sexta-feira, 19 de julho de 2013

La faiblesse de croire: la diabolie


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.


2-
            No limite, são dois reinos: o do símbolo[1] e o do signo. O símbolo, desde um certo aporte semiológico, é de estrutura binária em que constam o simbolizando e o simbolizado cuja articulação repete o procedimento da metáfora sem ser circunscrita em seu domínio dado que a simbolização pode, e mesmo deve ir além da analogia vaga. Ela deve dizer a coisa. O signo, por sua vez, é de estrutura ternária compreendendo significante, significado e referente, os três postos em relação em seu assujeitamento às relações de significação e designação/denotação. Em cada um dos reinos as relações constantes determinam o que Reichler define, a partir da semiótica de Lotman, uma modelização semiótica que vem a configurar em um segundo momento – lógico, não cronológico – a norma que estabelece em que se reconhece uma relação e, mais uma relação válida tendo em vista a expressão do código em movimento. Aí surge a ambivalência, interna ao movimento semiótico que é o da cultura em sua particularidade, entre a lisura e a sedução, a retidão e a falácia. Tanto a norma quanto o desvio são, todavia, forças, dinâmicas profundas de articulação de sentido. São fundamentalmente movimento, sem serem movimento puro. São ordens diferenciadas desde a fonte e que se diferenciam – em si e entre si – diferentemente. E nesta diferença é aonde pode trafegar o diabólico.

            “Por oposição a uma relação concebida como íntima e totalizante, segundo o sentido etimológico rigoroso do symbolon, a operação “diabólica” consiste antes de qualquer coisa em separar isso que deve ser reunido e, correlativamente exaltar a capacidade significante ela mesma, sem se reportar à sua virtude transitiva. Mas tal diabolia, se exercida a cada vez que uma modelização semiótica pretende limitar suas possibilidades da linguagem e atrelar (cheviller) assim o regime dos sentidos a uma ideologia, não se exerce então sempre da mesma maneira. Ela constitui desde a Idade Média aos nossos dias, quero dizer, ao longo do desenvolvimento da língua e da literatura francesas, a história de uma forma de linguagem dotada de um dinamismo prodigioso.”(Reichler, 1979:12)

            Quando Reichler sugere a autonomia entre domínios, do simbólico e do signo, acaba por antecipar aquele que será o movimento do diabólico como movimento intensivo na ordem da ordem. E exatamente por intensificar certos movimentos sem respeitar os casos-limite que culmina como um domínio autônomo que faz criar, por sua vez, outras autonomias. Que se entenda. Os passos estão demasiado abstratos, parecendo que tudo pode ser dito. É preciso algo mais próximo ao solo, é preciso produzir algum atrito. Infelizmente esta não é uma prerrogativa do exercício diabólico, cujo exercício preferido parece ser brincar com a autonomia da autonomia e sugerir solo somente aonde não se pisa.
            O semiólogo do diabolismo parte de um sistema de oposições que ele define ser propriedade da modernidade clássica – em grande parte oriunda das reflexões de Blaise Pascal mas que trazem consigo forte orientação da caracterização de Michel Foucault em Les mots et les choses, como o próprio vocabulário utlizado denuncia. Esta oposição deve oferecer a tensão constituinte entre o que é propriamente a) simbólico e o que é propriamente b)diabólico. De um ponto de vista semiológico, claro.


a) SIGNO -------------------------------> COISA
   (som, grafia)

b) SIGNIFICANTE --------------------> SIGNIFICADO/REFERENTE

            O signo como tal, ao contrário do significante não porta qualquer agência implícita. Ele é a relação com a coisa, é a forma de presença por via da relação distanciada. O implícito da relação é a coisa, como na Res Pública. No caso do significante, seu aspecto fundamental é o caráter classificatório da linguagem, sobretudo com relação a ela mesma fundando uma episteme positiva que inclui o referente num quadro de ordem que é antes classificatório do que revelado. Assim, a relação entre signo e coisa opera numa razão cuja suficiência é denunciada pela conversação diabólica na qual as promessas de Don Juan – um dos casos estudados de Reichler – são palavras e tão somente palavras. Seu sentido se elucida na convocação de outras palavras para deporem. Pas de mots ET choses, mas de mots sur mots. As palavras não tem, no jogo implícito da sedução qualquer caráter hierárquico como se encontra em uma prece e tampouco carrega consigo o peso dos nomes que não podem ser ditos.  Ao mesmo tempo em que o vigor libertino das relações de sentido é exponencialmente incrementado, é o pendor classificatório, o código como movimentação de peças  que impera estabelecendo em seu seio o lugar e, assim, a diferença entre as coisas. O que distingue é o que reúne. Mas em contraste com o que oferece o simbólico esta orientação impacta por fazer circular uma falsa promessa porque mesmo no que diz respeito às palavras que fazem viger o código, mesmo elas, são só palavras o que é o mesmo que dizer que a palavra é só uma coisa. Mas caso eu dissesse algo assim eu seria propriamente diabólico.
            Assim, é possível compreender melhor a enorme distância entre o princípio do livre arbítrio no qual jaz a liberdade humana no seio da criação e da determinação do símbolo, cuja fonte é hierofânica, e a noção de arbitrariedade do signo cuja aproximação ao sentido se dá pela oposição com outro signo, num sistema de gravitação autônomo e não-determinado. Neste caso Saussure, que é o agente secreto, sequer utiliza o termo “símbolo” dado que o que é alvo e fundamento de seu modelo é um sistema de oposições cuja correlação é arbitrária, isto é, não-necessária fazendo do mero recurso da linguagem a vigência do Reino Deste Mundo, cujo príncipe bem sabemos quem seria. Daqui se compreende também a relação entre Roland Barthes e seu cartel de hereges, e ele mesmo um herege do contrato linguístico.



[1] Le symbole est essentialement pouvoir de réunir, et l’on se s’étonnera pas que les religions se soient toujours appuyés sur sa puissance, tout en la suspectant. »(Reichler, 1979 :11)

Nenhum comentário: