O exercício é já coisa antiga,
ainda que para dizê-lo eu tenha que pedir permissão aos modernos. É antiga
porque já dura algum tempo, contam-se mais de 3 séculos. Para os antigos, por
sua vez, é coisa nova e marca a data de uma exceção histórica e, no final das
contas estão todos querendo bater o martelo. Não à moda de Nietzsche, mas
encapuzados de perucas de fios brancos e uma toga encharcada pelo odor de
naftalina. Imediatamente apelo aos nomes de Charles de Brosses e de David
Hume – são meus exemplos do excesso de juízo. Isso porque cada um faz demandas
exaltadas com relação àquilo que hoje, depois de um longo processo de diluição
das heresias, há quem venha chamar de alteridade. Como a palavra é cara, e dura tão pouco quanto a remissão à identidade, tenho preferido evita-la. Mas aqui, é
impossível.
Hume
redigiu, dentre tantas coisas, seu Dialogues
on Natural Religion ainda no começo do século XVIII. Quando este opúsculo veio à luz muita água já havia
passado de baixo da ponte, inclusive o rio. Seu Treatise on human nature já havia sido esquartejado em dois
tratados mais leves – sobre o entendimento humano e sobre a moral. Ele mesmo já
havia redigido uma carta em que assinava com um nome falso, na qual veio a
defender sua própria obra, não raramente acusada de herética, ímpia ou outro sinônimo parcial– assinara como cônego anônimo. Ao mesmo tempo a mesma obra soara redentora
para outro grupo, aqueles que acordaram do sono dogmático, como é o caso de
Immanuel Kant. Nos diálogos, encontramos um caso particular de dois pesos, duas
medidas. Este caso nos interessa, porque é um movimento que é característico da
formulação moderna, seja ela relativista ou não. Os ecos são, para todos os
efeitos, bastante frequentes.
Os diálogos
retratam o problema do ensino religioso, seu lugar diante da emergência de uma
diversidade disciplinar que coloca a revelação, a eucaristia e o conteúdo dos
milagres sob severa suspeição. Entendendo que existe uma diferença substantiva
entre o Natural e o Revelado, Philo, Demea e Cleanthes travam neste diálogo uma batalha nada
banal com relação à educação dos mais jovens, assim como com relação àquilo que
deveria ser priorizado: a leitura abstrusa dos símbolos e exegeses de textos
sagrados ou a orientação por via da investigação das leis que regem a vida
natural. Em outras palavras, caberia seguir pela via da exceção que preside a
intervenção divina direta ou singrar pela natureza e sua regularidade mais doce
e previsível? Ainda que o diálogo mostre com clareza qual é a posição de Hume –
aliás muito bem definida no capítulo sobre os milagres em Essay concerning human understanding -, no final do livro ele
prefigura aquilo que chamaremos, nos anos 1990 de terceira via. Ne um, nem
outro para fugir da condenação expressa, a mesma que o fez produzir a farsa de
sua defesa pública por via de uma identidade falsa. O mesmo capítulo dos
milagres no Essay segue por esse
caminho do meio, porque ainda que juízos sobre a intervenção divina merecessem
ser considerados meros erros de analogia da parte de um ente cognicente
qualquer, o episódio longo do jansenismo em Paris sugeria alguns obstáculos
para a exclusão da exceção como terreno relevante. O que marca o percurso de
Hume, ou ao menos o que é mais conveniente para aquilo que quero dizer, é que o
mesmo Hume redige uma série de demandas à cognição a ponto de estar
inaugurando, junto a uma série de outras figuras do Aufklarüng, o que veio a ser batizado como teoria do conhecimento que, à moda das exceções pretendia ser imune
à metafísica.
Contemporâneo,
ainda que francês numa França parcamente existente na dispersão de regiões em
conflito administrativo – para dizer o mínimo -, Charles de Brosses toma a
forma de uma versão materialista do mesmo movimento. É dele o pequeno livro que
estabelece o conceito de fetiche que
veio a se transformar numa festa moderna em que marxistas e cristão puderam
comungar numa orgia láctea, risonha e acusatória com relação à ignorância
alheia. Quero notar que em geral a acusação de fetichismo culmina num teatro
mutualista em que as tentativas de extermínio um do outro se desdobram em uma forma
perversa de retroalimentação, que se repete no retorno persistente da polícia dos erros de analogia. O fetiche é um conceito que serve a este propósito ao apontar para este tipo de erro, que imputa a um objeto qualquer capacidade de agência, o que em
geral também recebe o nome de animismo. A modernidade se transforma na era em que se expande e se acelera o aggiornamento do
pecado da idolatria fazendo com que a exceção seja o legado da contra-acusação
protestante, assim como a eliminação de todo o erro que não seja científico seja
a oferenda da parte do Aufklarüng –
porque a questão não é mais sobre quem está certo, mas sim sobre quem é que
pode errar, ou qual erro se justifica. Seguramente, não os negros africanos.
O Petit reflexion sur les dieux fetiches
de De Brosses faz uma investigação meticulosa nas fontes documentais da
Nigritia, território compreendido em boa parte da faixa centro-oeste da áfrica
subsaariana de onde os documentos de exploradores e viajantes de fins do século
XVII e do século XVII traziam novidades. Dado que De Brosses era filólogo do tipo que
precipitou na França orientalista, e ele mesmo um libertino, não é difícil
imaginar que a crítica à instituição eclesiástica se transformou na condenação
moral, digo, epistemológica da variedade das formas religiosas. Assim, os
cultos aos deuses fetiches, cuja forma materialista se resume a um conjunto de
homens cometendo o equívoco performático de falar com uma pedra, são reunidos à
condenação da ordem eclesiástica e de todos os discursos promovidos em favor de
sua justificação. Invariavelmente, porém, a fonte dos desmandos eclesiásticos e
a transformação da ordem religiosa em Guerras de mesmo nome reside no mesmo
problema, na falta de exercício da inteligência, na instituição dos erros de
analogia. De Brosses produz um protótipo da filosofia da história positivista
em que toda a humanidade parece estar dedicada a resolver os mesmos problemas
e, por isso, tentando responder às mesmas questões de base. Infelizmente,
algumas com pouco sucesso. Mas aqui, não me refiro aos negros africanos
presentes no libelo racionalista de De Brosses, mas sim ao próprio De Brosses
que, eivado da mesma ignorância que condenava discute elementos de um país que
só existiu na cartografia européia. No termos que o próprio De Brosses condena
o fetichismo, seu tratado é resultado da mais simples das imperícias: não sabia
de quem estava falando.
Não é
preciso ser nenhum gênio para perceber que há uma dessimetria neste caso –
digo, mesmo Bruno Latour percebeu haver um problema neste movimento. Quando
Hume faz a acusação contra os milagres, o animismo que vige na esfera do
meramente primitivo é colocado no mesmo pacote da condenação do religioso. E
aquilo que Hume faz por reflexo, De Brosses faz com dedicação monográfica.
Contudo, nesta ordem da acusação mais dedicada à polícia dos erros de analogia percebe-se o caminho que conduz ao mais agressivo modo de vigília dos relatos em história natural e
ciências laboratoriais que serve de modelo de conduta dos nossos dois heróis. Contudo, eles mesmos não tiveram o mesmo cuidado com a
descrição dos diversos povos espalhados num globo terrestre que sofria a
intervenção europeia das navegações, da mercancia e, por fim, da sifilização. A
crítica de todas as formas de análise e dos relatos de observadores que soube
descortinar relatos mais ou menos adequados sobre o gelo ártico, como o fez
Robert Boyle, não se preocupou em questionar
o modo de análise dos viajantes em coisas básicas como: eles sabem que vivem na
Nigritia? Foi preciso esperar que alguém
como De Gérando redigisse um manual da observação dos povos para que a
discussão atingisse um outro tipo de problematização, não vindo a reduzir a
variedade da conduta moral aos erros crassos fazendo da variedade humana um apêndice
da péssima compreensão que Hume e De Brosses tinham da vida religiosa e, no
pacote, toda forma de alteridade. Não que isso fosse um problema porque, como
já disse, a história moderna é a história de quem pode errar, e não a de quem
tem razão.
O caso é que
a variedade moral dos povos continua refém de uma disputa de tipo Antigos e
Modernos segundo os termos postos pelos modernos. E não é difícil entender
isso. Quando cito a reticência de Hume diante o jansenismo e o caso das
convulsões milagrosas na Paris do século XVIII, é porque é a qualidade dos
relatos e a lisura daqueles que atestam a ocorrência de curas milagrosas ao
redor do túmulo de De Paris é que faz com que Hume possa recuar, ou ao menos
desacelerar o avanço da nova epistemologia em mares desde antes navegados. Há
coisas que talvez mereçam uma segunda análise. Nisso incluo os milagres e,
seguramente, os relatos que descrevem a vida moral dos povos mais diversos –
especialmente aqueles que não desenvolveram, muitas vezes por uma escolha
ético-moral, não desenvolver a forma monumental do império.
É de
Marshall Sahlins a afirmação de que a história dos povos americanos não começou
em 1492, com a chegada de Colombo, assim como é de Eduardo Viveiros de Castro a
emenda, mais do que adequada, de que é aí que a história de muitos deles
acabou. A marca de 1492 não indica um ano fatídico somente, mas o começo de um
processo no qual, no decorrer de 5 séculos, o extermínio seguiu com
desenvoltura e graça, para não dizer com a mais deslavada campanha publicitária.
Desde as de colonização sanguinolentas conduzidas à toque de cavalaria nos
Estados Unidos da América e na Argentina do pampa e planalto pré-andino
até a incorporação à nova ordem colonial
que se deu na Nova Espanha, o rumo da história colonial tem notas que são tão
diversas quanto esta diversidade é, como sói ao mundo, cruel. O mundo é vasto e
a fortuna das populações americanas, para me restringir somente à elas, é
profundamente desigual. Do extermínio real e da impossibilidade de se declarar
autóctone sob pena de morrer, até a constituição de linhagens em posse de haciendas e cassinos, uma coisa deve ser
marcada: a vida moderna não lhes deu trégua. Não que tenha dado a alguém, mas
no caso esta é uma festa em que foram obrigados a entrar justamente para serem
acusados de penetras. Afinal de contas, são eles os exemplos fracos daquilo que
a Igreja Católica é o exemplo forte. Erro de analogia, um erro a ser corrigido,
ignorado ou, como na maioria dos casos, apagado.
Algumas
perguntas muito simples poderiam, contudo, ter evitado esse tipo de
interpretação mal-ajambrada de que seria possível reduzir a diversidade dos
povos autóctones ao redor do globo a uma forma pálida de fraca de moral
religiosa fetichista. Para qualquer pessoa que tenha passado 3, 4 dias em
ambiente amazônico – sem mesmo entrar na floresta -, cabe perguntar como é
possível que se possa viver nu e cercado por algo cuja beleza só pode ser
equiparada à quantidade de riscos. E nu, aqui, ainda que com ressalvas de
adorno e notas sobre estojos penianos que fariam qualquer articulista da Folha
de São Paulo ter os sonhos mais selvagens, tem um valor importante no que diz
respeito ao lugar do corpo humano na história natural. Afinal, se há algo que
se repete à exaustão é
justamente a ausência de aparelhos especializados em tarefas na composição da morfologia
humana, como potência muscular, garras, presas, asas, ou mesmo o mais tolo caso
de impermeabilidade da pele ou da capa de gordura que precisou esperar o advento da civilização
americana para se constituir como característica morfológica da espécie.
Recorrendo ao jargão de Georg Simmel, nascemos com péssimos a priori corporais porque são demasiado genéricos nos dando muito poucas soluções prontas. Assim, como é
possível meramente sobreviver em ambientes inóspitos sendo, como determina a média
da opinião moderna cristã ou iluminista, um imbecil que só faz produzir
erros de analogia, ou uma criança? Esta questão que poderia ser lida como um
apelo ao relativismo cultural é, no final das contas, coisa de outra sorte
porque não é de mera sobrevivência que estamos falando. O que marca o juízo
moderno com relação à esses povos em geral sequer dá conta do fato de que, de
alguma forma, eles sobreviveram. O que dizer que, para além da sobrevivência,
estes povos que, entre americanos, africanos, oceânicos e asiáticos – não
esquecendo os exemplares europeus de populações selvagens – pareciam viver
muito bem sem a presença da vida moderna vindo a produzir uma economia e um
sistema de ornamentação da vida bastante independentes de tudo aquilo que as instituições
basilares da vida moderna consideram absolutamente indispensáveis?
Que se
entenda que dar vazão a este tipo de problema abre margem para todo tipo de
especulação, especialmente às de caráter utópico para as quais em artigo de 12
de outubro de 2012, Luiz Felipe Pondé chamou a atenção. Ressalta ele que
atentar para a diversidade da manifestação da vida e reconhece-la como
constituinte evoca, à forma do que ele chama de antropologia de boutique, uma pulsão irritante
para que se mude o mundo à forma das heresias movidas pelo gnosticismo que
tanto estiveram presentes na emergência da consciência revolucionária moderna.
E quando alguém faz apelo para a atenção à diversidade da vida e o cuidado com
ela, a repetição desta mesma acusação chega antes do que a própria atenção à
vida. O peculiar é que parece impossível que se entenda que a atenção à vida
pode simplesmente partir da constatação de que o mundo é grande sem querer
muda-lo, ou pregar essa mudança segundo a exegese revolucionária. Ainda que
seja ambiente para as formas caídas da existência, como pregaria o tipo de
teologia dolorosa que agrada a figura de Pondé – Pascal, Dostoiévski, Cioran, Eliade -, o
mundo segue grande e o repertório de motivações e interesses escapam da
necessidade de conservar ou mudar o mundo no mesmo impulso que crava a
modernidade indecisa entre Antigos e Modernos. Até porque, a relação entre
mortos e vivos é muito mais interessante, incluindo aquela entre quem mata e quem morre e, não menos importante, a de quem deixa morrer. O que pode estar em questão é que a dilemas que evocam a prudência em que é preciso ser prudente e em questões de urgência, para
bom entendedor meia palavra basta.
Mas é
importante ressaltar uma coisa. Pondé não é importante. Nunca foi e nem pode
ser. Ser importante como intelectual de opinião é, para todos os efeitos, a
forma de fazer a inteligência escorrer lentamente incorporando toda forma de
mau odor até chegar ao esgoto que lhe serve de destino. É isso que deveríamos
considerar ao entendermos Pondé segundo Pondé. Não importa porque não há valor
mais corrompido do que ser humano – e estou partindo do pressuposto de que ele
o seja, humano e portanto, corrompido, mas não sei até onde seu ego lhe alçou. O que importa é outra coisa. O
que importa é ver antipatias das mais comenzinhas se projetarem como algo mais
importante que um massacre que reproduz em tempo real aquilo que muita gente imagina que
somente os marxistas do comunismo real poderiam produzir. O que importa é ver
disputas no seio dos corredores da USP serem mais decisivas do que as
coincidências que fazem do texto de Pondé sobre os neo-Guarani Kayowa
incrivelmente convenientes, e falo pasmado, ao modo desenvolvimentista a toque
de caixa do Brasil contemporâneo que não escolhe partido e produz a
aliança de todas as máfias que conheço feitas de forma devidamente contingente e em proporções cuidadosamente regionais, constituindo uma máquina de governo
assustadora. Importa que por fim, haja concordância naquilo que gera uma
aliança difícil de aceitar, que repete numa escala de valores própria da
exceção moderna a ladainha monótona e assassina daqueles que tem o direito de
errar.
ou
É fácil ignorar um problema ao escolher o pior representante do mesmo - especialmente quando este não existe.