Do Pará à Paris o trajeto é, ainda que em linha reta uma
encruzilhada constante. Obviamente que é uma forma trágica de desenhar algo
muito simples de entender: Paris é uma cidade muito fácil. Com fácil é preciso
que se entenda, é fácil desde que se seja minimamente iniciado em suas artes de
fazer viver. A língua, os hábitos comensais e a distância entre partículas em
trânsito definem um jogo muito preciso e por vezes enfadonho característicos de
um universo que jorrou sobre o planeta a diversidade crônica da physique sociale. Não é preciso saber
francês, bastando mostrar interesse na língua e esforço em pronuncia-la. Não é
preciso saber daquilo que se come desse que se saiba manifestar admiração
discreta. Não é preciso acolher os olhares alheios desde que se fassa soar os
alarmes de merci, pardon, bon jour, bonne journée e
sua versão soir.
É complicado perceber que em meio tudo o que mais poderia
trazer alguma forma de sofrimento é me recolher à dimensão particular da
experiência. Mais difícil ainda é aceitar que
reconhecer o papel de partícula não habilita a ninguém fornecer a forma
do modelo nas bases do comportamento particular. No entanto é na disposição
paralela destes dois mundos que a Paris que testemunho é uma espécie de mundo
bizarro de si-mesma. A admiração subserviente por tudo o que veio a subjugar; o
acolhimento atento por tudo aquilo que despreza; ainda ontem um sujeito
peculiar chamado Laurent me disse, para resumir a ópera que a África hoje, é
Paris. E Paris é África. Isso significa que temos 4 termos de relação que não
se coincidem.
Era nosso terceiro dia na cidade. Minha esposa e eu fomos
fazer o que comunidades fazem quando expatriadas. Reunimo-nos com convivas da
terra natal, pessoas que já conhecemos e que toleramos, amamos ou, na pior das
hipóteses, não odiamos. O ódio pelo irmão é acirrado quando se é estrangeiro,
vale dizer. Fomos até Belleville guiados pela família nuclear de meu orientador
até nos encontrarmos com uma segunda família no Parque de Belleville. Ruas
estreitas alongadas na vertical num gráfico estatístico de altos e baixos
abruptos, Belleville é uma parte alta de Paris. Vê-se tudo. É onde há cartões
postais sucessivos num mero torcer de pescoço. De lá nos dirigimos a
Belleviloise, casa de eventos em que há um por andar. O que não se cobra na
entrada é assaltado num mero chopp.
Circulamos num lounge, aonde Laurent nos encontrou. E então,
um restaurante a rez-de-chaussé. Vinho, dourado assado na brasa, arroz,
molhos balsâmico, vinagrete e de espinafre acompanhados por um bourgogne. Tudo desenhado como uma tarde
descolada e suave em um bairro de trabalhadores parisienses. Parisienses? Por
isso que Paris é África. Paris é a África em geral, aquela que não existe a não
ser que se invente uma série de dispositivos de distanciamento e, mais do que
qualquer outra coisa, um jogo de lentes. Não é que não exista, mas para existir
é preciso muita coisa, especialmente deslocamento de pessoas. Para a África
seja Paris é preciso desalojar a África daquilo que ela nunca foi. E então, um
show de artistas congoleses que desaloja da boca de Laurent um diagnóstico
sobre a França dos trabalhadores, dos bairros operários, que não são franceses
porque são árabes, africanos e até asiáticos, portanto Paris é a África.
Creio que talvez eu tenha me enganado. Talvez a
partir do que me disse Laurent, Paris seja exatamente como a África. Fronteira
desenhada feito um cotovelo, um nódulo, uma indigestão, e não como uma linha no mapa, justamente como faço
no papel o desenho do mapa do estado do Pará, mas que não é, absolutamente Paris.
2 comentários:
Grandes textos, Refrator.
Escreva um livro. Já escreveu um?
Não. E ainda não estou convencido de que eu deveria. Já existem livros demais no mundo. Se bem que o mesmo se dá com os blogs, mas estes ocupam pouquíssimo espaço e não acumulam poeira.
Enfim. Fico feliz que tenha gostado, ainda que para serem grandes estes trabalhos precisam de uma dose cavalar de Biotônico. Você é gentil, mas eles ainda são um tanto quanto infantis. Se o livro for a forma acabada de um texto, e a chancela de que um texto merece ser lido, devo ficar por aqui. Por enquanto me satisfaço com as conversas em caixas de comentário como esta.
Abraço.
Postar um comentário