Ando me dedicando aos trobriandeses. E um bocado. Não aos que, hoje, estariam reclamando sua posição geográfica aliada a alguma forma de identidade social, cultural, ontológica, etológica - ou simplesmente, sua sobrevivência econômica. É uma dedicação trobriandesa àquele que, de alguma forma inventou esse negócio canônico de dizer sobre os outros povos na forma de “juntos somos um” sistematicamente. O sistema, os massim das ilhas trobriand, os que fazem kula, as personagens de Bronislaw Kasper Malinowski, cânone da variação etnográfica do relato. Este sujeito faz, via de regra, um par imperfeito da prosa polonesa com Józef Teodor Nalecz Korzeniowski. Ambos migrados, envoltos na figuração mezzo britânica, mezzo alienígena das formas abruptas do mar, ruminaram um inglês lento e cuidadoso, que trabalha numa crescente própria à inconstância marinha, esta alma selvagem ou, no mínimo, pagã, o que dá no mesmo. Ou quase. Desconfio, porém, que as semelhanças cessem por aí. Afinal, entre marinheiros mercantes e matemáticos há um mar. E não necessariamente o pacífico. Explico.
Ainda que seja incontestavelmente mais conhecido como antropólogo, campo no qual de fato se destacou, Malinowski fora matemático, como os interessados bem sabem, e que num surto de mal-estares fortes, foi internado em hospital e, assim, dedicou-se ao livro infinito de James George Frazer, The Goulden Bough. Foi sua segunda febre, fazendo do mesmo Frazer prefacioador de sua obra maior. A despeito das viagens e territórios inóspitos, da profunda absorção da camaradagem entre viajantes que só tem a relação entre-si – ao menos até o primeiro assassinato, fuga ou ato de espionagem; e nisso, Malinowski é o espião; mas o ponto central é, a despeito de todas as semelhanças entre um e outro polonês, eu nunca sonharia com Korzienowski. Já com Malinowski...
Pois foi em um salão universitário que balbuciava à congresso científico, movimento e pessoas passando. E o sujeito estava lá, o espião da Coroa em plena Melanésia, no meio da sala. Reconheci pelos óculos, os mesmos estampados na capa da edição brasileira de Os argonautas do pacífico ocidental, ainda adornada pela curva oblíqua que sua cabeça fazia, acrescentada somente de restos brancos de cabelo e numerosas rugas e manchas de sol – quando não, quase melanomas. O terno azul marinho não combinava com a minha memória em preto e branco, típica de quem tem a memória mediada por cristais de prata muito velhos. Azul marinho, e uma camisa branca acompanhada por um sorriso franco, fácil e branco à prova do tempo. E, não sei como, nem porquê, veio falar comigo, o brasileiro, sobre sua última descoberta, que estava enveredando para uma nova frente, e que pensava que a etnologia americana era farta, fértil, e que estava muito entusiasmado com O índio no mundo dos brancos de Roberto Cardoso de Oliveira. Sorri feliz porque vi. Era a mesma edição que disponho em minha biblioteca e, como Malinowski, sempre pensei que ali tem algo a mais, a despeito da simplicidade do argumento. Taí o velho polaco que não me deixa mentir. Ali, tem.
Imagino que, se for um leitor atento, terá percebido que isso em nada tem a ver com os dois poloneses, que falta amarrar este pequeno vôo (na verdade um salto). Confesso, então, que Korzeniovski, também conhecido como Conrad, Joseph Conrad, era só um pretexto. Mas, convenhamos. É Joseph Conrad, é um baita pretexto. Ou então Malinowski é seu secret sharer que, a despeito de tudo e da possível semelhança, fugiu da mesma forma que veio: ilegal e nu.