CERTEAU, Michel de. La
Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.
Gallimard. Paris. 1982.
________________________.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique. Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
________________________.
La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe
siècle. Gallimard. Paris. 2013.
DUBY, Georges. As três
ordens ou o imaginário do feudalismo. Edições 70. Lisboa.1982.
KANTOROWIKZ,
Ernst Hartwig. The King’s to bodies: a
study in mediaeval political theology. Princeton. Princeton. 1997.
8-
Nos escritos
de Michel de Certeau podemos encontrar três momentos privilegiados onde o
conceito de mística são devidamente
discutidos e apreciados. Em primeiro lugar, e mais obviamente, nos dois volumes
publicados de La Fable Mystique – há
previsão para a edição de um terceiro volume, igualmente organizado por Luce
Giard. O terceiro momento, em verdade publicado entre as publicações do
primeiro (1982) e segundo volumes de Fable Mystique (2013, póstumo) é Le lieu de l’autre – histoire religieuse et
mystique (2009). O que pretendo fazer daqui por diante é retomar mais
detidamente o problema posto pelo historiador jesuíta quanto a definição
paulatina da mística como ciência e discurso – um e outro extensíveis ao
problema da administração da vida alheia, isto é, referendáveis a alguns
problemas modernos da arte de governar. Resta saber, contudo, se o caminho de
volta é possível e se o que volta de lá é, de fato, a lei.
Na passagem
em que Michel de Certeau introduz o tema do erotismo do Corpo-Deus na
introdução do primeiro volume de La Fable
Mystique, vemos a menção a um tema muito caro a uma certa etnologia
americanista de orientação clastriana: a questão do Um. Acabara de falar sobre
a quadratura a partir da qual a mística seria abordada (a partir de uma nova
erótica; de uma teoria psicanalítica; de uma historiografia; a partir da
fábula, a remetendo ao problema da oralidade e da ficção). E é justamente a partir da dimensão erótica
que a questão do Um irrompe como problema, isto é, de Deus como Único objeto de
amor.
“Malgrado todas as invenções e conquistas que
este Ocidente do Único (a queda do antigo Sol do universo instaurou o Ocidente
moderno), malgrado a multiplicação das artes permitindo que se jogasse com
presenças em vias de desaparição, malgrado a substituição do que Falta por uma
série indefinida de produções em série, o fantasma do único sempre dá as caras.
Mesmo as possessões se articulam sobre qualquer coisa de perdido. É assim que don Juan, perseguindo suas conquistas com
desenvoltura, mille e tre, sabe que
as mesmas repetem a ausência da única e inacessível “mulher”.”(1982:13)
O que
desponta como diagnóstico é a sintetização do desejo no objeto desejado como
unidade, isto é, a despeito da variedade disposta em séries demonstrativas que
começa a definir aquilo que é a aventura moderna do discurso, a manifestação do
desejo retorna ao único amor, ao desejo a ser desejado acima de todos os
desejos. Deus ou, no caso de don Juan, A Mulher, a mesma que aparecerá mais
adiante como encarnação do popular em La
Sorcière de Jules Michelet. Em alguns momentos Michel de Certeau é
agressivo na adesão da tese de que a modernidade é um período cuja tecnicização impacta rapidamente o
universo religioso e que, ao mesmo tempo, este é o momento em que aquilo que
virá a ser chamado de ciência moderna
– nem tão científica assim, ainda que profundamente moderna – reconstitui os
espaços da vida religiosa na forma da racionalização. O redimensionamento, vale
dizer, não é feito necessariamente fora do seio da Igreja Católica. Na verdade,
em grande parte é exatamente o contrário. Difícil não considerar o papel do
cardeal Richelieu no que poderíamos chamar de modernização da França quando estamos, no limite, falando da
invenção da França tal como a conhecemos. Desde a construção da primeira cidade
planejada da história, exatamente Richelieu, vizinha de Loudun, até o papel
como condutor do novo universo científico trazendo para perto de si figuras
como Fontenelle e Renaudot. Qual seria o tamanho do abuso da razão ao colocar a
França, esta gestada no alvorecer da modernidade, como manifestação do erotismo
em que passando os olhos, de francês em francês o que se busca é, inutilmente
ainda que com alguma eficácia, a “França”, a “Mulher”, “Deus”?
Este que é
claramente um fantoche, uma provocação a partir da erótica tem desdobramentos mais
graves quando consideradas à luz da teologia política, isto é, a consideração
de que o exercício do discurso teológico traz no seu seio um tipo de
manifestação característica da vida política: a declaração da inimizade, ou
seja, de guerra (Taubes, 1999). Ao considerar a relação entre desejo e mística
por via do erotismo, Michel de Certeau cumpre o itinerário da encarnação do
verbo cuja remissão à eucaristia vê narrada na mesma modernidade clássica sua
redução ao simbolismo da transubstanciação.
“A palavra, escrita mas indecifrável, é deixada fora desse corpo para o qual um discurso
erótico se põe não obstante em busca de palavras e imagens. Ainda que a
eucaristia (lugar central deste deslocamento) fizera do corpo uma efetuação da
palavra, o corpo místico deixa de ser transparente aos sentidos vindo a se
opacificar deixando a cena muda própria de um “je ne sais quoi” que o altera, um país perdido igualmente
estrangeiro aos sujeitos falantes e aos textos de uma verdade.” (1982:15)
Não é sem
consequências que a sugestão do deslocamento do corpo se dá. Não sendo somente
o local em que o corpo se faz presente – não somente o do fiel, mas aquele de
Jesus Cristo -, a comunidade eucarística que se desdobra do corpus
mysticum fundamenta a analogia que faz operar a política medieval
destituída pela nova ordem monárquica.
“O conceito de Igreja como corpus Christi remonta, obviamente, até
São Paulo; mas o termo corpus mysticum
não se ampara na tradição bíblica sendo bastante mais recente do que se poderia
imaginar. Se tornou preeminente em primeiro lugar na era Carolíngia vindo a
ganhar importância no curso da controvérsia sobre a Eucaristia conduzida por
muitos anos por Paschasius Radpertus e Ratramnus, ambos do monastério de
Corbie. Em uma das ocasiões, Ratramnus salienta que o corpo no qual Cristo
sofrera fora o seu “mesmo e verdadeiro corpo” (proprium et verum corpus) enquanto o Eucarístico seria seu corpus mysticum. Talvez Ratramnus
pousasse sua autoridade em Hrabanus Maurus, quem dissera certa vez, pouco tempo
antes, que dentro da Igreja o corpus
mysticum – significando a Eucaristia – era administrado pelo ofício
sacerdotal.” (Kantorowikz, 1997:196)
A
administração da liturgia, indica o trabalho de Ernst Kantorowikz, se desdobra
em uma metáfora originária em que a comunidade dos ofícios da cristandade será
posta sob o signo do conceito de Eucaristia – o que é, em grande parte e
guardadas as desproporções, a tese original da antropologia social vitoriana,
em especial nos trabalhos de James Georger Frazer, William Robertson Smith e,
mais adiante, Anthony Maurice Hocart. De corpo místico à corporação mística em
que a Eucaristia se traveste em formas jurídicas, dado ser este o ambiente em
que a ordem tripartite do Estado feudal guarda para o exercício do clericato
(Duby, 1982). Que não se considere a sugestão de que o desdobramento do corpus mysticum se origina de uma
metáfora seja um exagero. E aqui me permito citar um parágrafo ainda mais
extenso, do mesmo Kantorowikz, com a finalidade de orientarmos melhor o desenho
ascendente a que se presta a ordem
estatal e sua primeira forma orgânica:
“Aquinas,
to be sure, was still fully aware of the fact that the mystical body really
belonged to the sacramental sphere, and that corpus mysticum was to be set over against the corpus verum represented by the consecrated host. Even he, however,
spoke of both bodies – the true and the mystical – without reference to the
Eucharistic bread. In his teaching, the “true body” repeatedly signified not
all the Eucharistic Christ of the alter but Christ as an individual being,
physical and in the flesh, whose individual “body natural” became
sociologically the model of the supra-individual and collective mystical body
of the Church: corpus Christi mysticuym…
ad similitudinem corporis Christi very. In other words, the customary
anthropomorphic image comparing the Church and its members with a, or any,
human body was sided by a more specific comparision: the Church as a corpus mysticum compared with the
individual body of Christ, his corpus
verum or natural. Moreover, corpus verum gradually ceased to
indicate solely the “real presence” of Christ in the Sacrament, nor did it
retain a strictly sacramental meaning and function. The individual body natural
of Christ was understood as an organism acquiring social and corporational
functions: it served with head and
limbs, as the prototype and individuation of a super-individual collective, the
Church as corpus mysticum.”
(Kantorowikz, op.cit.:201).
É do próprio
Tomás de Aquino a fórmula corpus Ecclesia
mysticum, desdobramento da analogia de corpus
Christi mysticum que só faria sentido na administração dos sacramentos.
Esta série que se desdobra da metáfora com o corpo de Cristo culmina na
secularização a noção do corpo místico traduzindo o idioma litúrgico para o
jurídico. Secularização aqui, no sentido estrito do termo, posto a serviço do
século. Não é outra a fonte da abstração que correlaciona a pessoa mística com a pessoa fictícia (persona repraesentata/ficta; pessoa feita, isto é, em analogia com
a noção de Pessoa). E não é outra pessoa senão a mística a que se desestabiliza
como fonte de analogia na constituinte do poder monárquico. É para ela que
aponta a erótica que serve como primeiro plano da quadratura da mística de Michel de Certeau. (1982, 15). O segundo
elemento da quadratura aponta a direção na qual se dá a desestabilização: o
universo psicossomático da psicanálise.