quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Notas do subterrâneo: vôo cego


[NATHAN, Michel. Le ciel des fouriéristes: habitants des étoiles et réincarnations de l’âme. Presses Universitaires de Lyon. Lyon. 1981.

NOTA: O caso dos Vespertillos. Seres lunares vistos segundo relato publicado por um chefe de expedição inglesa ao Cabo da Boa Esperança e que causou alvoroço, além de diversas acusações como as que censuraram os astrônomos do observatório de Paris por não os terem descoberto antes. A crise de credibilidade com relação aos primeiros observadores se desdobra na crise de credibilidade dos primeiros relatos da parte dos mesmos observadores que, num segundo momento, contestam a existência dos Vespertillos, cuja figura é tratada como mistificação. Ainda que a existência de vida na Luz tenha sido descartada a partir de novas investigações, o conde Fœlix em seu livro Astronomie des dames [1858] discute a dificuldade de fazer compreender que a novidade era falsa. Havia por fim quem persistisse em fazer menção aos Vespertillos como se de fato habitassem a lua (Nathan, op.cit.:73-74).

            O caso dos Vespertillos, e os termos a partir dos quais o conde Fœlix tece suas considerações são importantes a esta altura porque desenham com alguma clareza o dilema entre o fato que é de fato, e os fatos que são reconhecidos como crença e mistificação, um e outro vizinhos semânticos muito próximos. A experiência mística, se posso reconstituir de memória diz respeito a uma relação direta com o sagrado em que o caráter de símbolo (Turner; Langer; Black), ou de orientação (Eliade) se impõe a um sujeito, ou a um coletivo cuja irradiação se faz impossível de comunicação mediatizada, isto é, é possível comunicar que algo tenha ocorrido sem que os termos de comunicação permitam repetir ou estabelecer a repetição do evento que é, de qualquer forma, autônomo. A mistificação de um fato, entendida segundo este tipo de acusação diz respeito à dificuldade de um determinado agente em enunciar um evento de forma que, ou seja possível reproduzir o evento segundo suas variantes experimentais, ou que seja possível de outra forma visitar o evento in natura. De outra forma, diz respeito aos existenciais não passíveis de transmissão por via de um mediador. Não à toa, não são somente as instituições científicas que controlam sobremaneira a experiência mística, dado ser esta uma das especialidades da igreja católica que é, para todos os efeitos, também fortemente dependente dela.
            Uma vez compreendido que o caso dos Vespertillos evoca este limite da linguagem como tal, ela evoca também uma determinada economia de objetos, isto é, um conjunto de afirmações, técnicas e eventos que são passivos de apreciação segundo aquilo que se apresenta como uma economia do problema. A crença, isto é, o crédito opera na chave do improvável, ou daquilo que, não sendo  reificado, não participa da economia geral tendo sua participação apenas sugerida, não sendo constituinte da ordem das trocas entre entes de existência atestada. Perguntar se alguém acredita ou não acredita, ou lamentar a insistência em crer é, por fim reiterar as interdições deste tipo. Assim, reduzida à crença o que a noção de história evangélica oferece como movimento contrário às acusações ateias de certos agentes científicos, ressaltando certos evolucionistas em voga desde Thomas Huxley, é reduzi-los – como o faz parte significativa da filosofia da ciência, vale notar – ao estatuto da crença que não somente os desautorizara outrora, mas como o segue fazendo. Esse tipo de reação recebe, via de regra, o nome de “abraço do afogado”.

          O caso é que Vespertillos são seres alados e que, de uma forma geral correspondem aos mamíferos voadores que em geral conhecemos como morcegos. É assim, ao menos segundo uma determinada taxinomia, porque há também a contra-referência angélica da qual não somente não podemos nos livrar, como oferece uma chave de leitura importante, que remonta à ciência dos anjos e o tipo de comunicação direta sugerida por Swedenborg, apelidado por alguns como “turista do além”. A descrição dos seres lunares como dotados de asas e, ao mesmo tempo, como similares parciais à espécie humana oferecem margem para investigações mais detidas, ainda que propriamente eivadas de uma certa ironia pelo ajuste plástico-taxinômico que a descoberta científica oferece. O caso lunar segue sendo, contudo, algo mais volumoso que o problema da identificação dos Vespertillos, o que oferece por sua vez uma forma de distinguir os fourieristas de fato de outra sorte de amadores. Ao menos é  que nos promete Michel Nathan no início do capítulo três, o mesmo capítulo que oferece o seguinte levantamento relativo aos anos 1830 franceses:
            “Il parut en France, tant à Paris qu’e province, trois sortes d’opuscules : des brochures d’une quinzaine de pages évoquaient rapidement les paysages lunaires, leur faune et leur flore, puis leurs étranges habitants tandis que d’autres brochures donnaient en 150 pages environs des détails techniques sur les conditions de l’observation qui venaient s’ajouter aux détails pittoresques. D’autres brochures enfin se perdaient en variations sur les coutumes Sélénites.
            Tous ces ouvrages se présentent comme des traductions et commencent par décrire plus ou moins longuement le fameux télescope. Puis viennent les sites pittoresques, les cavernes, les précipices, les améthystes énormes, les amphithéâtres de rubis, les cascades d’argent, les montagnes couronnées d’or. Parmi une végétation luxuriante vivent des animaux fabuleux : moutons, bisons qui portent au-dessus des yeux une visière de chair pour se protéger du soleil, licornes aux allures de chèvres facétieuses, castors de génie. Les créatures les plus intéressantes sont évidemment les Sélénites. Les premières brochures ne parlent que des Vespertillos, hommes chauve-souris, qui s’ébattent tranquillement. Mais les brochures un peu plus tardives instaurent une véritable civilisation lunaire fondée sur l’esclavage et une religion cruelle. Sont ainsi décrits dans les éditions de 1836 la physiologie des Sélénites maîtres de Vespertillos, leurs habitations, leur art de la guerre, leurs cérémonies nuptiales et l’hommage qu’ils rendent à leur Dieu. » (Nathan, op.cit. :74-75)
            O nome de John Herschel como o principal divulgador destas descobertas, tendo sido ele mesmo um dos observadores dos fenômenos lunares, serve de guia para este tipo de investigação. O mesmo d’Herschel é repelido por figuras como Jean Reynaud em um artigo de 1836 do Magasin pittoresque. É de Reynaud a acusação de mistificação, em primeiro lugar. Arago fizera o mesmo em uma intervenção da Académie des Sciences cuja apreciação geral se encontra no Journal de Débats no número de 19 de novembro. Consideram, Reynaud e Aragon, um absurdo a descrição oferecida por Herschel, a de que a escravização de uma raça por outra, dos Vespertillos por Sélénitas, simula um espelho ruim daquilo que porventura poderia se encontrar na terra. A figuração da tirania em solo lunar reflete, por outro lado, uma variação peculiar de orientalismo – naquele em que, na perda de referenciais espaciais produzidos pela vertigem do espaço infinito, o oriente aponta para cima – ou A Lua vem da Ásia.

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