sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Who am I, Jackie Chan?



ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.

1-
            What worries me is that the arguments exposed by this “anthropological chorus” (now joined by a chorus of historians) are not as clear as they might be. Thus, when Sahlins protests that local peoples are not “passive objects of their own history”, it should be evident that this is not equivalent to claiming that they are its “authors”. The sense of author is ambiguous as between the person who produces a narrative and the person who authorizes particular powers, including the right to produce certain kinds of narrative. The two are clearly connected, but there is an obvious sense in which the author a biography is different from the author of the life that is its object – even if it is true that as an individual (as an “active subject”) , that person is not entirely the author of his own life. Indeed, since everyone is in some degree or other an object for other people, as well as an object of others’ narratives, no one is ever entirely the author of her life. People are never only active agents and subjects in their own history. The interesting question in each case is: In what degree, and in what way, are they agents or patients?”(1993:04)

            Eu não sou muito paciente, o que de forma alguma responde à questão de Asad – até porquê não sê-lo por predileção não implica que não tenha que exercitar a mesma paciência que não considero como constituinte de meus impulsos mais característicos. O exercício da paciência se desdobra da desconfiança que nutro de quaisquer debates realizados em termos demasiado marcados e estabelecidos. Vem a sensação de que alguma coisa não foi dita e que, mais do que qualquer outra coisa, algum mal entendido foi posto de lado. O tamanho deste mal entendido me parece ser sempre proporcional à eminência parda que estabelece os termos do debate. Muito do que Talal Asad escreve em seu Genealogies of Religion , livro que considero muito bem-vindo ainda que tenha chegado muito antes de mim à cena antropológica, tem como alvo uma certa dimensão do empreendimento da disciplina. Nada estreita, esta dimensão que lhe serve de alvo é nada menos do que o mundo – não confundir com o planeta, assim como “todo mundo” não é sinônimo de “toda a população humana”, nem por força do hábito. Seja tomado como ordem capitalista mundial, sistema da modernidade-mundo, ecossistema ou ministério da Providência o mundo é o que há, o que é problemático desde que seja apontado, como se faz em uma etnografia, alguém lá fazendo aquilo. Ao considerar o divórcio deste com o outro mundo, seja ele qual for, é o corpo animado da apreensão dos dados dos sentidos a base que acolhe as diversas manifestações da sociologia como manifestação de uma noção de ordem suficiente – ainda que frequentemente imaginada como algo diferente de uma ordem necessária, recusa de onde se desdobram algumas dimensões da dialética, especialmente a parcela da imaginação revolucionária precipitada no século XIX europeu na qual tudo parecia passivo de ser melhorado, especialmente a natureza, com ênfase na natureza humana perféctil. No mundo seguramente , e tentado por ele ou de outra forma, intuído a partir da experiência que permite que se trabalhe com um denominador comum. Comum? Asad diz que não.
            O livro parte de uma acusação que recai nas costas de Clifford Geertz, demasiado liberal e, portanto, profundamente protestante (na verdade, moderno) no seu esforço de compreensão dos conceitos de “religião”, simbolismo, cultura e mesmo cérebro e evolução humanos. Dito de outra forma ele soa algo kantiano para um programa pragmático de pesquisa – programa Asad endossa sem fazer alarde. A crítica que ainda não apresentei, vai nesta direção e, ainda que pense não ser descabida, desconfio. E desconfio por não estar certo sobre o que está em jogo e porque é preciso ir além compreendendo o que é que Asad pretende elucidar, quais eram os objetivos de Geertz visando aprender com o debate (na verdade, a acusação) algo mais do que a ladainha lastimável a respeito dos autores superados, frequentemente convertidos à condição selvagem de idiotas.

            Desde a introdução Asad pergunta quem é o agente da ação. Ora, se pensarmos na mesma matriz kantiana que dá forma a uma teoria da ação social, quem age é sempre o sujeito compreendido pela predicação que reconhece e determinar o evento em questão, os modos de ação e de causalidade. É por questões metodológicas que Max Weber recusaria a filosofia à moda de Tabacaria de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos que, no silêncio das maquinações de um cérebro solipsista ousou pensar filosofias que nenhum Kant ousara[1]. Se não opera como forma socialmente orientada da comunicação – isto é, orientada pela organização social do trabalho e suas formas políticas -, a intimidade da convicção não interessa. Não à sociologia que visa conhecer o conhecimento, mesmo aquele que reside no que é socialmente implícito.
            Ao mesmo tempo, esta mesma sociologia está atrelada à soberania do calvinismo que soube contestar a eucaristia traduzindo o sacramento, não mais por via da transubstancialização mas pela forma simbólica da boa ficção de articulação abstrata. É como se fosse o corpo de Cristo, então, sem sê-lo todavia. Chegamos ao simbólico que constrói também o tipo de reduto que, radicalizado à insignificância do sentido, vai ser chamado de prison house of language por Fredric Jameson ou, ainda mais dramático e poderoso, como gaiola de ferro por Max Weber. A linguagem é então o que comunica, antes de mais nada a condição humana ao comunicar, antes de mais nada a humanidade cuja constituição trágica (ou absurda, via Camus; O mito de Sísifo) faz com que nos desinteressemos pela hipótese de um caranguejo resolver equações  de segundo grau (Miguel de Unamuno; O sentimento trágico da vida). O inexprimível e o caranguejo seriam algo equivalentes. Animália et idiotia.
            A noção de agência contraposta à de ação permite, na verdade, demanda que se faça uma relação com o que não se compreende imediatamente como simbólico de forma a reconhecer que das ações humanas o autor da mesma em sua dimensão ulterior – o mundo – pode não ser humano. O agente do ator pode não ser ele, ou não exatamente dissociando, de um ponto de vista que escapa do normativo à forma de uma disjunção potencial. É esta mesma que permite o tipo de investigação de Ian Hacking sobre personalidades múltiplas, o que em sua análise pode ser uma coletânea de várias pessoas que são menos do que uma, cada uma. Ser menos do que um inteiro pode ser o suficiente para produzir agência (Rewriting the soul).
            A tensão aumenta quando o que está em questão é o que, ou quem está lá. “Lá”, naquele local retoma os termos de Geertz, a saber, sobre o conhecimento local (local knowledge) – o que retoma, à primeira vista, a matriz kantiana na qual o exercício crítico que circunscreve sua investigação à esfera da predicação é também um exercício relativo à elaboração de uma teoria do conhecimento que promove hermenêutica de segundo grau (Hans Ulrich-Gumbrecht; A modernização dos sentidos). Esta premissa é questionada nos termos da abertura fornecida pelo programa de pesquisa investido de agência. Mas a noção de “local” permite que se possa compreender melhor a diferença de projetos e a diferença que a diferença produz com relação à tensão entre Asad e Geertz. Isto porque “conhecimento sobre povos locais não é ele mesmo o conhecimento local” (Asad, 1993:09). Ao mesmo tempo é de Geertz a afirmação de que o objetivo da pesquisa de campo não é estudar a aldeia mas estudar na aldeia (frase redigida em ensaio publicado no intervalo de tempo entre os livros The interpretation of cultures e Available light que, lamentavelmente, esqueci qual). Esta disjunção me leva a perguntar sobre quem é esta personagem que Asad monta e até qual ponto ela tem identidade com Geertz em primeira pessoa, autor de seu próprio texto.
           


[1] “(...)Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.(...)

terça-feira, 30 de julho de 2013

Parêntese diabólico: langue et parole


BACHELARD,  Gaston. O pluralismo coerente da química moderna. Rio de Janeiro. Contraponto. 2009 [1973].
DASTON,  Lorraine & GALISON,  Peter. Objectivity. Nova York. 2007.
MANIGLIER,  Patrice.  La vie énigmatique des signes: Saussure et la naissance du structuralisme. Non & Non, Éditions Léo Scheer. Paris. 2006.

3-        Porque falar é fácil. Difícil é saber do que se está falando. 



            On voit que la célèbre thèse selon laquelle ce n’est pas l’objet qui détermine le point de vue, mais le point de vue qui détermine l’objet ne doit pas être comprise comme axiome épistémologique général, mais comme une thèse déduite de la nature de l’objet linguistique lui-même, plus précisément du fait que l’entité linguistique ne saurait exister en dehors d’un acte de l’esprit. »  (Maniglier, 2006 :64)

            O capítulo de onde saco esta citação chama-se “la langue satanique” e nos leva para a primeira reflexão sobre a diabolia de Reichler, ainda que este seja uma nota de rodapé, um parêntese na reflexão, sobre não somente a afirmação da diabolia como possibilidade mas de como é possível que algo como o que sugere o mesmo Reichler seja factível para além de uma investigação detida sobre a renardie. Manigliertem como objetivo de seu livro definir quais termos são articulados pela persona editorial de Saussure e como esta persona – algo semelhante à figuração da ordem editorial mística de São João da Cruz e seu editor-discípulo, Diego de Jesus – determina o fato linguístico. E por se tratar da determinação do que seria o fato linguístico, trata-se de ontologia, a saber, de uma língua que seja só-linguagem. Esta é a orientação metodológica de um Ferdinand de Saussure que recusa a imediaticidade do indivíduo linguístico como se partícipe da história natural de onde se depreende a relação implicada da zoologia com a filologia – havendo, obviamente, o filo como uma das escalas da especificação (reino, classe, filo, espécie). O outro problema está, ao recusar qualquer dimensão da filogenia do organismo na expressão do sentido, no fato linguístico se precipita em sua forma sincrônica. O sentido se dá na consciência daquele que fala, cuja arquitetônica prescinde da história permanente da instituição, algo transcendente, vindo a ser então só-atualização – e é neste ponto em que a linguagem seja só-linguagem, podendo ser abstraída de quem fala sem que o que fora dito seja determinante, permitindo ao linguista utilizar a mesma linguagem para sua atividade científica. E então, um tropeço fortuito. Porque o objeto da linguística não estando desde já, lá, é lá que ele deve-estar.

            D’autant que la linguistique non seulement ne saurait finir par trouver un objet donné, mis ne trouve même le « point de départ » dans aucune réalité donnée. Par là elle perd tout caractère expérimental. Les sciences expérimentales supposent non seulement comme horizon la séparation du donné et du construit, mais aussi un donné qui, aussi mal découpé soit-il, n’en est pas moins donné en dehors de toute opération d e l’esprit. Le biologiste utilise un tissu donné, pour mettre en évidence, par de procédés de coloration ou d’électrification, une cellule ; le chimiste par d’une substance donnée, pour l’analyser et faire apparaître s nature chimique. Quelle est la substance du linguiste? » (Maniglier, 2006 :66)

            Se o estruturalismo é uma forma de problematização, como Maniglier sugere com razão, então ele mesmo se esquece da história e de algumas das questões postas por este mesmo estruturalismo que não é um método, não é uma escola, mas uma postura epistemológica. No caso, as fontes da reflexão sobre a objetividade científica que define o caráter estrutural dos objetos a serem investigados por via da correlação dos termos que oferecem seu conjunto como agremiação estabelecendo, assim sua determinação. Dos capítulos do estruturalismo que Maniglier negligencia, e que merecem atenção por estarem muito bem sumariados em História do Estruturalismo de François Dosse, presente em sua bibliografia, o mais marcante é a ausência de Bachelard cujo livro O pluralismo coerente da química moderna define com notada clareza os elementos constituintes de um racionalismo aplicado, em muito desdobrado da longa tradição da versão cartesiana da astronomia. É ela quem se dedica ao problema dos corpos celestes que, de acordo com a mecânica geral das órbitas, sugere que eles devem estar lá, num determinado momento, em uma determinada posição infinitesimalmente distante, invisíveis a uma investigação telescópica. Assim, são objetos que começam a ser oferecidos ao discurso segundo uma concepção estrutural de objetividade posteriormente sintetizada na noção fregeana de begriffschrift (“escritura de conceitos”) em que o pensamento em sua expressão deve ser incluído na circunscrição do objeto como problema constituinte.

            Meant to guarantee the communicability and therefore the objectivity of arithmetic and logic, the begriffshrift itself  proved opaque. Frege nonetheless insisted on the scientific utility of his symbols, which he saw as the partial realization of Leibniz’s dream of characteristic universalis and as potentially extendable to other sciences, such as mechanics and physics. The begriffschrift would be a tool of structural objectivity, a shield to protect logic and arithmetic from both the psychological and the psychologists – at one point, he feared psychology would swallow up all sciences.” (Daston & Galison, 2007:271)

            Não basta estar lá para ser alvo de uma investigação que, ainda que experimental, demanda clareza de expressão, premissa  tanto epistemológica quanto sociológica na medida em que boa parte do esforço de redação científica moderna é uma grande epistolografia entre desconhecidos a respeito de um assunto comum, tema a ser estabelecido na mesma medida que independente daquele que disserta a seu respeito em um determinado momento. Unidade de medida, instrumentos de laboratório e descrição de substâncias em sua invisibilidade leva à elaboração de um código, uma caracterologia universal que define cada objeto em sua generalidade, numa formulação mais geométrica que empírica (Daston & Galison, op.cit.). E na química este mesmo movimento, composto elo arco narrativo sobre os elementos químicos, de Lavoisier (ao redor da Revolução Francesa) até Mendeleiev está devidamente marcado. Não surpreendente, o ato de identificação do objeto, ao contrário do que sugere Maniglier, não é o dado apreensível, ou da investigação empírica imediata.

            Já não se trata de uma experiência sempre focalizada no indivíduo ou na espécie, mas sim no gênero. Isso vai determinar uma renovação nominalista que fará da nomenclatura química um verdadeiro método de conhecimento. Nomear servirá mais para conhecer do que para reconhecer, e a própria classificação das substâncias elementares se mostrará movida por um pensamento ativo que designa um lugar regular para um objeto antes de encontrar esse objeto.”(Bachelard, 2009 [1973]):23)

            Agruras do infinitesimalmente grande, do infinitesimalmente pequeno e do humanamente instável. Saussure está longe de oferecer, como parece afirmar Maniglier, um percurso afastado das ciências experimentais dado que um e outro, segundo aquilo que ele mesmo oferece como traço distintivo, travam uma batalha feroz para determinar o objeto que deveria estar-lá.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

La faiblesse de croire: la diabolie


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.


2-
            No limite, são dois reinos: o do símbolo[1] e o do signo. O símbolo, desde um certo aporte semiológico, é de estrutura binária em que constam o simbolizando e o simbolizado cuja articulação repete o procedimento da metáfora sem ser circunscrita em seu domínio dado que a simbolização pode, e mesmo deve ir além da analogia vaga. Ela deve dizer a coisa. O signo, por sua vez, é de estrutura ternária compreendendo significante, significado e referente, os três postos em relação em seu assujeitamento às relações de significação e designação/denotação. Em cada um dos reinos as relações constantes determinam o que Reichler define, a partir da semiótica de Lotman, uma modelização semiótica que vem a configurar em um segundo momento – lógico, não cronológico – a norma que estabelece em que se reconhece uma relação e, mais uma relação válida tendo em vista a expressão do código em movimento. Aí surge a ambivalência, interna ao movimento semiótico que é o da cultura em sua particularidade, entre a lisura e a sedução, a retidão e a falácia. Tanto a norma quanto o desvio são, todavia, forças, dinâmicas profundas de articulação de sentido. São fundamentalmente movimento, sem serem movimento puro. São ordens diferenciadas desde a fonte e que se diferenciam – em si e entre si – diferentemente. E nesta diferença é aonde pode trafegar o diabólico.

            “Por oposição a uma relação concebida como íntima e totalizante, segundo o sentido etimológico rigoroso do symbolon, a operação “diabólica” consiste antes de qualquer coisa em separar isso que deve ser reunido e, correlativamente exaltar a capacidade significante ela mesma, sem se reportar à sua virtude transitiva. Mas tal diabolia, se exercida a cada vez que uma modelização semiótica pretende limitar suas possibilidades da linguagem e atrelar (cheviller) assim o regime dos sentidos a uma ideologia, não se exerce então sempre da mesma maneira. Ela constitui desde a Idade Média aos nossos dias, quero dizer, ao longo do desenvolvimento da língua e da literatura francesas, a história de uma forma de linguagem dotada de um dinamismo prodigioso.”(Reichler, 1979:12)

            Quando Reichler sugere a autonomia entre domínios, do simbólico e do signo, acaba por antecipar aquele que será o movimento do diabólico como movimento intensivo na ordem da ordem. E exatamente por intensificar certos movimentos sem respeitar os casos-limite que culmina como um domínio autônomo que faz criar, por sua vez, outras autonomias. Que se entenda. Os passos estão demasiado abstratos, parecendo que tudo pode ser dito. É preciso algo mais próximo ao solo, é preciso produzir algum atrito. Infelizmente esta não é uma prerrogativa do exercício diabólico, cujo exercício preferido parece ser brincar com a autonomia da autonomia e sugerir solo somente aonde não se pisa.
            O semiólogo do diabolismo parte de um sistema de oposições que ele define ser propriedade da modernidade clássica – em grande parte oriunda das reflexões de Blaise Pascal mas que trazem consigo forte orientação da caracterização de Michel Foucault em Les mots et les choses, como o próprio vocabulário utlizado denuncia. Esta oposição deve oferecer a tensão constituinte entre o que é propriamente a) simbólico e o que é propriamente b)diabólico. De um ponto de vista semiológico, claro.


a) SIGNO -------------------------------> COISA
   (som, grafia)

b) SIGNIFICANTE --------------------> SIGNIFICADO/REFERENTE

            O signo como tal, ao contrário do significante não porta qualquer agência implícita. Ele é a relação com a coisa, é a forma de presença por via da relação distanciada. O implícito da relação é a coisa, como na Res Pública. No caso do significante, seu aspecto fundamental é o caráter classificatório da linguagem, sobretudo com relação a ela mesma fundando uma episteme positiva que inclui o referente num quadro de ordem que é antes classificatório do que revelado. Assim, a relação entre signo e coisa opera numa razão cuja suficiência é denunciada pela conversação diabólica na qual as promessas de Don Juan – um dos casos estudados de Reichler – são palavras e tão somente palavras. Seu sentido se elucida na convocação de outras palavras para deporem. Pas de mots ET choses, mas de mots sur mots. As palavras não tem, no jogo implícito da sedução qualquer caráter hierárquico como se encontra em uma prece e tampouco carrega consigo o peso dos nomes que não podem ser ditos.  Ao mesmo tempo em que o vigor libertino das relações de sentido é exponencialmente incrementado, é o pendor classificatório, o código como movimentação de peças  que impera estabelecendo em seu seio o lugar e, assim, a diferença entre as coisas. O que distingue é o que reúne. Mas em contraste com o que oferece o simbólico esta orientação impacta por fazer circular uma falsa promessa porque mesmo no que diz respeito às palavras que fazem viger o código, mesmo elas, são só palavras o que é o mesmo que dizer que a palavra é só uma coisa. Mas caso eu dissesse algo assim eu seria propriamente diabólico.
            Assim, é possível compreender melhor a enorme distância entre o princípio do livre arbítrio no qual jaz a liberdade humana no seio da criação e da determinação do símbolo, cuja fonte é hierofânica, e a noção de arbitrariedade do signo cuja aproximação ao sentido se dá pela oposição com outro signo, num sistema de gravitação autônomo e não-determinado. Neste caso Saussure, que é o agente secreto, sequer utiliza o termo “símbolo” dado que o que é alvo e fundamento de seu modelo é um sistema de oposições cuja correlação é arbitrária, isto é, não-necessária fazendo do mero recurso da linguagem a vigência do Reino Deste Mundo, cujo príncipe bem sabemos quem seria. Daqui se compreende também a relação entre Roland Barthes e seu cartel de hereges, e ele mesmo um herege do contrato linguístico.



[1] Le symbole est essentialement pouvoir de réunir, et l’on se s’étonnera pas que les religions se soient toujours appuyés sur sa puissance, tout en la suspectant. »(Reichler, 1979 :11)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

La faiblesse de croire : la diabolie


DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.
1983.
REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.

1-
            Estão, desde então e desde sempre sob suspeita. Esta é a lição de Ernst Troeltsch a respeito dos místicos e daqueles que se reúnem ao seu redor. Ruim com eles, pior sem eles e a dimensão extática faz de seus eleitos a forma sensível da fé. E a forma sensível, o contato imediato é igualmente a fonte das tentações mais graves, especialmente quando o tema da natureza caída estrutura a ordem. O mundo e o Céu, o mesmo destilado sempre com mesma letra maiúscula que encontramos em Don Juan de Molière. Isto porque o hiato entre a ordem cósmica e a ordem política que guarda os segredos do outro mundo nem sempre estão em acordo e, para além disso a relação entre um extremo e outro delineia aquilo que é o próprio espaço da querela eclesiológica. A extensão e a forma da ordem no que tange a definição do domínio. Não à toa, e especialmente no alvorecer da modernidade clássica a tensão entre potestas e autoritas ofereceu e ainda oferece desafios nada insignificantes no que tange a justificação da ordem, sua elaboração discursiva e a instituição do domínio. Aquele que vive o poder na pele sem ser o poder ele mesmo é, assim, um desafio para a divulgação das boas novas, quando são de fato algo otimistas.
            Assim, o que fazer com o relato místico, com as experiências de contato direto com os mirabilia, com tudo aquilo que desafia a mera classificação desafiando a dignidade fundamental que impotente não consegue fazer nada senão evidenciar a sua pequenez diante a linguagem adâmica falida desde a Queda? Nem tanto esta questão, a do quê fazer, mas descrever como fazer. Ou melhor, descrever como em determinados casos a Igreja, pela agência que lhe é peculiar em momentos determinados resolveu uma certa gama desses eventos,  é aquilo que serve de base para as investigações primeiras de Michel de Certeau, particularmente ao redor do estabelecimento dos escritos de Jean-Joseph Surin - exorcista de formação jesuíta e o principal investigador do caso da possessão das irmãs ursulinas em Loudun, entre 1630-1636. França. Ele mesmo sendo um intelectual da igreja, igualmente jesuíta redige mais adiante um trabalho de fôlego sobre exatamente a determinação filológica e teológica de obras místicas que resolvem no livro La Fable Mystique, I – XVIe-V+XVIIe siècle. Neste livro em questão, além de descrever em detalhes como se deu a circulação dos escritos místicos de Surin, Certeau assume o risco de olhar-se no espelho e ver-se na escrita mística que é auxiliada por uma outra, secular e dedicada a transmitir sem iludir cujo teatro é encenado principalmente pela relação entre Diego de Jésus e São João da Cruz. Exercício de depuração e ordenamento sem fazer pleno sentido, sem abrir mão do inefável, do inexprimível. Não é o mesmo de determinar bulas, atas e manuais de direito canônico. Isto porque há algo que deve ser deixado de lado ou que é de qualquer forma delicado, fugidio porque ausente deste mundo. O texto a ser estabelecido não deve fazer as vezes de texto sagrado. Além disso, traz consigo a ordem, o procedimento que define que o místico em questão não fora ele mesmo, iludido. No que mais importa o texto se esvazia. E é sobre este vazio, no terreno em que há muita margem de manobra que o diabólico toma lugar.
           
            “Le lecteur, séduit par ce « rien », deviendra-t-il fou à son tour, ou bien, retourné chez lui, cherchera-t-il, s’il peut, à oublier ce qui lui est retiré ? De n’être jamais où on pourrait dire, la folle a falsifié le contrat que l’institution garantit et qui protège contre le « vertige » de ne pas savoir « à quoi m’en tenir sur le désir de l’autre, sur ce que je suis pour lui ». Finalement, aucun contrat, fût-ce le premier et dernier de tous, celui du langage, n’est pas par elle honoré. En répétant nos mots et nos histoires, elle y insinue leur mensonge. Peut-être, tandis que le sym-bolos est fiction productrice d’union, est-elle dia-bolos, dissuasion du symbolique par l’innommable de cette chose. » (Certeau, 1982 :58)

            Peculiarmente o trecho que cito acima não faz remissão a qualquer coleção de textos místicos. As citações acima são trechos de dois livros. O livro de Claude Reichler, La Diabolie, e a autobiografia de Roland Barthes, ambos semiólogos. Ainda bem. E com “ainda bem” não pretendo exprimir nenhum juízo em favor de Roland Barthes. Nem desfavorável. Muito pelo contrário. De fato não há nada que eu pretenda, ao menos não em demasia. Este é um ensaio no qual muito pouco, ou mesmo quase nada tende a acontecer. Por vezes demasiado lento, e em outros momentos acelerado aos saltos, pretende simplesmente sugerir notas de um exercício para o qual não estou e não pretendo estar à altura. É fruto da inventiva de assinalar alguns elementos para uma análise propriamente diabólica. Pelo visto, este não será um exercício solitário ainda que a companhia seja algo custosa.
            Quando ainda em Paris, com a curiosidade atiçada pelo título do volume redigido por Reichler, encomendei-o com vistas em tomar notas. Tomar conhecimento de sua existência por via do livro de Michel de Certeau, no entanto, traz uma pequena dificuldade. Isto porque segundo a investigação do jesuíta preferido de nove entre dez estruturalistas franceses – há quem prefira Matteo Ricci,  e mesmo António Vieira, é verdade – o discurso diabólico é uma espécie de discurso limite ainda mais perigoso que o idiota. Porque o apelo direto aos sentidos e a sedução extática são armas, antes de mais nada, do Príncipe deste Mundo – lembrando o título do pequeno livro de Raïssa Maritain. Sendo assim, o êxtase da relação imediata com o transcendente, com as forças maiores que a humanidade são perigosas exatamente por não trazerem clareza quanto aos signos de sua fonte. A imaginação e os dados imediatos, dois diabos que o cartesianismo se esmerou em exorcizar – o que em nada tem a ver com exterminar, mais uma vez muito pelo contrário.
            O livro de Reichler, contudo, está preocupado com coisa bastante diferente. Está atento ao discurso sedutor, falacioso mas não como caso limite. Somente como caso. Entre a lisura e a retidão, por um lado, e a sedução da falácia de outro, eis o que se mostra como tarefa do estudo:

            “(...) on tentera de décrire l’opposition de ces deux modes du dire comme étant celle de deux imaginaires investis par les sujets parlants dans le langage, qu’une ambivalence constitutive de celui-ci sécrète. » (1979 :10)
Paul Cézanne; Nature Morte. 

            Se o cenário de Michel de Certeau se aproxima da dimensão geopolítica da secularização e da formação do território que faz do místico o estrangeiro na modernidade, exatamente como o louco e o selvagem[1], Reichler afirma a autonomia da imaginação sedutora. Não como uma forma de cidadania, vale dizer, mas como uma postura que qualquer norma de linguagem, ainda que venha a exorcizar, não elimina. E sim, estamos falando de um tratado de semiótica. É a linguagem sobre a moral, e não a moral ela mesma que interessará ao diabólico – e assim se mostrará o quão difícil, se mesmo meramente possível, é falar do diabólico sem carregar desde então as suas marcas. Uma delas é exatamente o de carregar a linguagem consigo como se meramente linguagem fosse.



[1] Vale lembrar que Marcel Gauchet é altamente refratário à tese foucaultiana que delineia de forma mais enfática a equivalência sugerida entre loucos e estrangeiros. Ao contrário, é dele a tese de que o sistema manicomial é, à sua forma, o reconhecimento de cidadania deste tipo de cidadão pouco razoável. O caso é que é de Gauchet mesmo a forma de definição da cristandade como desenvolvimento progressivo de instituições de saídas da religião, fazendo de Deus o maior de todos os estrangeiros, tal como expresso tanto em Le desenchantement du monde  como em La condition politique. Se a relação entre louco e estrangeiro lhe soa arbitrária, as razões do religioso ser alguém em proximidade com o estrangeiro radical, não. Ao mesmo tempos ele reconhece as aporias da religião, e de como o enunciado religioso sofre para fazer sentido diante das instituições modernas. Restaria então, no seu caso, resolver a estranha facilidade em excluirmos da mesma fronteira, loucos, místicos e selvagens.