Franz Boas como peça de museu. |
Confesso que sofro de um certo mal-estar com a sociologia
francesa. Assim como todas as notas relativas à reforma da humanidade com a
finalidade de seu melhoramento contínuo, o desconforto segue sendo aquele que
testemunha a delicada trama entre história natural, história da consciência e
história da civilização. Não saber onde termina uma e aonde começa a outra, é
aonde resido incomodado. Não é um problema pouco relevante e compreender o
embaraço remete, de outra forma ao tipo de dilema que culmina na oposição
criada entre valor e organização social (ou divisão social do trabalho) que
reproduz em outra escala, numa escala global, o mesmo tipo de ruptura que João
Calvino impõe na discussão sobre a simbologia na eucaristia. Até porque é desta
divisão, quero crer, que muito do que se oferece como modernidade, ou
constituição do moderno deriva, participando da composição que aparta as
esferas: religiosa (aonde estabelecem residência o símbolo, o valor e a
cultura; como a cultura religiosa), econômica (aonde residem o governo, a
política e a economia ela mesma) e estética (aonde o rebotalho da experiência
vivida encontra seu veículo expressivo sendo desprovido de relevância e conteúdo
na organização da cultura, salvo se agenciado pela administração da mesma na
forma de pastas e ministérios, secretarias e financiamentos). Obviamente que
este é um esquema, uma caricatura, um fantoche.
O caso é que
o enquadramento para o qual atento estabelece não somente o apartamento entre
esferas da vida – componente hegeliano que reproduzo desde a obra de Louis
Dumont – mas uma ordem hierárquica que por se exprimir por via da economia
política indica sua própria fonte, o da economia como fundamento das demais
expressões da vida. Não é desprovido de interesse o fato de que a Revolução
Francesa seja, antes de mais nada o momento histórico em que esta insurgência
se dá fazendo proliferar discursos sobre a função de cada um na organização
social da economia nacional, de onde brota o ressentimento com a ordem
eclesiástica e com parte da nobreza. As distinções devem participar dos
benefícios produzidos, incluindo a religião que é um termo que, ora e vez
aparece como termo dispensável ainda que seja ela, em sua expressão igualmente
econômica quem tenha instituído e codificado o controle da experiência e da
imediaticidade como atestam os trabalhos de Keith Thomas, Ernst Troeltsch,
Michel de Certeau, Paolo Prodi e Giorgio Agamben.
É exatamente
na formação de quadros funcionais da ordem estatística da experiência – minha
forma de ser grandiloquente – que lemos em Émile Durkheim, por exemplo, que o
que as sociedades fazem quando estão distraídas de si-mesmas não é outra coisa
senão organizar a sociedade. E que, independentemente do que estejam fazendo,
talvez uma sociedade organizada em papéis em funções, ainda que distraídas
daquilo que lhes é mais sociologicamente característico, seguem no mesmo rumo,
o do aperfeiçoamento das faculdades, da diferenciação evolutiva, do alinhamento
entre racionalização das relações com o desenvolvimento de instituições que
são, aos poucos, cada vez menos festivas chegando ao cúmulo de enviar convites
para uma festa-BIO. Mesmo a festa tem a função catártica, um ladrão de caixa-d’água,
uma forma de terapêutica sazonal à semelhança dos movimentos peristálticos em
que se dejeta tudo o que não for mais possível manter. Sendo esta a palheta,
sendo este o pano de fundo em que a definição de como as coisas são não se
separam daquilo que algo deveria ser; de como é impossível discriminar, ao ler
sobre a organização social Dogon aquilo que ela é daquilo que ela deveria ser,
pois desde então estão divididos em papéis sociais funcionais que apontam o que fazem de verdade enquanto pensam fazer coisas como línguas secretas e deuses que residem na água. Ainda que o subterrâneo não fosse seu gesto preferido, há muito de Napoleão Bonaparte no exercício sociológico republicano. Por isso entendo, cada vez mais e melhor, o gesto silencioso de Franz Boas quando, num seminário sobre o futuro
da teoria antropológica ao ter concedida a palavra, calou-se, levantou-se e
saiu de cena.