segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Notas da torre de observação: la faiblesse de croire


DE CERTEAU, Michel. La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.

KOSELLECK,  Reinhart. L’experience de l’histoire. Seuil. Paris. 1997.


II- Des choses dites : ce ça qu’on est.

            O que é isto que somos? O que é isto que vi? No que aquilo que eu digo participa do mesmo registro em que o que eu digo ou lhe de alguma forma próximo? Seguramente que redigir uma pergunta como esta, muito mais afeita aos problemas mais básicos da identidade lógica dos entes se desdobra em dois mecanismos de controle do que, para além do que é dito, do que pode ser dito. Seja de um ponto de vista meramente lógico-proposicional em que uma gramática é respeitada, seja de um ponto de vista político-restritivo em que alguns objetos simplesmente não tem lugar possível na circulação de coisas que recebem a alcunha de comunicação. O caso é que a experiência imediata que me oferece aquilo sobre o que eu digo, ou que considero passivo de ser verdadeiro porque orienta minhas ações – algo próximo do que Eliade chamaria de experiência do sagrado, algo que pode ser lidos de províncias heterogêneas em um mundo de espaço homogêneo – passa por circunscrições significativas. As mesmas circunscrições se desenvolvem como utensílios de fixação, nos termos de De Certeau, o que aponta imediatamente para o tipo de leitura exclusiva de uma sociologia, por exemplo que entende a vida religiosa por via da teoria do conhecimento e articula os problemas da atitude religiosa como um movimento do espírito entorno da elaboração de práticas classificatórias. A fixação dos termos de outrem parece permitir a fixação dos termos de relação que desenha os dois istos – quem somos ao dizer que somos; o que é isto que dizemos que é. Há nisso, contudo, uma grande margem de suspeição entre formas e experiências, entre fixação e movimento; termo e vida.

            «(…) une spiritualité devient suspecte lorsqu’elle n’admet plus d’être contestée pas de vis-à-vis, lorsqu’elle est identifiée au destin d’un groupe ou d’une politique, lorsque le « parti » adverse n’apparaît plus susceptible de dire et de révéler aussi, à sa manière propre, ce dont une « école » particulière prétend légitimement témoigner dans la position d’où elle parle. Cette réduction du signifié au signifiant, ou de l’esprit à un ça, justifie dès lors une « réduction » en sens inverse » : la spiritualité sera considérée par les théologiens comme un pur « psychologisme » ; par le philosophes, comme un « sentimentalisme » ou un « pragmatisme » ; par le sociologue, comme la défense idéologique d’un groupe ; par l’historien, comme une modalité exacerbée de la culture en un temps, etc. » (1985:62)

            O movimento ambíguo, aqui, é que no combate à superstição o que se depreende como efeito colateral é a trava epistemológica posta nas categorias de experiência que, não obstante serem um movimento classificatório disto, é uma relação de identificação disto por meio da identidade que isto tem comigo e conosco. A suspeita ao redor da relação imediata no eixo de relação implica, uma vez posta em suspeição, em uma relação mediada por um significante privilegiado cujo posto se desdobra em formas desiguais de reificação chegando ao ponto em fazer as vezes de índice ainda que não o seja. Reinhart Koselleck, ao dissertar sobre o conceito de história exercido na historiografia – o que é uma história do tempo histórico tal como manifesta como conceito; uma investigação da história como conceito, ou como problema – aponta para um movimento, igualmente abrangente ainda que circunscrito ao mesmo problema da experiência. Seu ensaio Le concept d’histoire (1997) tem na passagem em que a história moderna é a própria transformação da heilsgeschichte. A ressonância entre os dois projetos de historiografia é suficiente para que a associação possa ser feita sem muito esforço.
            Ao se desvencilhar da sacra historia, a rejeição de um determinado conteúdo é posta em tese – rejeição exatamente do conteúdo posto em suspeição. A passagem abaixo discrimina a forma positiva da suspeita na qual um novo projeto de história toma forma. Este deve ser, para fins de compreensão do problema, o primeiro passo de um exercício de estudo até mesmo para que se entenda diferenças no seio da vida religiosa ela mesma, isto é, sobre o que é dito e sobre as formas de dizer o que é possível enunciar – o que se encontra sintetizado da noção de formalidade das práticas. Vamos a Koselleck:

            “Les expériences suprasensibles sont écartées au profit de faits historiques qui peuvent être plongés dans la lumière d’une morale en constant progrès ou bien faire l’objet d’une interprétation psychologique. Logiquement, a première expérience intrinsèquement historique du temps, celle du progrès, conduit aussi à historiser les principes considérés jusqu’alors comme immuables. (L. Salomo) Semler espère convaincre ses lecteurs du fait qu’ «il n’y a jamais la représentation invariable et taillé sur mesure une fois pour toutes contenu du dogme chrétien ». L’intrusion de la nouvelle « histoire »(Geschichte) dans les vérités considérées jusque-là comme éternelles est justifiée et compensée par cette nouvelle certitude, englobant aussi la religion, selon laquelle « le développement du monde moral, suivant l’ordre de Dieu, comprenait des périodes et des étapes au même titre que la connaissance et la découverte du monde physique ». Depuis que l’histoire à gagné cette qualité consistant à se transformer graduellement avec le temps, l’historia sacra se laisse interpréter historiquement – tout comme l’historia naturalis. » (1997 :78-79)

Esta citação de Koselleck sugere duas modificações importantes orquestradas no mesmo movimento para o qual Michel de Certeau também chama a atenção. A primeira, a mudança de escala das relações relevantes que, uma vez alteradas, alteram necessariamente o que é que está em relação. Ao mesmo tempo, chama a atenção para a mudança de métodos para que coisas sejam feitas a partir de uma determinada escala, o que nos faz voltar, uma vez mais para a questão da formalidade das práticas para a qual de Certeau é o principal proponente, tendo como caso empírico a guerra contra o patois francês movida pelo controverso abade Gregoire. Porque se o tema da suspeição e da perseguição segue movendo esta leitura, é importante atentar para o fato de que a alteração do cenário demanda novas técnicas de atenção. Não são conceitos soltos no mundo que estão em questão, mas esforços concentrados na definição de relações problemáticas – como a acusação mútua de ateísmo entre católicos e protestantes, ainda no século XVI. 


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sparring forçado acerca da doença moral.


“Confesso que não entendo bem. Li quando era mais novo numa edição daquelas que levamos a sério porque parecem feitas no escuro, às escondidas enquanto as tropas passam na rua. Quando comprei já estava cheia de vincos.”

“Você sempre fala um negócio horroroso nessas horas.”

“É. Estou tentando lembrar como foi que eu escrevi sobre o livro. Algo do tipo: capa em vinho com um projeto gráfico apressado feito por quem queria gritar ao invés de desenhar.”

“Sério?”

“E li aquilo que parecia uma daquelas traduções de urgência, um plano secreto... com 3 mil exemplares impressos. Esse tipo de segredo posto a público.”

“Se quiser esconder um segredo, revele a verdade? É sério que estamos falando sobre isso?”

“E aí tinha aquela história sobre revelar a potência do corpo quando da doença.”

“Olha. Não acho que é a melhor hora.”

“Dá pra conversar feito gente ou vai ficar me censurando? Incrível!”

“...”

“Porque gosto da idéia. Nem me lembro de quem é o livro...”

“Nietzsche. Ecce Homo.

“Não importa. Não importa quem era. Aliás, a única coisa lúcida que este sujeito fez foi abraçar o cavalo açoitado antes de simplesmente vegetar. Mas eu acho que isso começa a fazer algum sentido pra mim, digo, só haver saúde na doença. Porque algumas coisas ficam mais urgentes quando se está aqui, sem urgência alguma. Tempo tirado da caixa d’água a golpes de colher de café. E nisso, de comer e dormir, eu fico suscetível. Desde sempre. Uma camada da pele evapora e tudo começa a transitar, não importa a distância, tudo fica mais sensível. Ficar doente sempre me transformou num pervertido moral e começo a acreditar que a perversão é a evaporação de uma camada da pele. Tudo dói mais, tudo reverbera e transborda. Ficar doente tira dois palmos de altura da borda da piscina, sabe? Não tem mais certo e errado com clareza porque entra tudo, de perto e de longe, e sai tudo. Vulnerável e insaciável podem ser postos no dicionário de sinônimos. Sempre arrisquei delirar em febre por causa de um toque a mais. Cada micro-orifício da pele é um foco de dor e uma zona erógena. É o que a evaporação de uma camada da pele faz e é ela que precisamos restabelecer quando a doença vai embora. Senão viramos doentes morais querendo tocar a tudo e a todos com tudo o que temos, exatamente como quando da doença.”

“Gênio. Você é simplesmente genial.”

“Sei que isso não é assim, diabos. Sei que não é assim e que não é real, que a pele não evapora. Mas a figura faz sentido, digo, que doente o corpo fica permeável. Fico imaginando a hora da morte, especialmente de uma morte violenta como o corpo deve ficar poderoso antes de se desfazer imediatamente. Deve ficar calcinado pelo próprio vapor que libera.”

“Vou procurar um cavalo pra você.”

“Vá se foder.”

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Notas da Torre de Observação: La faiblesse de croire


DE CERTEAU, Michel. La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.

Serão cinco anos envolvido com a mesma pesquisa. De uma forma geral eu tenho evitado fórmulas expressas que definam movimentos abrangentes, com envergadura muito maior do que consigo, de fato, cobrir. Ainda assim, quando li o artigo de Michel de Certeau sobre a moralidade das práticas e que ele faz um passeio peculiar sobre a França moderna, o mesmo De Certeau sugere uma passagem interessante que em muito tem a ver com as correntes marinhas mais profundas para as quais quero chamar a atenção algum lugar do futuro, quando souber fazê-lo. Ao descrever uma série de transformações que acompanha parte de uma historiografia consagrada sobre a modernização das instituições que conta com nomes como os de Lucien Febvre e Robert Mandrou, em um dado momento leio a passagem que afirma a transformação não tão lenta assim das considerações sobre heresia e seu risco para a ordem do mundo sendo lentamente transferidas para a problematização da alteridade. A modernidade, aqui, marcaria a cessão da forma territorial da igreja para a constituição do espaço administrado com vistas na otimização das relações de governo em que o cálculo dos prejuízos das guerras civis, enormemente marcada pela empreitada das guerras religiosas, transforma em ordem civil alguns dos predicados que poderíamos encontrar na Lettre sur la tolérance de Voltaire. Nisso, o movimento de reconhecimento da pluralidade religiosa fortemente tematizada nas sessões parlamentares sobre a liberdade de culto público durante a Revolução francesa confere à divergência religiosa o pressuposto de diversidade de opinião. O primeiro efeito disso, desejaria o Iluminista de primeira hora, seria de exterminar com a justificativa religiosa para a violência de larga escala.
            Ao ter o discurso e a vida religiosa mitigada ao plano da variedade das formas de vida presentes a serem administradas por uma outra estância, impessoal e terrena, a interrupção fundamental da coesão doutrinal chamada heresia é diluída junto com o peso da doutrina professada. Nada mais de casos como a dos valdenses ou dos cátaros, e nada mais de massacres em nome da cruz, reduzida a mera justificativa. Há quem goste de chamar este período de democratização e, outros, do gérmen da pluralidade religiosa. Como não sou bom em prognósticos retroativos, prefiro chamar este movimento de criação de um novo problema. A questão das seitas religiosas e a suspeição ao seu redor constitui um outro desdobramento a ser considerado nesta história, a mesma suspeição de toda forma de experiência que não pode ser livremente comunicada, como a loucura, a epifania, a certeza e, porque não, o amor.
            O tratamento daquilo que o Estado francês – que em meio ao século XIX se encontrava em desabrida instabilidade dado à sucessão de processos revolucionários que reforçaram a tese de repúblicas repressoras e monarquias algo mais condescendentes – opera de forma particular ao dar vazão à acusação que utiliza o vocábulo seita. Na verdade, parece haver uma tensão entre a declaração que afirma todos serem irmãos diante Deus e a Natureza, signo de universalizado, inclusive do ponto de vista da mediação técnica na generalização da pedagogia de massa, contraposto ao nacionalismo de igreja que tanto parece se esforçar em encontrar o estrangeiro como agente fora-da-lei, e vice-versa. O estrangeiro figura como inimigo e, nos momentos específicos, como falso filho da pátria, isto é, como traidor que somente pode sê-lo na medida em que pode ser descoberto – porta uma identidade falsa, ainda que seja nascido na França e filho de franceses numa linhagem de quinze gerações. E aquilo que parece precisar de um severo descortino das camadas de arquivos para demonstrar as implicações tem, numa determinada passagem de Michel de Certeau, um desenho que quero compreender melhor dado que considero promissor. Trata-se do ensaio de abertura de La faiblesse de croire, do ensaio chamado Une figure énigmatique. A tradução é minha. Desculpem.
           
            “A atualidade dá à vida religiosa uma nova fisionomia. Os religiosos e religiosas heroicos, veneráveis, odiosos ou excepcionais, povoam a história. Todavia todos parecem portar um sinal que assusta. Como o padre, ainda não exatamente pelas mesmas razões, o religioso intriga mais do que provoca temor ou respeito. Ele se junta ao selvagem e ao feiticeiro no Folclore que é o próprio interior da França. Sua personagem tem mais valor como enigma do que como exemplo. Porta a figura da estranheza, ainda que ambígua que designa a cada vez um segredo importante e um passado revolvido. Ele fascina como qualquer coisa escondida ao mesmo tempo em que tem o estatuto de objeto obsoleto, tal como uma relíquia de sociedades desaparecidas. Quem é esta, a figura enigmática? “(1987:25)

            De acordo com o signo da estranheza, do que é escondido, a figura selvagem do estrangeiro mesmo que em seu próprio país, ou do campagnard sorcier presentes no arco de estudos que vão desde Jules Michelet e Anatole Le Braz até os mais recentes esforços de Jeanne Favret-Saada, identifica o povo que segue estrangeiro em seu próprio país, da mesma forma que o religioso que vive a religião sem necessariamente organiza-la na forma de uma igreja, se transformando assim num embaraço comunicativo do tipo que diz que Jesus falou comigo. Ele interrompe uma certa ordem na medida em que atravessa relações de diferenciação de papéis sociais e faz apelo a uma unidade imprevisível com Deus – este estrangeiro por excelência, insiste Marcel Gauchet. Uma vez posta a ordem em que são distribuídos os papéis, toda relação imediata com o sentido refaz o percurso da heresia ou, no caso mitigado, da heterodoxia. Mas não se trata mais de uma relação com a hierarquia da igreja, mas de ser parte da população.