O desfecho que Koselleck dá para o seu Crítica e Crise abre uma discussão que é tão óbvia quanto pouco
explorada; tão fecunda quanto de difícil articulação. Entendendo que sua
história conceitual das utopias se interrompe na crítica iluminista ao Ancien
Régime, a interrupção define uma marca cronológica que vai além de uma questão
editorial de número máximo de palavras, quantidade de laudas, etc. Ao discutir
o tipo de problema que emerge a partir de algo como a obra de Jean-Jacques Rousseau
– obra citada em quase todos os manuais de civilidade publicados após a
Revolução Francesa; assim, não os philosophes
não eram tão lidos quanto se imaginava, dizem acertadamente Darnton , Furet e
Chartier, mas eram lidos o suficiente – e a nova voga da filosofia moral, o que
emerge é uma mudança de panorama da arte política e do destino da ação feita em
público. Se o esforço do Estado Absolutista fora o de privar o espaço público
da política restringindo a mesma ao ambiente privado, duas consequências são
importantes, ao menos aqui e agora. A primeira é que todo o conteúdo da
discussão política é transferido para o plano da intimidade cuja forma coletiva
é o da associação livre, abrindo margem para que a vida religiosa possa ser
reduzida a esta mesma dimensão uma vez que as ordens religiosas fazem parte do
panorama da ação civil do período – na verdade, mais do que isso, é a
escatologia que oferece a gramática do direito negativo e fundamenta o poder
temporal da Coroa fazendo com que seja o centro discursivo da compreensão
daquilo que é politicamente relevante. No final das contas, o estatuto da
laicidade de 1904 parece ser um recurso ulterior deste processo. Uma segunda
consequência diz respeito às responsabilidades da ação política, que passam a
ser exclusivas do Estado, para bem ou para mal.
Desnecessário dizer que a Revolução é um movimento que identifica a
Coroa e os poderes constituintes a partir da responsabilidade do ocaso das finanças
, da fome e da miséria instalados na rotina francesa na passagem entre os
reinados de Louis XV para o de Louis XVI. O que se dá então, especialmente após
o momento da queda da Bastille é uma ação de despejo movido contra a ordem
estatal, o que produz não somente um esvaziamento do espaço público, mas uma
movimentação acelerada no sentido de recompor os termos e peças a partir desta
novidade. E nisso, são diversas as instâncias e os efeitos produzidos pela
abertura forçada. Dentre elas, em reação à miséria denunciada em panfletos e
tratados os mais diversos, entra em pauta a organização social do trabalho com
vistas não somente na erradicação da miséria como na produção de bem-estar, o
que aos poucos se constitui em parte daquilo que veio a ser o idioma comum do
socialismo francês pós-revolucionário. O caso é que a composição da noção de
bem-estar social, para além de uma idéia meramente utópica participa do cenário
em que noções como indústria e progresso tem não somente parte, mas servem
também como elemento de realidade da temporalização que está em discussão. E é
neste terreno, progressivo e industrializado que a revisão da escatologia
católica entra em cena com vistas em, antes de mais nada, exclui-la da ordem
pública. Resta saber o que indústria e progresso tem a ver com a reforma da
escatologia, o que tem a ver com o Céu e o Inferno.
Talvez esta
pergunta ainda não seja boa, e não sei se será. Há, no entanto, outras questões
que podem ser feitas para que seja possível voltarmos ao problema da escatologia
e da lei de outra forma. Por acaso, e isso merece atenção, como é o inferno?
Uma vez que é ele o destino da alma que não se arrepende e não acolhe em si o
Amor, cabe à inteligência cristã definir da melhor forma possível aquilo que se
impõe como castigo às almas pecadoras, reiterando do díptico crime e castigo
como forma de compreensão da justiça – forma essa, vale repetir, que está sob
sursis. Allan Kardec tem publicado no ano de sua morte o livro Le Ciel et l’Enfer no qual recusa o
esforço de simplesmente extinguir o inferno fazendo menção direta ao mundo dos
mortos como o faz Jean Reynaud, a quem coube também o esforço de descrever o
que ele entendia ser a religião bretã antes de redigir seu adágio sobre a ordem
cósmica. Kardec põe em questão a justiça
divina a partir dos termos advindos da revelação católica na qual o céu e o
inferno são o final do caminho que leva à salvação e da danação. É a descrição
do inferno que lhe interessa, ainda que não em seu conteúdo positivo.
O livro que
se abre com uma discussão sobre a validade do argumento moral como uma tensão
entre a atividade religiosa e a atividade científica privilegiando a
investigação das leis que ordenam o universo visa investigar os domínios nos
quais a vida humana é posta em julgamento segundo sua atividade terreal. O que
Kardec ambiciona, à semelhança de Reuynaud, é apresentar o descompasso entre a
investigação das ciências experimentais com relação às doutrinas religiosas,
com ênfase especial no que propõe a teologia católica. Assim, a doutrina
religiosa tem valor na medida em que acompanha o progresso da inteligência cujo
reduto está nas investigações da natureza das coisas, suas leis e a
implementação no melhoramento da espécie. A religião
como tal deve ser uma obra aberta às descobertas que a ciência produz, não
somente respeitando mas prestando serviço às leis do progresso. Disso implica
uma forma particular de relativismo historicista no que diz respeito à história
da moral e do direito. Ainda que introduzida por via da revelação, cujo evento
é o advento messiânico de Moisés e de Jesus Cristo, a mesma revelação é, via de
regra, incompleta uma vez que não produz, para além da perfeição do
comportamento moral, uma forma clara e distinta de conduzir a humanidade na
trilha do aperfeiçoamento. A tarefa que o espiritismo se impõe é a de preencher
essa lacuna e introduzir novas diretrizes a partir da tensão que a mesma
dialética entre ciência e religião produz.
Partindo de
um comparativismo tão ligeiro quanto questionável quanto à derivação do inferno
cristão daquilo que é o inferno pagão aonde figuram um sofrimento inimaginável
e eterno em que o fogo se mostra como agente maior da dor, o passo seguinte
está e sugerir algo verdadeiramente mais sutil com relação ao inferno, ambiente
a ser extinto da escatologia e, por esta mesma via, do direito. Assim, temos em
mãos um trecho do livro de Auguste Callet sobre o inferno que serve de base
bibliográfica para Kardec. Um determinado trecho do mesmo, que descreve a
relação entre os demônios o inferno causa estranhamento particular no autor de Le
Ciel et l’Enfer.
“Aucun
démon e se rebute et ne se rebutera jamais de son affreuse tâche ; ils
sont tous, sous ce rapport, bien disciplinés, et fidèles à exécuter les ordres qu’ils ont reçus ; sans
cela, que deviendrait l’enfer ? Les patients se reposeraient si les
bourreaux venaient à se quereller ou à se lasser. Mais pont de repos pour les
uns, point de querelles entre les autres ; quelque méchants qu’ils soient,
et quelque innombrables qu’il soient, les démons s’entendent d’un bout à
l’autre de l’abîme, et jamais on ne vit sur la terre de nations plus dociles à
leurs princes, d’armées plus obéissantes à leurs chefs, de communautés
monastiques plus humblement soumises à leurs supérieurs (1) »//Nota :
« Ces mêmes démons, rebelles à Dieu pour le bien, sont d’une docilité
exemplaire pour faire le mal ; aucun d’eux ne recule ni ne se ralentit
pendant l’éternité. Quelle étrange métamorphose s’est opérée en eux, qui
avaient été créés purs et parfaits comme les anges !//N’est-il pas bien
singulier de leur voir donner l’exemple de la parfaite entente, de l’harmonie,
de la concorde inaltérable, alors que les hommes ne savent pas vivre en paix et
s’entre – déchirent sur la terre ? En voyant le luxe des châtiments
réservés aux damnés, et en comparant leur situation avec celle des démons, on
se demande quels sont les plus à plaindre : des bourreaux ou des victimes. »(1869 :58)
Eu poderia
declarar surpresa com esta passagem, na
medida em que, recentemente, Giorgio Agamben faz a mesma ressalva com relação à
ordem do inferno, à precisão burocrática com que o mesmo opera e em como, a
partir de um determinado momento da cristandade é o diabo quem é descrito com
maior rigor, desde Sto. Tomás de Aquino, como a figura da eficiência
governamental no mundo. É esta mesma noção de ordem na qual o inferno opera é
que causa estranhamento e um certo desafio no ato de justificar, isto é, como
compreender e responder ao desafio de que o mal na terra opera como o Castigo,
correspondendo tão pronta e cuidadosamente aos desígnios da providência? Porque
assim, o diabo não seria, não poderia ser somente o manipulador com fins de
aquisição de almas, mas seria ele mesmo uma peça do governo do mundo cumprindo
seu papel na ordem cósmica como, segundo Raïssa Maritain define, o mais baixo
da mais alta hierarquia lidando imediatamente com os mais altos da mais baixa
hierarquia.