segunda-feira, 6 de junho de 2011

Via de mão única

"Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia em forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante."









retirado de "A Noite dos Proletários - arquivo do sonho operário", de Jacques Ranciére, no capítulo em que disserta sobre a descoberta da leitura por quem não deveria, ou não poderia, por via de embrulhos de jornais (Goscinny & Uderzo escreveram que os peixeiros foram os primeiros advinhos ao lerem, não nas tripas, mas nas embalagens de jornal, as novas do cosmos) ou maiêuticas de mão única.

Com a mãe.





Ranciére recupera histórias de mães que não sabem ler e que, ainda assim, ensinam seus filhos a dar seus primeiros passos na República - ensinamentos da mãe claudicante. Proposta de um esforço fora do sério, e que sabe, quando sabe evadir, promove uma ou duas mil pequenas reviravoltas na vida de alguém.





Rompido o cordão umbilical do tipo romance, encaixado em versos do bom e velho Miguel Torga, o mesmo narra já em Coimbra, em 3 de stembro de 1941, um determinado envio. Correio.

"Carta de minha Mãe./quando já nenhum Proust sabe mais enredos,/ a sua letra vem/ a tremer-lhe nos dedos.// - "Filho".../ E o que a seguir se lê/ É de tal pureza e de tal brilho,/ que até da minha escuridão se vê."

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