quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

UM DIA DEPOIS, COSAC & NAIFY.


O ano era 1978. Não muitas editoras concorriam na produção de acervo bibliográfico das humanidades. Era tempo em que a Civilização Brasileira editava mais de um livro por dia, dizem a lenda e a contabilidade de historiadores do ramo. Ênio Silveira fazia as vezes de aventureiro e capitão concorrendo com o nome de José Olympio. Em São Paulo era a Editora Pedagógica Universitária quem contratava garotos despreparados para traduzir Marcel Mauss e todo tipo de material didático. Em em Minas Gerais, Itatiaia e seus viajantes do Brasil colonial compunham a cena com uma outra série de publicações de tradução suspeita. Não muito longe dali, nem no tempo, nem no espaço, encontrávamos a Zahar Editores, a mesma que anos depois se converteu em Jorge Zahar, editora cujo espólio foi parar, parcialmente nas mãos da LTC – dado importante, porque se trata da transmissão, não de um legado, mas de uma maldição. É neste período que a Zahar cumpre um papel que até hoje é colocado em revista, a de criar uma coleção de antropologia social cuja única rival no período fora uma outra, dirigida por Roberto DaMatta no seio da editora Vozes, de Petrópolis. Esta coleção editou, além da tese de doutorado do próprio DaMatta sobre os apinajés, clássicos como As estruturas elementares do parentesco de Claude Lévi-Strauss, Os Ritos de Passagem de Arnold Van Gennep e O processo ritual de Victor Turner indicando uma lógica de publicação algo mais generosa do que o exercício narcisista. Os livros dispunham de um tema em comum, a saber, a teoria antropológica moderna a respeito da ação ritual.
            Descendo a serra encontramos no catálogo da Zahar uma outra coleção sob direção de Gilberto Velho, recentemente falecido. No seu primeiro catálogo trazia uma série de livros que seguramente foram muito bem-vindos, como História social da criança e da família de Philippe Ariès, Uma teoria da ação coletiva de Howard Becker – amigo de Gilberto Velho e professor visitante no Museu Nacional -, Estigma, de Erving Goffman e Bruxaria, oráculos e magia entre os azande, de Edward Evans-Pritchard, este recentemente re-editado na mesma Zahar não sendo cedido para a LTC. Não devem ter faltado congratulações da comunidade de antropólogos dado o salto na oferta de bibliografia. Na época os cursos de antropologia ofereciam apostilas por falta de material nas bibliotecas e, mais, falta de material vertido para a língua portuguesa. Se a antropologia é hoje uma disciplina pobre, nesse período se tratava de um exercício de sobrevivência abaixo da linha de pobreza. Mas que se desconfie da esmola se generosa demais, ou se dadas repetidas vezes pela mesma fonte. Isto se chama endividamento.
            Afora a publicação de trabalhos de final de cursos ministrados por Gilberto Velho nessa mesma coleção ( nos livros Desvio e divergência e Arte e sociedade), não faltou citar um livro em especial? Livro que pautou parte dos debates da antropologia no país, especialmente nos anos 1990, quando 7 em cada 4 trabalhos de antropologia faziam menção ao conceito de descrição densa? Está ausente da lista que eu fiz o livro A interpretação das culturas, de Clifford Geertz. E sua mera omissão dessa listagem seria uma injustiça com a história da coleção supracitada exatamente no período em que a Zahar vivia seus dias heróicos de desbravamento – pacificação? E que assim sejam, os livros, as publicações e suas listagens. Afinal, sem este elenco devidamente alinhado é difícil escrever a história, senão com justiça, ao menos com justeza.
            Como todos os livros do ramo, em especial os que se prestam ao exercício da coletânea, A interpretação das culturas tem um índice. É nele que contabilizamos 9 capítulos com os quais a Zahar beneficiou a juventude da antropologia papagali. Afinal, a cavalo dado não se olham os dentes. Mas esqueçamos isso. Não se trata aqui de cavalo dado, mas comprado – ainda que comprado, como bem sabemos, diretamente do padrinho. Fossem contados os dentes o candidato a leitor de Clifford Geertz saberia estarem faltando nada mais, nada menos do que 6 capítulos do livro editado pela a editora Basic Books de Nova York, em 1973. Cavalo desdentado é cavalo doente. Eis a lista dos capítulos desaparecidos e, então reencontrados por essa pequena Comissão da Verdade. Capítulos sem os quais se fez um longo debate sobre a obra de Clifford Geertz no Brasil, não me pergunte como:

Capítulo 06: Ritual and social change: a javanese example.
Capítulo 07: “Internal Conversion” in Contemporary Bali.
Capítulo 09: After the Revolution: the fate of nationalism in the New States
Capítulo 10: The integrative Revolution: primordial sentiments and civil politics in the New States.
Capítulo 12: Politics past, politics present: some notes on the uses of anthropology in understanding the New States.
Capítulo 13: The Cerebral Savage: on the work of Claude Lévi-Strauss.

            Com uma lista dessas, é ocioso discutir a quantidade generosa de trapalhadas da tradução, de Fanny Wrobel. E fora ela mesma quem acaba furando o engodo, produzindo um evento ímpar na história da tradução nacional. Isso porque a única forma de descobrir o exercício do estelionato sem cotejar a edição da Zahar com o original é lendo uma passagem simplesmente engraçada, de tão vergonhosa, na página 08 da mesma edição.

            Nos ensaios abaixo, há dois lugares em que essas considerações me parecem relevantes e nos quais fiz, portanto, algumas modificações no que havia escrito originalmente. O primeiro é nos dois ensaios da Parte II, sobre cultura e evolução biológica, onde a datação dos fósseis nos ensaios originais foram definitivamente superadas [sic.]. De uma forma geral, as datas foram situadas mais longe no tempo e, como essa mudança deixa meus argumentos centrais essencialmente intactos, não vejo qualquer prejuízo em introduzir novas estimativas. Não há qualquer sentido em continuar a dizer ao mundo que os arqueólogos estão encontrando fósseis de quatro a cinco milhões de anos. O segundo tem ligação tem ligação com o Capítulo 10, na Parte I*, “A Revolução Integradora”, onde o fluxo – se assim pode ser chamado – da história do novo Estado, uma vez que o artigo foi escrito no início dos anos 1960, torna a leitura de algumas passagens realmente esquisita.

*  Esse capítulo não consta desta coletânea. (N. da. T.)” (Nota da Tradutora).

            Ah!, a infinita ironia! Justamente na passagem em que Geertz informa ao leitor dados que alteram em algum grau o conteúdo e possivelmente o argumento de seus ensaios a postura injustificável da editora é revelada. Incorporaram ao texto publicado a citação de um capítulo que não fora, por fim, publicado. O leitor, contudo, não é informado sobre quantos capítulos, quais capítulos e mesmo qual a razão de uma edição tão radical e, como é evidente, porca. E que digam que isso foi em 1978, que já faz tempo, e então eu desafio o acusador a ir em qualquer Livraria Cultura de forma a investigar qual é o índice do livro então publicado pela LTC, sempre disponível e espelhado nas prateleiras.

(link para a décima terceira reimpressão da primeira edição, de 2008 :
http://identidadesculturas.files.wordpress.com/2011/05/geertz_clifford-_a_interpretac3a7c3a3o_das_culturas.pdf).

            Há quem diga que falar da Zahar deste período, em especial com relação a uma coleção de penetração tão pequena e em tempos de aventura editorial é equivalente a chutar cachorro morto. E que dizer que a LTC publicara o mesmo texto por oportunismo seria redundante. Pessoalmente eu considero a história desta edição o mais flagrante estelionato das publicações em antropologia do país. Especialmente porque alimentava, e ainda alimenta um grupo muito restrito de pessoas cuja profissão compõe um círculo pequeno de relações fortemente hierarquizadas, grupo ao qual pertenço. Ou pertencia, vai saber. Questionar abertamente os rumos deste tipo de publicação implica em geral em desemprego. Mas, fora o aparte, por que reviver uma história como esta? Por que agora?
            Ainda há pouco li Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX, de Jonathan Crary. Editado pela Contraponto, trata-se de um belo trabalho em que o ato de observar é posto em sua história a partir das formas objetivas de apreciação e instrumentalização da própria observação, seja ela científica, seja a partir de orientação. Obviamente que os aparelhos de correção e ampliação dos poderes de visão, assim como os estudos de psicologia da percepção fazem parte do ambiente conceitual do livro e, com eles, a visualização de esquemas, pranchas e objetos apresentados por uma extensa iconografia contabilizando 31 imagens apresentadas no corpo do texto. Não são meramente ilustrações, vale dizer, mas parte do argumento. A editora Contraponto, além de manter as ilustrações no livro, manteve-as no seu devido lugar preservando a emergência da imagem como parte do texto – alterar isso seria o mesmo que em um romance de W. G. Sebald, as imagens viessem num apêndice no fim do texto ou fossem simplesmente eliminados. Lido o livro de Crary pensei com meus botões que, ainda que seus argumentos fossem de um foucaultianismo entusiasmado que me incomoda, seu trabalho como historiador é algo que eu, nem mesmo nascendo de novo, faria. Decidi por bem ler um segundo livro dele que, felizmente fora publicado pela Cosac & Naify também neste ano de 2013. Felizmente?
            Editoras são empresas que vendem coisas. Nem sempre essa coisa funciona bem. Mas a queixa com relação ao produto frequentemente cai em uma fórmula esquizofrênica de comunicação. Quando algo vai mal com um leitor, com um crítico, a defesa se dá em nome da cultura e das letras – tudo feita em nome de um benefício público em que a editora é, obviamente, sua madrinha. Quando algo vai mal no seio de suas atividades internas, ela reconhece seu estatuto de empresa e as decisões são exclusivamente racionais e justificáveis porque são de ordem contábil. Como leitor, gosto de preservar a integridade do papel que me cabe, exatamente porque eu não tenho um setor que me defenda ao discriminar a pessoa física da pessoa jurídica. Leio e compro interessadamente. Leio e compro e, ao comprar sei que estou me aliando a uma empresa. Ao ajuda-la, ofereço algum suprimento de subsídios para que continue a fazer o que faz. Um exemplo. Não compro mais livros da Zahar, empresa que nunca fez retratação pública do caso em questão, e assim não quero que venha a se reproduzir como empresa. Caso precise de seus livros, o farei via sebos, bibliotecas, originais ou cópias irregulares – porque não quero correr o risco de sofrer estelionato de alguém que comprovadamente já o fez sem jamais tê-lo reconhecido. Não compro livros da Marin Claret, Landmark e, mesmo a Boitempo já deveria ter entrado na minha lista. Pela mesma razão. Hoje a Cosac & Naify entra nesta lista.
            Recebi o livro de Crary publicado pela mais moderna e arrojada editora nacional. A mesma editora que nos brindou com livros cujo desenho arrojado nos fez esquecer que estávamos lendo um livro. Um Bartebly que mofa com absoluta rapidez, um A fera na selva  de manejo ruim, um Zazie no metrô  com um papel frágil e uma encadernação de Guerra e Paz desenvolvido por quem seguramente não manuseia livros. Mas tudo isto são decisões editoriais que me fazem não comprar este ou aquele item especificamente. O problema foi que, ao ler o livro de Crary, ao menos as primeiras 100 páginas a situação é mais grave porque a editora me traiu como leitor de seus livros. Mas demorou para que eu me desse conta. No percurso da leitura,  vi-me tecendo analogias com um outro livro de um outro escritor, Martin Jay e seu Songs of Experience. O argumento de Suspensões da percepção, editado a preço alto (69 reais e 90 centavos, com papel inferior ao de outras publicações da mesma coleção) discute temas que tocam passagens da história moderna do conceito de experiência, tema de Martin Jay que, vale notar, não se utiliza de iconografia em seu trabalho. Mas em momento algum fiz conexões com o outro livro de Crary, e não tinha me dado conta da razão. A partir de uma conversa com Rafael Saldanha que fui informado que o livro publicado pela Cosac & Naify não continha a iconografia, que marca tanto o argumento de Crary quanto desenhos orientam a prosa de Valêncio Xavier. Repito. Fora Rafael Saldanha quem me informou da ausência da enorme lista de imagens que compõem o livro original quando quem deveria ter feito isso era a edição brasileira – não há sequer uma nota desastrada como a de Fanny Wrobel em A interpretação das culturas, um momento pândego de honestidade distraída. Nunca consegui traçar a analogia entre os livros do mesmo autor porque não são, obviamente, traduções de mesmo grau. Mas até qual ponto isso é, de fato, decisivo? Vejamos a partir de duas abordagens. Primeiro, quantitativa. Depois, qualitativa.
            Parte do expediente ao qual recorro daqui por diante segue necessariamente algo que Milton Ohata, editor da coleção Cinema, teatro, modernidade sugeriu. Segue abaixo a explicação dada pela editora, aquela que nos foi passada pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor, endereçada a Rafael Saldanha:

Olá, Rafael.

Foi uma decisão editorial: a maior parte das imagens na edição americana eram em preto e branco e baixa resolução, enquanto Crary entra muito nas questões das cores. Acrescentar imagens ao livro encareceria-o ainda mais (nos custos de produção, que inevitavelmente se refletiria no valor final do preço de capa que chegaria ao consumidor). Por fim, em tempos de internet, considerou-se que o leitor poderia procurar as imagens referenciadas no texto.

            Fomos à internet. Fomos aos russos e seus sites que servem ao leitor como mascates providenciais, os mesmos que as editoras grandiosas e cheias de premiações detestam – quase na mesma medida em que desprezam seus leitores. Num destes sites consegui o empréstimo digital de Suspensions of Perception, livro publicado pela MIT (Massachussets Institute of Technology), edição da qual a Cosac, pela pena de sua tradutora Tina Montenegro, verteu a pesquisa de Crary para o português. Com a edição em mãos fiz a contagem de quantas imagens o leitor brasileiro foi privado. É possível que eu tenha errado, mas não creio que por mais do que por 5. No final das contas foram 110 imagens subtraídas sem qualquer aviso ao leitor que, de outra forma jamais saberia que elas já estiveram ali. E por que isso? Porque a remissão às imagens não é episódica ou ilustrativa. Ela é argumentativa. Assim, se a imagem não está lá o leitor não sabe sequer que ela compõe o acervo mobilizado pelo livro. Explico.
            Há momentos em que Crary é bastante didático indicando a imagem por via de citação explícita. Tomo aqui a edição feita pela Contraponto. Frases como tomemos, por exemplo, o seu Cesto com morangos ao discutir a incorporação de dispositivos óticos na pintura de J.-B. Chardin servem de índice. Lá está a pintura Cesto com morangos ocupando espaço no meio do parágrafo que, na mudança da página 66-67 interrompe a leitura forçando o leitor a passar os olhos pelo quadro enquanto lê, fazendo conexão imediata entre legenda e figura. Mas essa correlação não se dá sempre desta forma. No trecho do livro Técnicas do Observador em que Crary discute o impacto da fisiologia na discussão acerca da confiabilidade do aparelho ótico humano – passando por obras como as de Schopenhauer e Goethe -, o desenho de Nicholas-Henri Jacob no Traité complet de l’anatomie de l’homme, de Marc-Jean Bourgery (1839) não é citado no texto. O autor nos apresenta o tipo de exercício feito na observação da observação, no caso, como investigar as córneas  desde um aporte da fisiologia (página 83). Um rosto parcialmente desenhado tem as pálpebras de seu olho direito aberto por pinças e sua cabeça segura por, no total, cinco mãos sugerindo todo um aparelho e uma organização de técnicas e pessoas dando clareza ao argumento de que a investigação do universo fisiológico implica numa organização política. Não há remissão à ilustração em particular, mas o tema é o logro da fisiologia em meio à emergência das questões que Michel Foucault sintetizara no conceito de biopolítica. A articulação entre texto e imagem não é indexada. Ela é conceitual. Todas estas informações a edição da Contraponto nos oferece. Resta saber então quais informações a edição da Cosac & Naify subtrai do leitor que comprou gato, mas levou uma lebre para casa.
            Antes de mais nada, o leitor não sabe por onde passeou o pesquisador ao fuçar arquivos os mais variados. Sem imagens não há remissão aos arquivos a partir do qual os créditos das imagens são registrados. Mas obviamente que só isso não basta. É preciso entrar no livro e descobrir aquilo que o texto oferece de bandeja relacionando legenda e argumento, e quais imagens estão dispostas por correlação de caráter conceitual, isto é, sem menção explícita.
            A primeira coisa a ser dita diz respeito à resposta da SAC da Cosac & Naify que justifica sua estratégia de limar as imagens da edição final. Diz a mensagem que não ser questão de encarar a ausência das imagens como perda maior,  erecorrer ao expediente de excluir todas as imagens é justificável porque muitas das discussões de Crary versam sobre cores e a impressão seria em preto e branco, exatamente como se deu na edição da MIT americana. Antes de mais nada, o tema do livro é o problema da atenção como um conceito não somente da psicologia mas como de uma dada ordem política da sociedade disciplinar no capitalismo de fins do século XIX. Até a página 105 não há uma discussão sequer sobre o cores. Na verdade, o problema das cores está mais fortemente presente, isso sim, em Técnicas do observador, em especial no capítulo 3 (editado pela Contraponto). A outra questão é que uma parte ínfima das imagens disponíveis no livro não é originalmente impressa em preto e branco, dado que são poucas as pinturas que Crary discute no percurso do seu argumento. Nas contas, quase 70% das ilustrações são originalmente compostas em branco e preto. Não são quadros, em sua maioria, mas diagramas, ilustrações de livros e publicidade de época. Dito de outra forma, a decisão não foi tomada, obviamente, em favor do leitor. E isto, além de colocar em questão a justificativa a partir de uma doutrina das cores tomada por emenda, chama atenção para outro aspecto. A fortuna iconográfica de Suspensões da percepção não faz parte do espólio artístico mais evidente da história da arte, o que faz com que sua disponibilidade na internet seja fortemente reduzida, ao contrário do que entende o recado recebido por meu amigo Rafael Saldanha. Aliás, este é um recurso interessante, o expediente de transferir o esforço de recompor o livro ao leitor.
            Entendendo que as imagens são elementos componentes do argumento do livro, e não meramente ilustrações; e que muitas das imagens não são citadas, mas são implicadas no argumento da passagem onde estão localizadas; eu me pergunto se o que temos em mãos após desembolsar R$69,90 é propriamente uma tradução, e não uma adaptação de um trabalho original. Adaptação produzida com finalidade meramente contábil, e não didática como o fez a Ediouro com suas versões infanto-juvenis, sem pé nem cabeça, de livros como O Corcunda de Notre Dame. Adaptação que entrega algo incompleto, como o que fora feito com a primeira edição de Clifford Geertz no Brasil que, mais adiante seguiu sendo mal tratado ininterruptamente. E em meio a este ambiente hostil, adapt or die, caro leitor.
            Não sendo propriamente uma tradução, ou ao menos uma tradução incompleta que não informa o leitor daquilo que falta à edição; e uma informação veiculada via SAC sugerindo que o leitor se vire para encontrar as imagens eliminadas da edição, cabe perguntar: 1) tendo a Cosac transferindo o ônus da oferta e edição do produto de algo que é nitidamente um produto adulterado para o leitor; 2) se cabe ao leitor terminar a edição por via da internet; será que não é possível adaptar esta informação de forma a entender que o leitor deve se resolver inteiramente via internet? Inclusive para a aquisição do livro, digamos, por empréstimo digital uma vez que é um produto adulterado que está em questão, em vias de ser completado pelo leitor? Esta é a mensagem que a empresa tem a oferecer? Complete a edição você mesmo? Ligue os pontos?
            Não é nenhum segredo de Estado que a Cosac & Naify tem passado por alguns percalços financeiros e editoriais. Que muita coisa mudou e que o dinheiro em caixa já não é mais o mesmo. Que aliava bom gosto e design inovador com traduções bem pagas feita por gente do ramo produzindo livros de preço igualmente diferenciado. Enfim, um percurso que buscava imprimir um outro padrão de excelência que seguramente carregava consigo determinado ônus. Foi assim que se constituiu uma aliança interessante entre leitores e editora. A coisa cresceu a ponto de, há anos vermos no estande da mesma editora, na Feira do Livro que se dá na USP anualmente a maior aglomeração de compradores do evento. O nome disso é credibilidade. A decisão de eliminar parte importante do material gráfico em uma edição que vise oferecer a tradução de um livro não é grave. Grave é ter sido feita à revelia do leitor que, por essas e outras, passa a desconfiar do produto oferecido, da lisura da editora que já vinha pecando na tradução das notas de rodapé de obras já traduzidas para o português, feitas por via de citação das edições consagradas criando um sistema de indexação de obras muito longe de ser inquestionável. Num momento de crise o fundamental é não esquecer o que você faz e com quem você faz. E não seria por falta de alternativas. Não seria caro, e tampouco espetacular, por exemplo, um blog com as imagens devidamente indexadas com remissão numerada no livro; ou a mera informação sobre a decisão editorial tomada, assim como suas razões. Enfim, com a honestidade, o que já não parece ser compatível com a imagem de editoras que nutrem de maior reputação e dinheiro. E assim o catálogo começa a congelar por falta de interesse. E aí... e a editora Brasiliense que hoje agoniza, sozinha, em um estande na Feira de Livros da USP? Digo, no último dos estandes, nos fundos do derradeiro pavilhão, esperando alguém comprar um de seus míseros volumes da coleção Primeiros Passos, notadamente aquilo que resta. Ao deixar o leitor de lado na composição de livros, o leitor pode decidir deixar de lado a editora na composição da leitura.
Adapt or die.

*          *          *

            Em 2003 a revista Carta Capital publicou uma resenha do livro Testemunha Ocular, de Peter Burke. Na resenha, o tema fundamental fora a falta de cuidado pela editora encarregada da tradução, a Editora Universidade do Sagrado Coração (EdUSC). As ilustrações, indispensáveis para a compreensão do argumento do livro dada a abusiva remissão a um manancial de  imagens enorme, estavam colocadas fora de lugar e, muitas das vezes, eliminadas sem justificativa. A repercussão foi tão violenta que a mesma editora fez um recall dos livros, assumiu o prejuízo e o relançou no ano seguinte, devidamente ilustrado, em p&b, no mesmo papel reciclado com o qual começara a trabalhar no ano anterior. Eu ainda compro livros da EdUSC.

3 comentários:

Fabiane Vinente disse...

Bernardo, espero que seu posicionamento corajoso de leitor atento seja disseminado. Creio que só mesmo quando se denuncia tais situações é que se pode pressionar as editoras a abandonarem estas práticas. Infelizmente, para nós, que lemos em língua portuguesa no Brasil, resta o eterno risco de sermos solapados pela lógica "contábil" das editoras. Atentar e denunciar parece o único caminho. Parabéns.

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...

Bia;

Agradeço muito o comentário e, se me permite, lamento que seja preciso coragem para fazer este tipo de investigação. O caso de Geertz, por exemplo, é de conhecimento comum na antropologia, a edição já conta com 35 anos e seguimos tendo e dando aulas com um livro adulterado, o mesmo que a LTC herdou da antiga Zahar (hoje, Jorge Zahar). E o silêncio ao redor disso tem muito do compadrio que sempre declaramos ojeriza ao mesmo tempo em que nos apressamos em usufruir na primeira hora. O caso Cosac é mais um momento em que o prestígio permite a falta de cuidado.

É pena que tenham pecado por tão pouco.

ed disse...

que onda, hein? bom texto