terça-feira, 30 de julho de 2013

Parêntese diabólico: langue et parole


BACHELARD,  Gaston. O pluralismo coerente da química moderna. Rio de Janeiro. Contraponto. 2009 [1973].
DASTON,  Lorraine & GALISON,  Peter. Objectivity. Nova York. 2007.
MANIGLIER,  Patrice.  La vie énigmatique des signes: Saussure et la naissance du structuralisme. Non & Non, Éditions Léo Scheer. Paris. 2006.

3-        Porque falar é fácil. Difícil é saber do que se está falando. 



            On voit que la célèbre thèse selon laquelle ce n’est pas l’objet qui détermine le point de vue, mais le point de vue qui détermine l’objet ne doit pas être comprise comme axiome épistémologique général, mais comme une thèse déduite de la nature de l’objet linguistique lui-même, plus précisément du fait que l’entité linguistique ne saurait exister en dehors d’un acte de l’esprit. »  (Maniglier, 2006 :64)

            O capítulo de onde saco esta citação chama-se “la langue satanique” e nos leva para a primeira reflexão sobre a diabolia de Reichler, ainda que este seja uma nota de rodapé, um parêntese na reflexão, sobre não somente a afirmação da diabolia como possibilidade mas de como é possível que algo como o que sugere o mesmo Reichler seja factível para além de uma investigação detida sobre a renardie. Manigliertem como objetivo de seu livro definir quais termos são articulados pela persona editorial de Saussure e como esta persona – algo semelhante à figuração da ordem editorial mística de São João da Cruz e seu editor-discípulo, Diego de Jesus – determina o fato linguístico. E por se tratar da determinação do que seria o fato linguístico, trata-se de ontologia, a saber, de uma língua que seja só-linguagem. Esta é a orientação metodológica de um Ferdinand de Saussure que recusa a imediaticidade do indivíduo linguístico como se partícipe da história natural de onde se depreende a relação implicada da zoologia com a filologia – havendo, obviamente, o filo como uma das escalas da especificação (reino, classe, filo, espécie). O outro problema está, ao recusar qualquer dimensão da filogenia do organismo na expressão do sentido, no fato linguístico se precipita em sua forma sincrônica. O sentido se dá na consciência daquele que fala, cuja arquitetônica prescinde da história permanente da instituição, algo transcendente, vindo a ser então só-atualização – e é neste ponto em que a linguagem seja só-linguagem, podendo ser abstraída de quem fala sem que o que fora dito seja determinante, permitindo ao linguista utilizar a mesma linguagem para sua atividade científica. E então, um tropeço fortuito. Porque o objeto da linguística não estando desde já, lá, é lá que ele deve-estar.

            D’autant que la linguistique non seulement ne saurait finir par trouver un objet donné, mis ne trouve même le « point de départ » dans aucune réalité donnée. Par là elle perd tout caractère expérimental. Les sciences expérimentales supposent non seulement comme horizon la séparation du donné et du construit, mais aussi un donné qui, aussi mal découpé soit-il, n’en est pas moins donné en dehors de toute opération d e l’esprit. Le biologiste utilise un tissu donné, pour mettre en évidence, par de procédés de coloration ou d’électrification, une cellule ; le chimiste par d’une substance donnée, pour l’analyser et faire apparaître s nature chimique. Quelle est la substance du linguiste? » (Maniglier, 2006 :66)

            Se o estruturalismo é uma forma de problematização, como Maniglier sugere com razão, então ele mesmo se esquece da história e de algumas das questões postas por este mesmo estruturalismo que não é um método, não é uma escola, mas uma postura epistemológica. No caso, as fontes da reflexão sobre a objetividade científica que define o caráter estrutural dos objetos a serem investigados por via da correlação dos termos que oferecem seu conjunto como agremiação estabelecendo, assim sua determinação. Dos capítulos do estruturalismo que Maniglier negligencia, e que merecem atenção por estarem muito bem sumariados em História do Estruturalismo de François Dosse, presente em sua bibliografia, o mais marcante é a ausência de Bachelard cujo livro O pluralismo coerente da química moderna define com notada clareza os elementos constituintes de um racionalismo aplicado, em muito desdobrado da longa tradição da versão cartesiana da astronomia. É ela quem se dedica ao problema dos corpos celestes que, de acordo com a mecânica geral das órbitas, sugere que eles devem estar lá, num determinado momento, em uma determinada posição infinitesimalmente distante, invisíveis a uma investigação telescópica. Assim, são objetos que começam a ser oferecidos ao discurso segundo uma concepção estrutural de objetividade posteriormente sintetizada na noção fregeana de begriffschrift (“escritura de conceitos”) em que o pensamento em sua expressão deve ser incluído na circunscrição do objeto como problema constituinte.

            Meant to guarantee the communicability and therefore the objectivity of arithmetic and logic, the begriffshrift itself  proved opaque. Frege nonetheless insisted on the scientific utility of his symbols, which he saw as the partial realization of Leibniz’s dream of characteristic universalis and as potentially extendable to other sciences, such as mechanics and physics. The begriffschrift would be a tool of structural objectivity, a shield to protect logic and arithmetic from both the psychological and the psychologists – at one point, he feared psychology would swallow up all sciences.” (Daston & Galison, 2007:271)

            Não basta estar lá para ser alvo de uma investigação que, ainda que experimental, demanda clareza de expressão, premissa  tanto epistemológica quanto sociológica na medida em que boa parte do esforço de redação científica moderna é uma grande epistolografia entre desconhecidos a respeito de um assunto comum, tema a ser estabelecido na mesma medida que independente daquele que disserta a seu respeito em um determinado momento. Unidade de medida, instrumentos de laboratório e descrição de substâncias em sua invisibilidade leva à elaboração de um código, uma caracterologia universal que define cada objeto em sua generalidade, numa formulação mais geométrica que empírica (Daston & Galison, op.cit.). E na química este mesmo movimento, composto elo arco narrativo sobre os elementos químicos, de Lavoisier (ao redor da Revolução Francesa) até Mendeleiev está devidamente marcado. Não surpreendente, o ato de identificação do objeto, ao contrário do que sugere Maniglier, não é o dado apreensível, ou da investigação empírica imediata.

            Já não se trata de uma experiência sempre focalizada no indivíduo ou na espécie, mas sim no gênero. Isso vai determinar uma renovação nominalista que fará da nomenclatura química um verdadeiro método de conhecimento. Nomear servirá mais para conhecer do que para reconhecer, e a própria classificação das substâncias elementares se mostrará movida por um pensamento ativo que designa um lugar regular para um objeto antes de encontrar esse objeto.”(Bachelard, 2009 [1973]):23)

            Agruras do infinitesimalmente grande, do infinitesimalmente pequeno e do humanamente instável. Saussure está longe de oferecer, como parece afirmar Maniglier, um percurso afastado das ciências experimentais dado que um e outro, segundo aquilo que ele mesmo oferece como traço distintivo, travam uma batalha feroz para determinar o objeto que deveria estar-lá.

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