ou três. Eu sei que pequei pela falta de carinho ao dizer que me classificar como tal é gentil, mas é mentira. Mas no final das contas, é gentil, mas é mentira. Mas não ofende. Nem de perto. Imagine só. Eu, ofendido com um elogio.


(bom... na verdade, já aconteceu. mas não foi desta vez.)