REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie,
l’écriture. Minuit. Paris.
1979.
2-
No limite, são dois reinos: o do
símbolo[1]
e o do signo. O símbolo, desde um certo aporte semiológico, é de estrutura
binária em que constam o simbolizando e o simbolizado cuja articulação repete o
procedimento da metáfora sem ser circunscrita em seu domínio dado que a
simbolização pode, e mesmo deve ir além da analogia vaga. Ela deve dizer a
coisa. O signo, por sua vez, é de estrutura ternária compreendendo
significante, significado e referente, os três postos em relação em seu
assujeitamento às relações de significação e designação/denotação. Em cada um
dos reinos as relações constantes determinam o que Reichler define, a partir da
semiótica de Lotman, uma modelização semiótica que vem a configurar em um
segundo momento – lógico, não cronológico – a norma que estabelece em que se
reconhece uma relação e, mais uma relação válida tendo em vista a expressão do
código em movimento. Aí surge a ambivalência, interna ao movimento semiótico
que é o da cultura em sua particularidade, entre a lisura e a sedução, a
retidão e a falácia. Tanto a norma quanto o desvio são, todavia, forças,
dinâmicas profundas de articulação de sentido. São fundamentalmente movimento,
sem serem movimento puro. São ordens diferenciadas desde a fonte e que se
diferenciam – em si e entre si – diferentemente. E nesta diferença é aonde pode
trafegar o diabólico.
“Por
oposição a uma relação concebida como íntima e totalizante, segundo o sentido
etimológico rigoroso do symbolon, a
operação “diabólica” consiste antes de qualquer coisa em separar isso que deve
ser reunido e, correlativamente exaltar a capacidade significante ela mesma,
sem se reportar à sua virtude transitiva. Mas tal diabolia, se exercida a cada vez que uma modelização semiótica
pretende limitar suas possibilidades da linguagem e atrelar (cheviller) assim o regime dos sentidos a uma
ideologia, não se exerce então sempre da mesma maneira. Ela constitui desde a Idade
Média aos nossos dias, quero dizer, ao longo do desenvolvimento da língua e da
literatura francesas, a história de uma forma de linguagem dotada de um
dinamismo prodigioso.”(Reichler, 1979:12)
Quando Reichler sugere a autonomia
entre domínios, do simbólico e do signo, acaba por antecipar aquele que será o
movimento do diabólico como movimento intensivo na ordem da ordem. E exatamente
por intensificar certos movimentos sem respeitar os casos-limite que culmina
como um domínio autônomo que faz criar, por sua vez, outras autonomias. Que se
entenda. Os passos estão demasiado abstratos, parecendo que tudo pode ser dito.
É preciso algo mais próximo ao solo, é preciso produzir algum atrito.
Infelizmente esta não é uma prerrogativa do exercício diabólico, cujo exercício
preferido parece ser brincar com a autonomia da autonomia e sugerir solo
somente aonde não se pisa.
O semiólogo do diabolismo parte de
um sistema de oposições que ele define ser propriedade da modernidade clássica
– em grande parte oriunda das reflexões de Blaise Pascal mas que trazem consigo
forte orientação da caracterização de Michel Foucault em Les mots et les choses, como o próprio vocabulário utlizado
denuncia. Esta oposição deve oferecer a tensão constituinte entre o que é
propriamente a) simbólico e o que é propriamente b)diabólico. De um ponto de
vista semiológico, claro.
a) SIGNO -------------------------------> COISA
(som, grafia)
b) SIGNIFICANTE
--------------------> SIGNIFICADO/REFERENTE
O signo como tal, ao contrário do significante
não porta qualquer agência implícita. Ele é a relação com a coisa, é a forma de
presença por via da relação distanciada. O implícito da relação é a coisa, como
na Res Pública. No caso do significante, seu aspecto fundamental é o caráter
classificatório da linguagem, sobretudo com relação a ela mesma fundando uma
episteme positiva que inclui o referente num quadro de ordem que é antes
classificatório do que revelado. Assim, a relação entre signo e coisa opera
numa razão cuja suficiência é denunciada pela conversação diabólica na qual as
promessas de Don Juan – um dos casos estudados de Reichler – são palavras e tão
somente palavras. Seu sentido se elucida na convocação de outras palavras para
deporem. Pas de mots ET choses, mas de mots sur mots. As palavras não tem, no jogo implícito da
sedução qualquer caráter hierárquico como se encontra em uma prece e tampouco
carrega consigo o peso dos nomes que não podem ser ditos. Ao mesmo tempo em que o vigor libertino das
relações de sentido é exponencialmente incrementado, é o pendor
classificatório, o código como movimentação de peças que impera estabelecendo em seu seio o lugar
e, assim, a diferença entre as coisas. O que distingue é o que reúne. Mas em
contraste com o que oferece o simbólico esta orientação impacta por fazer
circular uma falsa promessa porque mesmo no que diz respeito às palavras que
fazem viger o código, mesmo elas, são só palavras o que é o mesmo que dizer que
a palavra é só uma coisa. Mas caso eu dissesse algo assim eu seria propriamente
diabólico.
Assim, é possível compreender melhor
a enorme distância entre o princípio do livre arbítrio no qual jaz a liberdade
humana no seio da criação e da determinação do símbolo, cuja fonte é
hierofânica, e a noção de arbitrariedade do signo cuja aproximação ao sentido
se dá pela oposição com outro signo, num sistema de gravitação autônomo e
não-determinado. Neste caso Saussure, que é o agente secreto, sequer utiliza o
termo “símbolo” dado que o que é alvo e fundamento de seu modelo é um sistema de oposições cuja correlação é arbitrária, isto é, não-necessária
fazendo do mero recurso da linguagem a vigência do Reino Deste Mundo, cujo
príncipe bem sabemos quem seria. Daqui se compreende também a relação entre
Roland Barthes e seu cartel de hereges, e ele mesmo um herege do contrato linguístico.
[1] “Le symbole est
essentialement pouvoir de réunir, et
l’on se s’étonnera pas que les religions se soient toujours appuyés sur sa
puissance, tout en la suspectant. »(Reichler, 1979 :11)
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