1-
Não há
roteiro. A história toda fora um arroubo dramático para reduzir o plano e o
caminho a uma sequência de ações. Poderia colocar tudo na conta do bardo inglês
ou dos bastardos do século de ouro espanhol. A vida é sonho e o sonho se sonha
nos palcos. A vida é regida por marcas delicadas sobre as quais é necessário
saber preencher com som e fúria. Com isso não digo que o movimento seja, ou
precise se dar ao acaso. Leis não respeitam este panorama, e não desenham alguém
como centro necessário de algo, e nisso reside a beleza e o perigo dos modelos,
das constantes e das Constituições. Põem e depõem, ainda que sempre a um custo
muito alto, ou mediante formas aberrantes de sacrifício em geral
auto-consciente. E é neste momento que eu gostaria de exemplificar tudo com
estudos e anotações sobre Poincaré, Ampère, Leibniz ou Newton. Mas eu não sei
voar.
Há duas
semanas que tudo o que sei fazer é caminhar. Saio pela porta pesada do 53, Rue
du Moulin Vert e decido, não somente se à direita ou à esquerda. Decido aos
poucos quais formas de tout à droit
comporão o pequeno mapa da cidade que disponho, ou que sei reconhecer em tempo
real. É pouca coisa, mas para deduzir um modelo formal não é necessário um
conteúdo de experiência fartíssimo. É preciso entender poucas coisas, as que
são indispensáveis. É como a vida, é como eu posso evocar algo como cultura;
modos de usar, talvez. Assim, Paris permite que a distância entre dois pontos, mesmo que por
uma diferença pequena de grau, seja muito perto ou muito longe,
ao mesmo tempo, ainda que pegue de alguma forma uma reta. Tudo depende, como já
disse, a forma de tout à droit que
você desenha e escolhe - porque, e aí está a marca, só se pode ir à tout droit. Basta imaginar, por exemplo, dois pontos de onde se
espraiam radiais; 10, 20 cortando em fatias um desenho circular fechado em seus 360 graus, compondo em sua extensão uma
malha de linhas cujos cruzamentos que são interrompidos por construções
estratégicas, como um presídio, uma escola militar, um cemitério ou um complexo hospitalar. As grandes linhas retas se separam em caminhos alternativos, ângulos de 10º para pontos que, no começo da divergência radial estavam a 30
metros de distância e, por causa da interrupção feita por um hospital do
tamanho de Cochin estarão logo mais a 500, 700 metros de distância, se tão
pouco.
2-
Quero me
comportar com mais cautela exatamente como deveria agir um ávido comprador de livros. Estou em meio a
uma mini-Meca de bibliófilos, se é que bibliófilos preferem uma Meca a um mezanino que desaparece no dia seguinte. Na verdade, cheguei à fonte de muitos delírios secretos e ressequidos de um tempo que insisto em abandonar e que, ainda assim volta com a língua de fora e ares de abanar a cauda. Meu caso fica um pouco mais grave devido à força
que a publicação da arte de ser intelectual francesa exerceu em minha vida que teve sua gênese na francofilia
que meus pais nutriram no percurso de minha infância, e no final da deles. Recebi a mesma francofilia traduzida em revistas automobilística
impressas em Paris e de uma mãe franco-falante orgulhosa do feito que traduzia em alta voz os manuais de instrução de duas ou três caixas de Lego que transformaram meu irmão num futuro engenheiro brilhante, o mesmo engenheiro frustrado pelas carreiras nas letras clássicas, magistério e na vida de polímata esportivo.
Mais adiante, vim a me tornar antropólogo num país marcado profundamente por uma antropologia completamente debitária da herança cultural francesa ou, melhor, de uma certa aliança francesa. Lévi-Strauss, Paul Ricoeur, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Pierre Clastres (surpreendentemente, o primeiro sobre quem ouvi falar) fazem parte de um panteão de leituras graves que fiz ainda aos 18 anos, em grande parte impulsionadas pela companhia de Celso Azzan Jr. e Mark Julian Cass. Ambos professores de primeira hora, o segundo o que me ofereceu minha primeira leitura de The Rebel, ou L'homme revolté, livro que insisto em prometer retornar sem qualquer efeito prático. Mas foi com a leitura de O estrangeiro que recuperei o fôlego literário que eu havia abandonado quando ainda era moleque e leitor das investigações severíssimas conduzidas por Sherlock Holmes. Camus foi um forte calor nas têmporas, sua dilatação mesmo. Mas um só Camus não faz Panteão e claramente fugi do tema, ainda que não tivesse algum.
Mais adiante, vim a me tornar antropólogo num país marcado profundamente por uma antropologia completamente debitária da herança cultural francesa ou, melhor, de uma certa aliança francesa. Lévi-Strauss, Paul Ricoeur, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Pierre Clastres (surpreendentemente, o primeiro sobre quem ouvi falar) fazem parte de um panteão de leituras graves que fiz ainda aos 18 anos, em grande parte impulsionadas pela companhia de Celso Azzan Jr. e Mark Julian Cass. Ambos professores de primeira hora, o segundo o que me ofereceu minha primeira leitura de The Rebel, ou L'homme revolté, livro que insisto em prometer retornar sem qualquer efeito prático. Mas foi com a leitura de O estrangeiro que recuperei o fôlego literário que eu havia abandonado quando ainda era moleque e leitor das investigações severíssimas conduzidas por Sherlock Holmes. Camus foi um forte calor nas têmporas, sua dilatação mesmo. Mas um só Camus não faz Panteão e claramente fugi do tema, ainda que não tivesse algum.
A marca
franco-amiga seguiu potente porque, pouco tempo depois vim a me tornar
livreiro naquela que, até então era somente a loja que mais sonhava em
conhecer, livraria que já se fazia presente em boa parte dos livros que eu
tinha. O sebo que existia na cidade de São Carlos, o casarão demolido tão
claramente quanto o desejo de estudar na França, tinha fornecimento da Livraria
Berinjela. Por causa de uma teimosia forte que me degenera os rins, fui parar
na mesmo Rio de Janeiro que preenchia minha estantes, que fornecia livros ao outrora grandioso Outros Contos. A carne do esqueleto de
meus estudos viria a ficar obesa, como de fato se deu. Toda a gordura
proveniente do acesso fácil ao tempero literário foi afetada pela predileção
local pelo lúdico, pelo jogo, e pelas regras.
Convém,
obviamente definir o que eu chamo de "predileção local". Jogos de todas as
formas, de todos os lugares. O jogo de cartas em Da mão para a boca, de Paul Auster; as contratações sempre adiadas
para o Botafogo; as apostas feitas nas campanhas vice-gloriosas do Fluminense
na Libertadores da América; o apogeu e glória de Roger Federer; OULIPO. É este o tipo de predileção local que culminou na publicação de uma revista de poesia,
da qual nunca participei ou li, chamada Modo
de Usar, alusão ao romance de Georges Perec sobre a vida pelo ponto de vista do método, pelas regras do jogo. É este mesmo Perec o protagonista da cena
que, até onde entendo das coisas, marca de forma indelével Paris não tem fim de Enrique Vila-Matas.
Narrador
abismado. Caminha por um café movido à Georges Perec. Chega muito perto do
mesmo, como que para atestar sua existência em carne e osso. Uma polegada de
distância, se tanto. A reposta vem à forma de Liceu:
“Jovem, o mundo é
grande”.
Afaste-se,
narrador.