De vez em quando, em geral entre as 6 da manhã e a meia-noite, eu fico fora de mim. Ou melhor, como diria meu tio, eu fico “fora-de-si”. E aí, escrevo o que não devo. Em geral, qualquer coisa. Deveria ser proibido de escrever qualquer coisa. Nunca chego a lugar algum, e quando chego, não interessa – o que pode ser bom. Não chegar onde se espera pode ser, por fim, uma boa idéia. Como, por exemplo, na eleição de mil e uma figuras geniais que proporcionam ao fiel a mais completa versão dos fatos ou, se tanto, uma versão do algo mais, do je ne sais quoi mais abrangente e, quando elege as razões críticas, quando tece acusações ao que não lhe serve, queima a mesma borracha que o acusado veio queimar. Dá para afirmar que a qualidade do que se diz é medida pela qualidade da acusação que se produz. É então que chego ao assunto sobre o qual é melhor calar. E escrevo sobre política. E mais, o universo de suas demandas.
E então vejo que estamos acostumados a pedir o que queremos. Pedimos como num oratório, mas o fazemos a pessoas que andam de carro, comem comida e estão afastados de nós a meia dúzia de paredes e duas dúzias de seguranças. Tratamos impostos como oferendas e pedimos que o mesmo jogo, o do retorno providencial seja cumprido e, neste ínterim, me pergunto: e se anularmos o atravessador, especialmente quando for conveniente?
Não há dúvida de que, não importando o gestor do Estado, a manutenção e aprimoramento da educação pública não deixarão de ser mero instrumento de alegação de apoio. Há muito tempo que o tempo e o espaço da conversa, da leitura dedicada e da atenção aos pormenores deixaram de ter importância no espaço público, vindo a ser praticados somente em reuniões mais ou menos secretas e por amadores. Tampouco é um fato escandaloso que seja assim, pois fazê-lo é verdadeiramente a prática da exceção. As instituições políticas não suportam esse tipo de atividade por muito tempo. Não há razão para susto quando vemos que o que ouvimos em uma campanha eleitoral, especialmente no que diz respeito à política salarial de professores, vem a ser descumprido. É função da campanha eleitoral mentir, especialmente para os grupos sociais mais frágeis e com menor pode de mobilização e impacto. Todavia, se a raiva me tinge o rosto, ao mesmo tempo é difícil dar as mãos com os meramente descontentes.
Lembro muito bem quem foram os primeiros colegas que decidiram pela licenciatura. Dos tardios, aqueles que se viram na sinuca de bico da necessidade de uma profissão em um mundo que detesta o exercício das humanidades – mundo talvez seja algo grave, mas certamente serve quando a escala é “país”; o resto é excesso hermenêutico -, ou seja, os que precisavam de emprego após a formatura, entendo e apóio o fluxo. Mas vejo igualmente o conluio de sanguessugas que, não suficiente terem aderido à preguiça que empola o pensamento humanístico desde a graduação, adentram no universo escolar com a única e exclusiva orientação de seguir carreira. Desisti imediatamente do magistério quando percebi que todos os meus colegas de graduação, aqueles que se dedicavam ao estorvo da vida de estudos e pesquisa mais aguerrida, se transformaram em professores e, em pouquíssimo tempo, administradores escolares. Tanto públicos quanto particulares especializaram-se em promover a miséria humana. Joguei a toalha, desisti sem sequer começar.
De repente vejo que tenho que assumir uma postura estranha, a mesma que me obrigaram a tomar de quando das últimas eleições: Serra ou Dilma? Na verdade, Serra ou Lula. Nunca considerei válida a escolha. Por um lado, ouvia a insânia da acusação do analfabetismo de Lula como razões para desmandos, muitas das vezes repetidos no fosso do governo de FHC, esquecendo que uma vez elevado a governo a alternativa é entre “medíocre” e “catastrófico”. Por outro lado, a acusação da cruzada conservadora e reacionária por via do governo Serra, o mesmo Serra que, tal qual FHC, era acusado de comunismo por toda uma ala igualmente descontente. É neste telefone-sem-fio que é a acusação pública que eu prefiro jogar a toalha e dizer: o que dispunha nas eleições não era de escolha, mas de resignação.
Da forma mais perversa que posso conceber, começamos a digerir algo que nos obrigaram a engolir. A idéia de que a atividade democrática opera por via do voto. Votar, ok. Sufrágio universal, aceito. A perversidade não está aí. O perverso está em transformar no necessário em suficiente. Se o sufrágio universal é condição necessária para o desenvolvimento de uma certa noção de democracia – diria noção incerta de democracia, mas seria acusado de obscurantismo; mais uma vez -, ao mesmo tempo está longe de ser um fator suficiente. E este é o ponto. Quando a dimensão da alternativa política se resume em quem eu posso votar, então fica mais visível dizer absurdos como “A CULPA É DO SISTEMA”. À Luhmann, diria que sofremos de legitimação pelo procedimento. Assim como é inaceitável ter passado pela última eleição como um eleitor satisfeito, e não como cidadão pleno que vê como ação legítima recusar os candidatos que os partidos eleitorais fornecem em suas listas, é inaceitável entender que no braço de ferro entre professores e governo, eu devo torcer de forma explícita por um dos lados. “Mas aí, você enfraquece o movimento.” Qual movimento? Não há movimento. Há queixa protocolada.
Movimento seria um processo de demissão em massa. Seria a abertura de escolas comunitárias que, por oferecer educação gratuita lutariam por isenção fiscal parcial para a lista de colaboradores. Movimento seria recusar o tempo estrutural do Estado com vistas em um tempo relativo à vida de quem a vive, estabelecendo diretrizes imediatas à prática pedagógica. Movimento seria tomar as rédeas dos poderes que temos e reorganizar as coisas com coragem suficiente para mudar de jogo, assumindo o risco de que podemos – ou de que será possível – perder e, talvez, fazer o que for contando com isto, a parte maldita, a perda.
Assim posto, o que posso dizer é: até lá.