terça-feira, 30 de julho de 2013

Parêntese diabólico: langue et parole


BACHELARD,  Gaston. O pluralismo coerente da química moderna. Rio de Janeiro. Contraponto. 2009 [1973].
DASTON,  Lorraine & GALISON,  Peter. Objectivity. Nova York. 2007.
MANIGLIER,  Patrice.  La vie énigmatique des signes: Saussure et la naissance du structuralisme. Non & Non, Éditions Léo Scheer. Paris. 2006.

3-        Porque falar é fácil. Difícil é saber do que se está falando. 



            On voit que la célèbre thèse selon laquelle ce n’est pas l’objet qui détermine le point de vue, mais le point de vue qui détermine l’objet ne doit pas être comprise comme axiome épistémologique général, mais comme une thèse déduite de la nature de l’objet linguistique lui-même, plus précisément du fait que l’entité linguistique ne saurait exister en dehors d’un acte de l’esprit. »  (Maniglier, 2006 :64)

            O capítulo de onde saco esta citação chama-se “la langue satanique” e nos leva para a primeira reflexão sobre a diabolia de Reichler, ainda que este seja uma nota de rodapé, um parêntese na reflexão, sobre não somente a afirmação da diabolia como possibilidade mas de como é possível que algo como o que sugere o mesmo Reichler seja factível para além de uma investigação detida sobre a renardie. Manigliertem como objetivo de seu livro definir quais termos são articulados pela persona editorial de Saussure e como esta persona – algo semelhante à figuração da ordem editorial mística de São João da Cruz e seu editor-discípulo, Diego de Jesus – determina o fato linguístico. E por se tratar da determinação do que seria o fato linguístico, trata-se de ontologia, a saber, de uma língua que seja só-linguagem. Esta é a orientação metodológica de um Ferdinand de Saussure que recusa a imediaticidade do indivíduo linguístico como se partícipe da história natural de onde se depreende a relação implicada da zoologia com a filologia – havendo, obviamente, o filo como uma das escalas da especificação (reino, classe, filo, espécie). O outro problema está, ao recusar qualquer dimensão da filogenia do organismo na expressão do sentido, no fato linguístico se precipita em sua forma sincrônica. O sentido se dá na consciência daquele que fala, cuja arquitetônica prescinde da história permanente da instituição, algo transcendente, vindo a ser então só-atualização – e é neste ponto em que a linguagem seja só-linguagem, podendo ser abstraída de quem fala sem que o que fora dito seja determinante, permitindo ao linguista utilizar a mesma linguagem para sua atividade científica. E então, um tropeço fortuito. Porque o objeto da linguística não estando desde já, lá, é lá que ele deve-estar.

            D’autant que la linguistique non seulement ne saurait finir par trouver un objet donné, mis ne trouve même le « point de départ » dans aucune réalité donnée. Par là elle perd tout caractère expérimental. Les sciences expérimentales supposent non seulement comme horizon la séparation du donné et du construit, mais aussi un donné qui, aussi mal découpé soit-il, n’en est pas moins donné en dehors de toute opération d e l’esprit. Le biologiste utilise un tissu donné, pour mettre en évidence, par de procédés de coloration ou d’électrification, une cellule ; le chimiste par d’une substance donnée, pour l’analyser et faire apparaître s nature chimique. Quelle est la substance du linguiste? » (Maniglier, 2006 :66)

            Se o estruturalismo é uma forma de problematização, como Maniglier sugere com razão, então ele mesmo se esquece da história e de algumas das questões postas por este mesmo estruturalismo que não é um método, não é uma escola, mas uma postura epistemológica. No caso, as fontes da reflexão sobre a objetividade científica que define o caráter estrutural dos objetos a serem investigados por via da correlação dos termos que oferecem seu conjunto como agremiação estabelecendo, assim sua determinação. Dos capítulos do estruturalismo que Maniglier negligencia, e que merecem atenção por estarem muito bem sumariados em História do Estruturalismo de François Dosse, presente em sua bibliografia, o mais marcante é a ausência de Bachelard cujo livro O pluralismo coerente da química moderna define com notada clareza os elementos constituintes de um racionalismo aplicado, em muito desdobrado da longa tradição da versão cartesiana da astronomia. É ela quem se dedica ao problema dos corpos celestes que, de acordo com a mecânica geral das órbitas, sugere que eles devem estar lá, num determinado momento, em uma determinada posição infinitesimalmente distante, invisíveis a uma investigação telescópica. Assim, são objetos que começam a ser oferecidos ao discurso segundo uma concepção estrutural de objetividade posteriormente sintetizada na noção fregeana de begriffschrift (“escritura de conceitos”) em que o pensamento em sua expressão deve ser incluído na circunscrição do objeto como problema constituinte.

            Meant to guarantee the communicability and therefore the objectivity of arithmetic and logic, the begriffshrift itself  proved opaque. Frege nonetheless insisted on the scientific utility of his symbols, which he saw as the partial realization of Leibniz’s dream of characteristic universalis and as potentially extendable to other sciences, such as mechanics and physics. The begriffschrift would be a tool of structural objectivity, a shield to protect logic and arithmetic from both the psychological and the psychologists – at one point, he feared psychology would swallow up all sciences.” (Daston & Galison, 2007:271)

            Não basta estar lá para ser alvo de uma investigação que, ainda que experimental, demanda clareza de expressão, premissa  tanto epistemológica quanto sociológica na medida em que boa parte do esforço de redação científica moderna é uma grande epistolografia entre desconhecidos a respeito de um assunto comum, tema a ser estabelecido na mesma medida que independente daquele que disserta a seu respeito em um determinado momento. Unidade de medida, instrumentos de laboratório e descrição de substâncias em sua invisibilidade leva à elaboração de um código, uma caracterologia universal que define cada objeto em sua generalidade, numa formulação mais geométrica que empírica (Daston & Galison, op.cit.). E na química este mesmo movimento, composto elo arco narrativo sobre os elementos químicos, de Lavoisier (ao redor da Revolução Francesa) até Mendeleiev está devidamente marcado. Não surpreendente, o ato de identificação do objeto, ao contrário do que sugere Maniglier, não é o dado apreensível, ou da investigação empírica imediata.

            Já não se trata de uma experiência sempre focalizada no indivíduo ou na espécie, mas sim no gênero. Isso vai determinar uma renovação nominalista que fará da nomenclatura química um verdadeiro método de conhecimento. Nomear servirá mais para conhecer do que para reconhecer, e a própria classificação das substâncias elementares se mostrará movida por um pensamento ativo que designa um lugar regular para um objeto antes de encontrar esse objeto.”(Bachelard, 2009 [1973]):23)

            Agruras do infinitesimalmente grande, do infinitesimalmente pequeno e do humanamente instável. Saussure está longe de oferecer, como parece afirmar Maniglier, um percurso afastado das ciências experimentais dado que um e outro, segundo aquilo que ele mesmo oferece como traço distintivo, travam uma batalha feroz para determinar o objeto que deveria estar-lá.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

La faiblesse de croire: la diabolie


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.


2-
            No limite, são dois reinos: o do símbolo[1] e o do signo. O símbolo, desde um certo aporte semiológico, é de estrutura binária em que constam o simbolizando e o simbolizado cuja articulação repete o procedimento da metáfora sem ser circunscrita em seu domínio dado que a simbolização pode, e mesmo deve ir além da analogia vaga. Ela deve dizer a coisa. O signo, por sua vez, é de estrutura ternária compreendendo significante, significado e referente, os três postos em relação em seu assujeitamento às relações de significação e designação/denotação. Em cada um dos reinos as relações constantes determinam o que Reichler define, a partir da semiótica de Lotman, uma modelização semiótica que vem a configurar em um segundo momento – lógico, não cronológico – a norma que estabelece em que se reconhece uma relação e, mais uma relação válida tendo em vista a expressão do código em movimento. Aí surge a ambivalência, interna ao movimento semiótico que é o da cultura em sua particularidade, entre a lisura e a sedução, a retidão e a falácia. Tanto a norma quanto o desvio são, todavia, forças, dinâmicas profundas de articulação de sentido. São fundamentalmente movimento, sem serem movimento puro. São ordens diferenciadas desde a fonte e que se diferenciam – em si e entre si – diferentemente. E nesta diferença é aonde pode trafegar o diabólico.

            “Por oposição a uma relação concebida como íntima e totalizante, segundo o sentido etimológico rigoroso do symbolon, a operação “diabólica” consiste antes de qualquer coisa em separar isso que deve ser reunido e, correlativamente exaltar a capacidade significante ela mesma, sem se reportar à sua virtude transitiva. Mas tal diabolia, se exercida a cada vez que uma modelização semiótica pretende limitar suas possibilidades da linguagem e atrelar (cheviller) assim o regime dos sentidos a uma ideologia, não se exerce então sempre da mesma maneira. Ela constitui desde a Idade Média aos nossos dias, quero dizer, ao longo do desenvolvimento da língua e da literatura francesas, a história de uma forma de linguagem dotada de um dinamismo prodigioso.”(Reichler, 1979:12)

            Quando Reichler sugere a autonomia entre domínios, do simbólico e do signo, acaba por antecipar aquele que será o movimento do diabólico como movimento intensivo na ordem da ordem. E exatamente por intensificar certos movimentos sem respeitar os casos-limite que culmina como um domínio autônomo que faz criar, por sua vez, outras autonomias. Que se entenda. Os passos estão demasiado abstratos, parecendo que tudo pode ser dito. É preciso algo mais próximo ao solo, é preciso produzir algum atrito. Infelizmente esta não é uma prerrogativa do exercício diabólico, cujo exercício preferido parece ser brincar com a autonomia da autonomia e sugerir solo somente aonde não se pisa.
            O semiólogo do diabolismo parte de um sistema de oposições que ele define ser propriedade da modernidade clássica – em grande parte oriunda das reflexões de Blaise Pascal mas que trazem consigo forte orientação da caracterização de Michel Foucault em Les mots et les choses, como o próprio vocabulário utlizado denuncia. Esta oposição deve oferecer a tensão constituinte entre o que é propriamente a) simbólico e o que é propriamente b)diabólico. De um ponto de vista semiológico, claro.


a) SIGNO -------------------------------> COISA
   (som, grafia)

b) SIGNIFICANTE --------------------> SIGNIFICADO/REFERENTE

            O signo como tal, ao contrário do significante não porta qualquer agência implícita. Ele é a relação com a coisa, é a forma de presença por via da relação distanciada. O implícito da relação é a coisa, como na Res Pública. No caso do significante, seu aspecto fundamental é o caráter classificatório da linguagem, sobretudo com relação a ela mesma fundando uma episteme positiva que inclui o referente num quadro de ordem que é antes classificatório do que revelado. Assim, a relação entre signo e coisa opera numa razão cuja suficiência é denunciada pela conversação diabólica na qual as promessas de Don Juan – um dos casos estudados de Reichler – são palavras e tão somente palavras. Seu sentido se elucida na convocação de outras palavras para deporem. Pas de mots ET choses, mas de mots sur mots. As palavras não tem, no jogo implícito da sedução qualquer caráter hierárquico como se encontra em uma prece e tampouco carrega consigo o peso dos nomes que não podem ser ditos.  Ao mesmo tempo em que o vigor libertino das relações de sentido é exponencialmente incrementado, é o pendor classificatório, o código como movimentação de peças  que impera estabelecendo em seu seio o lugar e, assim, a diferença entre as coisas. O que distingue é o que reúne. Mas em contraste com o que oferece o simbólico esta orientação impacta por fazer circular uma falsa promessa porque mesmo no que diz respeito às palavras que fazem viger o código, mesmo elas, são só palavras o que é o mesmo que dizer que a palavra é só uma coisa. Mas caso eu dissesse algo assim eu seria propriamente diabólico.
            Assim, é possível compreender melhor a enorme distância entre o princípio do livre arbítrio no qual jaz a liberdade humana no seio da criação e da determinação do símbolo, cuja fonte é hierofânica, e a noção de arbitrariedade do signo cuja aproximação ao sentido se dá pela oposição com outro signo, num sistema de gravitação autônomo e não-determinado. Neste caso Saussure, que é o agente secreto, sequer utiliza o termo “símbolo” dado que o que é alvo e fundamento de seu modelo é um sistema de oposições cuja correlação é arbitrária, isto é, não-necessária fazendo do mero recurso da linguagem a vigência do Reino Deste Mundo, cujo príncipe bem sabemos quem seria. Daqui se compreende também a relação entre Roland Barthes e seu cartel de hereges, e ele mesmo um herege do contrato linguístico.



[1] Le symbole est essentialement pouvoir de réunir, et l’on se s’étonnera pas que les religions se soient toujours appuyés sur sa puissance, tout en la suspectant. »(Reichler, 1979 :11)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

La faiblesse de croire : la diabolie


DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.
1983.
REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.

1-
            Estão, desde então e desde sempre sob suspeita. Esta é a lição de Ernst Troeltsch a respeito dos místicos e daqueles que se reúnem ao seu redor. Ruim com eles, pior sem eles e a dimensão extática faz de seus eleitos a forma sensível da fé. E a forma sensível, o contato imediato é igualmente a fonte das tentações mais graves, especialmente quando o tema da natureza caída estrutura a ordem. O mundo e o Céu, o mesmo destilado sempre com mesma letra maiúscula que encontramos em Don Juan de Molière. Isto porque o hiato entre a ordem cósmica e a ordem política que guarda os segredos do outro mundo nem sempre estão em acordo e, para além disso a relação entre um extremo e outro delineia aquilo que é o próprio espaço da querela eclesiológica. A extensão e a forma da ordem no que tange a definição do domínio. Não à toa, e especialmente no alvorecer da modernidade clássica a tensão entre potestas e autoritas ofereceu e ainda oferece desafios nada insignificantes no que tange a justificação da ordem, sua elaboração discursiva e a instituição do domínio. Aquele que vive o poder na pele sem ser o poder ele mesmo é, assim, um desafio para a divulgação das boas novas, quando são de fato algo otimistas.
            Assim, o que fazer com o relato místico, com as experiências de contato direto com os mirabilia, com tudo aquilo que desafia a mera classificação desafiando a dignidade fundamental que impotente não consegue fazer nada senão evidenciar a sua pequenez diante a linguagem adâmica falida desde a Queda? Nem tanto esta questão, a do quê fazer, mas descrever como fazer. Ou melhor, descrever como em determinados casos a Igreja, pela agência que lhe é peculiar em momentos determinados resolveu uma certa gama desses eventos,  é aquilo que serve de base para as investigações primeiras de Michel de Certeau, particularmente ao redor do estabelecimento dos escritos de Jean-Joseph Surin - exorcista de formação jesuíta e o principal investigador do caso da possessão das irmãs ursulinas em Loudun, entre 1630-1636. França. Ele mesmo sendo um intelectual da igreja, igualmente jesuíta redige mais adiante um trabalho de fôlego sobre exatamente a determinação filológica e teológica de obras místicas que resolvem no livro La Fable Mystique, I – XVIe-V+XVIIe siècle. Neste livro em questão, além de descrever em detalhes como se deu a circulação dos escritos místicos de Surin, Certeau assume o risco de olhar-se no espelho e ver-se na escrita mística que é auxiliada por uma outra, secular e dedicada a transmitir sem iludir cujo teatro é encenado principalmente pela relação entre Diego de Jésus e São João da Cruz. Exercício de depuração e ordenamento sem fazer pleno sentido, sem abrir mão do inefável, do inexprimível. Não é o mesmo de determinar bulas, atas e manuais de direito canônico. Isto porque há algo que deve ser deixado de lado ou que é de qualquer forma delicado, fugidio porque ausente deste mundo. O texto a ser estabelecido não deve fazer as vezes de texto sagrado. Além disso, traz consigo a ordem, o procedimento que define que o místico em questão não fora ele mesmo, iludido. No que mais importa o texto se esvazia. E é sobre este vazio, no terreno em que há muita margem de manobra que o diabólico toma lugar.
           
            “Le lecteur, séduit par ce « rien », deviendra-t-il fou à son tour, ou bien, retourné chez lui, cherchera-t-il, s’il peut, à oublier ce qui lui est retiré ? De n’être jamais où on pourrait dire, la folle a falsifié le contrat que l’institution garantit et qui protège contre le « vertige » de ne pas savoir « à quoi m’en tenir sur le désir de l’autre, sur ce que je suis pour lui ». Finalement, aucun contrat, fût-ce le premier et dernier de tous, celui du langage, n’est pas par elle honoré. En répétant nos mots et nos histoires, elle y insinue leur mensonge. Peut-être, tandis que le sym-bolos est fiction productrice d’union, est-elle dia-bolos, dissuasion du symbolique par l’innommable de cette chose. » (Certeau, 1982 :58)

            Peculiarmente o trecho que cito acima não faz remissão a qualquer coleção de textos místicos. As citações acima são trechos de dois livros. O livro de Claude Reichler, La Diabolie, e a autobiografia de Roland Barthes, ambos semiólogos. Ainda bem. E com “ainda bem” não pretendo exprimir nenhum juízo em favor de Roland Barthes. Nem desfavorável. Muito pelo contrário. De fato não há nada que eu pretenda, ao menos não em demasia. Este é um ensaio no qual muito pouco, ou mesmo quase nada tende a acontecer. Por vezes demasiado lento, e em outros momentos acelerado aos saltos, pretende simplesmente sugerir notas de um exercício para o qual não estou e não pretendo estar à altura. É fruto da inventiva de assinalar alguns elementos para uma análise propriamente diabólica. Pelo visto, este não será um exercício solitário ainda que a companhia seja algo custosa.
            Quando ainda em Paris, com a curiosidade atiçada pelo título do volume redigido por Reichler, encomendei-o com vistas em tomar notas. Tomar conhecimento de sua existência por via do livro de Michel de Certeau, no entanto, traz uma pequena dificuldade. Isto porque segundo a investigação do jesuíta preferido de nove entre dez estruturalistas franceses – há quem prefira Matteo Ricci,  e mesmo António Vieira, é verdade – o discurso diabólico é uma espécie de discurso limite ainda mais perigoso que o idiota. Porque o apelo direto aos sentidos e a sedução extática são armas, antes de mais nada, do Príncipe deste Mundo – lembrando o título do pequeno livro de Raïssa Maritain. Sendo assim, o êxtase da relação imediata com o transcendente, com as forças maiores que a humanidade são perigosas exatamente por não trazerem clareza quanto aos signos de sua fonte. A imaginação e os dados imediatos, dois diabos que o cartesianismo se esmerou em exorcizar – o que em nada tem a ver com exterminar, mais uma vez muito pelo contrário.
            O livro de Reichler, contudo, está preocupado com coisa bastante diferente. Está atento ao discurso sedutor, falacioso mas não como caso limite. Somente como caso. Entre a lisura e a retidão, por um lado, e a sedução da falácia de outro, eis o que se mostra como tarefa do estudo:

            “(...) on tentera de décrire l’opposition de ces deux modes du dire comme étant celle de deux imaginaires investis par les sujets parlants dans le langage, qu’une ambivalence constitutive de celui-ci sécrète. » (1979 :10)
Paul Cézanne; Nature Morte. 

            Se o cenário de Michel de Certeau se aproxima da dimensão geopolítica da secularização e da formação do território que faz do místico o estrangeiro na modernidade, exatamente como o louco e o selvagem[1], Reichler afirma a autonomia da imaginação sedutora. Não como uma forma de cidadania, vale dizer, mas como uma postura que qualquer norma de linguagem, ainda que venha a exorcizar, não elimina. E sim, estamos falando de um tratado de semiótica. É a linguagem sobre a moral, e não a moral ela mesma que interessará ao diabólico – e assim se mostrará o quão difícil, se mesmo meramente possível, é falar do diabólico sem carregar desde então as suas marcas. Uma delas é exatamente o de carregar a linguagem consigo como se meramente linguagem fosse.



[1] Vale lembrar que Marcel Gauchet é altamente refratário à tese foucaultiana que delineia de forma mais enfática a equivalência sugerida entre loucos e estrangeiros. Ao contrário, é dele a tese de que o sistema manicomial é, à sua forma, o reconhecimento de cidadania deste tipo de cidadão pouco razoável. O caso é que é de Gauchet mesmo a forma de definição da cristandade como desenvolvimento progressivo de instituições de saídas da religião, fazendo de Deus o maior de todos os estrangeiros, tal como expresso tanto em Le desenchantement du monde  como em La condition politique. Se a relação entre louco e estrangeiro lhe soa arbitrária, as razões do religioso ser alguém em proximidade com o estrangeiro radical, não. Ao mesmo tempos ele reconhece as aporias da religião, e de como o enunciado religioso sofre para fazer sentido diante das instituições modernas. Restaria então, no seu caso, resolver a estranha facilidade em excluirmos da mesma fronteira, loucos, místicos e selvagens. 

domingo, 23 de junho de 2013

MOVIMENTO DO MOVIMENTO: sobre algo que não sei e que, por isso invento a respeito.

 
Auto-retrato
De calças curtas. Talvez não haja outra forma de descrever a cena. Pego em pleno movimento numa fotografia comprometedora. Estava fazendo outra coisa em minha tranquilidade classe média regado a suco de pêra e, literalmente, estava no meu canto. Um apartamento de 22 metros quadrados no bairro de Montparnasse, em Paris, 53 Rue du Moulin Vert. O apartamento consumia mais da metade daquilo que eu tinha para gastar. O resto se transformou em comida, algumas viagens, 60 kg de livros e uma pequena poupança construída às custas de um número significativo de privações. Mateus, meu filho, está em vias de nascer e minha tese de doutorado, esta filha bastarda, está em plena gestação. Estava olhando para o outro canto. Foi então que veio o clique fotográfico. Travei os pés enquanto torcia o tronco. Saí na foto na forma de Jânio Quadros. Não estava só. Era uma foto coletiva em que estávamos todos em uma posição devidamente patética. Sem esforço algum seremos reconhecidos como os patetas da vida política. Não vimos o golpe chegar, levamos o murro e passaremos a vida inteira dando justificativas estapafúrdias a respeito de como apanhamos de um bêbado inútil, daquele vagabundo na forma de rolo-compressor.
            Assim, uma vez que sou junto aos meus mais queridos uma trupe decepcionante não pretendo fazer nenhum esforço a mais do que vinha fazendo. Não quero, não devo e não pretendo fingir ser algo diferente. Dito de outra forma, devo seguir o rumo atropeçado no qual vinha com o intuito de seguir fazendo exatamente o mesmo. Nos tempos do teatro meu professor e diretor José Tonnezzi chamava nossa atenção para assumirmos o erro. Siga a cena e não tente encobri-lo. A empáfia de presumir que a plateia não viu o seu equívoco é a pior forma de ser ator. Comecei errado. Resta seguir na cena a partir disto e trair minhas expectativas sobre quem eu deveria ser. É no ridículo que se encontra a unidade antropológica, melhor não escamotear.
            Quando estava tomando o golpe, vendo o assalto das ruas ainda em Paris, redigia um dos vários fichamentos que aos poucos alimentavam relatórios, blogs e notas que poderiam ser incorporados à tese que ora redijo. Uma vez que eu estava olhando para o lado errado, resta seguir o movimento e assumir o erro. Eu não estava atento. Retomo o fichamento de onde havia parado. Lia Mille Plateaux. Tentava compreender melhor, ou ao menos intuir o que Deleuze e Guattari apelidam de Corpo sem Órgãos (CsO). No esforço de demonstrar o conceito de visageité/rostidade, a noção de CsO era obrigatória, não importando o quão irritante ela parece ser. Ao menos a mim ela irrita.
           
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            Começar do fim. Dizer que já acabou, que não há nada a fazer e, por isto dizer que tudo está por fazer e não importando o que for feito, havemos de ser indiferentes à trama. Dito de outra forma, eliminar a causa ou suspendê-la sem com isso interromper as relações de anterioridade. A causa está isolada de um certo tipo de desdobramento não vindo a ser promotora de mais nada aparecendo na forma da silhueta que se forma no apagar das luzes, o breve movimento antes do breu. O fim, desde o começo é só aquilo que se apresenta, é o mero evento com relação ao qual os demais eventos devem se ocupar, ocupando o espaço ao redor numa relação mais de cuidado e sustentação que de causalidade. Há quem chame isso de sincronicidade. Há quem chame isto de uma moda francesa inútil. Aceito ambas as versões dado que nenhuma delas fere o meu orgulho. Dele não me sobrou grande coisa e do que resta, deixo para usar com meu filho.
            A coincidência artificial e forçada do fim com o começo tem como finalidade sugerir a potência da conversão, provisória, do telos em meio, em milieu ou mesmo moyen d’analyse. Isto serve mesmo para o conceito, seja ele qual for, a ser apreciado em favor de seu movimento interno, e interno recompondo a forma redundante do movimento do movimento próprios ao poema de e.e. cummings que reza HE DANSED HIS DID, uma variação da forma de dançar a questão, que é como a atividade oracular zande é definida por Edward Evans-Pritchard. Reconheço que nada disso diz muita coisa e que mesmo parece travar a clareza que o pensamento exige para que possa demonstrar um raciocínio. A expressão “movimento do movimento” não é exatamente o meu melhor momento. Mas se a uso, faço como alguém que expõe suas vergonhas. E mesmo para um exercício ruim é preciso encontrar um meio para fazê-lo revolvendo os grãos com arado preparando o terreno, ou mesmo constituindo território – e que só será assim, território, se o movimento do movimento vier a se tornar movimento de algo reinstituindo a causa como elemento da trama; do trigo à massa, de Cícero à Elias Cannetti, o milieu plateau.

            Bateson appelle plateaux des régions d’identité continue qui sont constitués de telle manière qu’elles ne se laissent pas interrompre par une terminaison extérieure, par plus qu’elles ne se laissent aller vers un point culminant : ainsi certains processus sexuels, ou agressifs, dans la culture balinaise. Un plateau est un morceau d’immanence. Chaque CsO est fait de plateaux. Chaque CsO est lui-même un plateau, qui communique avec les autres plateaux sur le plan de consistance. C’est une composante de passage. »(Deleuze & Guattari, 1980 :196; edição Minuit)

            O CsO parece ser, de outra forma o corpo posto numa diagonal qualquer que lhe atravesse desrespeitando os circuitos organizados, ainda que pelas dobras que desrespeitem as distâncias ordinárias e mesmo seus meios de circulação. Assim, a ausência de órgãos implica um acidente da ordem, quero acreditar. Um acidente na organização que é, de outra forma a violação da integridade da discrição dos elementos e a composição de uma linha de fuga que desfaz a operação organizada que acaba por se perder em meio ao movimento bastardo – o movimento do movimento. E as fronteiras, os casos limite e membranas de definição são igualmente desfiguradas ao ponto de assumirem um novo rosto, ou mesmo um novo segredo, a depender dos poderes de organização presentes nos órgãos atravessados. E então percebe-se, ou melhor, percebo que o que resta a fazer é pôr e tirar as coisas de lugar. E é assim que quero ler os teoremas de desterritorialização  que seguem do capítulo sobre o CsO. Começar do meio, a partir daquilo que resta, uma forma de começar pelo fim ou deixar falarem as ruínas.

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Tabuleiro de Go
    
... foi então que eu sugeri a Ricardo Lísias, escritor e enxadrista, que assistimos a tudo numa enorme dificuldade de articulação. Os comentários referem-se a um jogo de xadrez enquanto as peças se movem à forma do go deixando claro haver uma pobreza fundamental de nosso vocabulário político. Uma vez que o segundo jogo não é tão popular quanto o primeiro, convém dar vazão à diferença. Permitam-me recorrer mais uma vez ao Mil Platôs, não por considera-lo a síntese autorizada da filosofia futura, mas simplesmente por ser aquilo com o que me ocupava até então. A citação é longa. Paciência.

            Seria preciso tomar um exemplo limitado, comparar a máquina de guerra ao aparelho do Estado segundo a teoria dos jogos. Sejam o Xadrez e o Go, do ponto de vista das peças, das relações entre as peças e o espaço concernido. O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior e propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada um é como um sujeito do enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de interioridade do jogo. Os peões do go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: “Ele” avança, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os peões do go são elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso são relações são muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são estruturais. Um peão de go, ao contrário, tem apenas o meio de exterioridade, ou relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha funções de inserção ou de situação como margear, cercar, arrebentar. Sozinho, um peão de go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma peça de xadrez não pode (ou só pode fazê-lo diacronicamente). O xadrez é efetivamente uma guerra, porém uma guerra institucionalizada, regrada, codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas. O próprio do go, ao contrário, é uma guerra sem linha de combate, sem afrontamento e retaguarda, no limite sem batalha: pura estratégia, enquanto o xadrez é uma semiologia. Enfim, não é em absoluto o mesmo espaço: no caso do xadrez, trata-se de distribuir-se em um espaço fechado, portanto, de ir de um ponto a outro, ocupar o máximo de casa com um mínimo de peças. No go, trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. Espaço “liso” do go contra espaço “estriado” do xadrez. Nomos do go contra o Estado do xadrez, nomos contra polis. É que o xadrez codifica e descodifica o espaço, enquanto o go procede de modo inteiramente diferente, territorializa-o e desterritorializa (fazer do fora um território no espaço, consolidar esse território mediante a construção de um segundo território adjacente, desterritorializar o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritorializar-se a si mesmo renunciando, indo a outra parte...). Uma outra justiça, um outro movimento, ou outro espaço-tempo.” (Deleuze & Guattari, 1997:14 do vol. 05 da edição brasileira, editora 34; trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa)

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            Conversar com os líderes do movimento, disse Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro. Receber a manifestação na Av. Presidente Vargas com a cavalaria como procedimento padrão, disse José Maria Beltrame, secretário responsável pela pasta da Segurança Pública no estado do Rio de Janeiro durante o governo de Sérgio Cabral. Parecia uma micareta, com um bando de gente que não sabia o que estava fazendo na rua, me disseram alguns dos mais próximos e queridos, como minha irmã que esteve no ato de Campinas dois dias atrás. Gente de todos os tipos saindo por todos os lados interrompendo o trânsito. E é daí que convém começar. Do meio. De locomoção. Foi o que fez o Movimento Passe Livre. Talvez eu tenha sorte semelhante.
            A cobertura das cenas de confronto em Niterói-RJ na última quarta-feira é significativa. Ainda que houvesse um verdadeiro massacre movido a bombas de gás lacrimogênio, cavalos, viaturas e balas de borracha, a cobertura jornalística da Rede Globo de Televisão se ocupava fundamentalmente com o trânsito. Um movimento de parar o trânsito, as ancas da desinibida do Grajaú que, todavia se move. A cada forma de ocupação do espaço, como a que tomou a rodovia Castelo Branco desde Carapicuíba e que impediu a circulação de automóveis até o aeroporto de Cumbica, a repetição de um diagnóstico. Interrupção do trânsito, engarrafamentos, paralisação. O movimento era responsável pela paralisação. Cabe deixar então o movimento falar. No caso, o Movimento Passe Livre, que ao responder a um coronel da Polícia Militar sobre a justiça de ocupar uma via pública importante como a Av. Paulista, ouviu como resposta o óbvio. Se em uma cidade como São Paulo a interrupção de uma só via é suficiente para travar o trânsito, algo está errado. Muito errado. O coronel jamais respondeu a esta questão. E não respondeu a nenhuma outra, como tampouco qualquer jornalista que se recusa a ver o imediatamente óbvio das imagens em que milhares de pessoas ocupam as ruas, avenidas e rodovias interditando a passagem dos carros. Não há paralisação. Há movimento, ainda que não o previsto pelo sistema logístico. As pessoas em manifestação caminham pelas vias provando que não há interrupção do tráfego, mas a ocupação de uma outra lógica de deslocamento. Cortando na diagonal a organização, emergem de todos os lados como uma forma de redução efêmera ao óbvio que o comentário já não pode mais dar conta. Procura a hierarquia no movimento do movimento, ordem naquilo que atravessa a rua em grande parte inconsequente. Procura unidade a partir das palavras de ordem, lideranças e pesquisas de opinião que só fazem proliferar a confusão em que se cai ao ouvir a massa uma pessoa por vez. Contudo, as imagens não mentem. É o mero exercício quantitativo da cidadania banal caminhando e fazendo barulho. Sugestivamente é chocante que tenha ocorrido. Em razão do choque, Tropa de Choque.
           

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            O movimento não começou sexy e envolvente. Ele começou fascista. Ao menos foi definido assim por dois dos comentaristas mais apressados que dispomos em nosso território. Marco Antonio Villa, com quem tive aulas extensas sobre novelas mexicanas quando a ementa descrevia um curso sobre história europeia moderna e contemporânea, e Arnaldo Jabor cravaram os motivos da organização. Baderna, destruição e danos ao bem-público que, de fato, é muito-pouco-público. Seguramente fruto de uma articulação perversa que nas palavras ressentidas do próprio Jabor se transformaram numa semente de um novo futuro. O movimento tinha uma unidade definida pelo movimento que, logo mais, não tinha mais pois era um agrupamento muito maior. E a totalidade do movimento escapou da coordenação porque movia-se na diagonal do sistema logístico. Todos os que avançaram contra o movimento fizeram por bem recuar. Todos, menos a Polícia Militar, quem por fim conferiu ao movimento sua unidade definitiva e, por outro lado indica que o movimento não é coisa de agora, o que implica em acusar amigos, colegas e outros escribas de terem cometido um erro de edição.
            Conversava com minha mãe a respeito dos último acontecimentos, da tomada das ruas, dos quebra-quebras. Minha mãe disse temer que houvesse uma escalada da violência, que tinha medo que o Brasil perdesse o rumo e que muita gente viesse a se machucar ou coisa pior. Minha mãe me disse, desde lá da Cidade do México, que teme que a coisa descambe pela violência desmesurada. Daí eu perguntei para ela quando é que a coisa foi diferente, quando é que fomos governados de outra forma, quando é que fomos coisa diferente. O silêncio do outro lado da linha foi didático para nós dois. De outra forma, não é agora que as pessoas circulam com muita dificuldade. É sempre. A paralisação da Ponte Rio Niterói só deixa isto mais evidente. A história que estamos a contar não cabe no enquadramento dado, o roteiro não é suficiente para dar conta de suas próprias personagens. Quando o movimento é lido como o Movimento – no caso, MPL -, toma-se a parte pelo todo produzindo uma sinédoque que não encontra eixo, que não participa da trama e que não acaba em samba que, aliás, entende muito mais de ocupar as ruas do que qualquer dos palpiteiros emergentes na crise, eu incluído. O caso é que foi ao fazê-lo que a Polícia Militar nos obrigou à unidade. Em uma só semana exercitamos a nossa condição de cidadania em sua plenitude sem que a referida instituição saísse de sua atuação normal. Havia cavalaria para a defender a prefeitura do Rio de Janeiro da mesma forma que há em qualquer estádio de futebol em dia de clássico. Em tempos de exceção não fizemos outra coisa senão exercitar nossa cidadania de forma ordinária, o que inclui o fato de termos a reles circulação de pedestres cerceada e violentada da forma mais flagrante e, importante, normal. Esta talvez seja uma forma de começar o assunto desde o meio.