quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Religião para Lelés da Cuca: genealogia da moral


BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Gallimard. Paris. (2012 [1947])
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. (2011[1973])
NIETZSCHE,  Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Companhia das
Letras. São Paulo. 2001.

I-

Todos temos amigos, ou ao menos é o que parece ser. De qualquer forma é algo que só podemos intuir. Não há muito o que fazer senão, nesta altura, desconfiar que sim. Porque se trata de correspondência fugaz, desconfiada dos sinais que emitimos e por isso, desacertada, dos sinais que recebe em troca. Que haja desconfiança quanto a quem é ou não é amigo, mas o que dos inimigos se sabe é que quem é, o é por justa razão, porque obstrui o caminho, especialmente no ato da caminhada. Trancar a rua, é o que parece, sendo o suficiente como código, e que basta odiar e, mais do que isso, eliminar o obstáculo que define o exercício da inimizade, desde o obstáculo até o extermínio de uma das partes. Nisto boa parte dos folhetins que dispomos define ser o ato de inimizade e o caminho  de uma trama magistral aquela que elimina da superfície terrestre o corpo político chamado de "empecilho". Inimigos que, por fim, carregam consigo todos os sinais de fraqueza e da incompreensão da escala da relação que faz desentender no mesmo golpe as dimensões da violência, aquilo que é bom e aquilo que é mal.
Nietzsche é responsável por uma passagem delicada em que investiga o legado judeu para a emergência de uma certa noção de inimizade na conformação de uma moral moderna, a mesma que desenha a forma de determinar o bom, o mal, o belo e o feio sem que seja reconstituída a genealogia que dá conexão entre estes termos todos. O bom e o mal, o belo e o feio, o bem e o ruim/mau não são a mesma coisa, diriam alguns; ora, responde o filólogo da genealogia, a palavra dirá aquilo que eu quiser que ela diga caso eu seja nobre, forte e valoroso - afinal este jogo da potência que permite que algo como o batizado ocorra. Dá nome quem pode, não quem quer. E que por agir na instituição de um domínio e que por isso eu seja signo de nobreza, beleza e bondade, que se deixe o contrário como mero exercício do negativo, sendo vil aquele que não age com nobreza. E é no sacerdócio que esta operação tomará uma outra dimensão, aquela em que não é preciso conciliar o ato de nobreza com a nobreza que se porta fundando uma ordem, uma organização sem corpo, uma autoridade de chancela. Uma moral sem risco da bondade impessoal e da maldade corporificada. O sacerdócio dos escravos, a herança judaica para quem a guerra é um mau negócio vindo a forjar a vingança por via da tresvaloração, o que logo em seguida o mesmo Nietzsche chama de vingança espiritual (2001:26) em que se deu a beatificação da impotência.
Que se leia do legado de Nietzsche como anti-semitismo seria simplesmente resultado de pressa o que, contudo, não impede tal interpretação. Afinal, diriam alguns, é preciso se proteger do inimigo. Seguramente que o esmalte da figura judaica sai arranhada da acusação, mas não é o judeu enquanto tal quem afronta a potência humana de ser, mas a personagem que  exercita a sua desfiguração do inimigo a quem não se deve senão desprezo e que, por ordem da inversão judaica levada ao ápice pelo cristianismo teria levado à reles maldade, redução ao mínimo múltiplo comum de uma existência comprimida a uma só dimensão. O que está em questão é o inimigo, aquele contra quem há de se indispor e que, reduzido ao aspecto mais vil e ignóbil, à mera maldade reduz a contenda ao mesmo ponto, ao mesmo termo em que só é possível ser um inimigo como alguém a ser exterminado. O que daí desdobra é um elogio a Mirabeau quem não conseguia cultivar quaisquer sentimentos por seus inimigos a quem não desculpava porque se esquecia. Esquecia-se especialmente da ofensa.

Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele  no qual nada existe a desprezar e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom”- ele mesmo!...”(Nietzsche, 2001:31)

Que a genealogia seja um equívoco[1], que tenha apontado para o agente errado, eis algo a ser discutido. Mas não é necessariamente o agente que está em questão mas a precipitação da agência e de um certo dispositivo formal no qual a projeção da impotência como forma de poder tenha transformado a relação de inimizade na purgação do mal que ronda, cerca e invariavelmente mata e que, assim, deve ser reduzido ao mínimo que logo é. Que não seja o judeu como pessoa mas como efeito, o poder exercido por via do sacerdócio contra a nobreza, como efeito em que o inimigo é uma ameaça completa fazendo da contenda o exercício das formas vis forçando a uma atitude contrária à vida e ao exercício da potência: a de si e a de outrem. Reduzir a vida ao mínimo comum fazendo do inimigo alguém a ser exterminável porque do ponto de vista do valor ele já não faz diferença alguma, ou quando o faz figura nas sendas do dispensável, quando não do degenerado. A dificuldade de enunciar este ponto de vista, contudo, só não é maior do que o esforço em aceita-lo. Por diversas razões.
Uma forma de fazê-lo é mudar as personagens e alterar a escala da relação. Outra é introduzir questões relativas à distinção entre ação e agência com vistas nos conteúdos e dispositivos que determinam pessoas, coisas e movimentos. Nada disso se faz diretamente pela genealogia da moral, mas não deixa de ser possível fazê-lo no cotejo com outras fontes. Bataille, por exemplo que ao seguir no anti-dogmatismo, que é na verdade anti-papismo radical, recusa a noção de autoridade e do conceito de projeto para reduzir toda autoridade possível ao pré-discursivo, ao não proferido ou melhor, ao silêncio loquaz. Recusa até mesmo a noção de mística para não oferecer oportunidade para a reintrodução de uma ordem eclesiástica qualquer no universo da potência, reproduzindo assim a redução ao extinguível. A experiência interior, reduto da única autoridade que autoriza, plano da imanência, fluxo que corta e cola, a certeza que se desfaz quando algo é dito. Mas quando a assertiva parece formar corpo e conduzir para uma direção gloriosa, a que redime a humanidade fazendo com que venha de encontro com ela mesma, aparece a Guerra – questão que jamais incomodaria a nobreza serralheira de Friedrich Nietzsche porque até então o que havia era a guerra, no minúsculo. Nela encontramos o horror maior, mais definitivo e marcante que o horror da experiência interior, outra forma de arrebatamento.

L’horreur de la guerre est plus grande que celle de l’expérience intérieure. La désolation d’un champ de bataille, en principe, a quelque chose de plus lourd que la « nuit obscure ». Mais dans la bataille on aborde l’horreur avec un mouvement qui la surmonte : l’action, le projet lié à l’action permettent de dépaser l’horreur. Ce dépassement donne à l’action, au projet, une grandeur captivante, mais l’horreur en elle-même est niée. » (2012 :58)


[1]O primeiro impulso para divulgar algumas das minhas hipóteses sobre a procedência da moral me foi dado por um livrinho claro, limpo e sagaz – e maroto – no qual uma espécie contrária e perversa de hipótese genealógica, sua espécie  propriamente inglesa, pela primeira vez me apareceu nitidamente, e que por isso me atraiu – com aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e antípoda. O título do livrinho era A origem das impressões morais; seu autor, o Dr. Paul Rée; o ano de seu aparecimento, 1877. Talvez eu jamais tenha lido algo a que dissesse “não” de tal modo, sentença por sentença, conclusão por conclusão, como a esse livro, não para refutá-las – que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”(2001:10)

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