Tenho um amigo. É verdade. Não é um grande amigo, pois essa é uma das coisas em que o grau não interfere. É-se amigo, ou não. A disposição é plena. Enfim, não aceito teses e listas dos melhores amigos; sobre melhores amigos; coisa que o valha. Antônio Marcos Pereira é meu amigo e, pelo visto, anda procurando a si-mesmo. Não sei bem o que é isto, mas parece que é o que ele anda fazendo. Tanto preparando uma aula quanto lendo Flaubert, não me parece fazer outra coisa, e gostaria de dizer algo sobre isto. Primeiro, que li
O Enteado por sua causa; por sua causa e em causa de meu outro amigo Adevogado. Segundo, que entendo essa história de
manquer toi-même como algo completamente diferente que
manquer moi-même. E em terceiro lugar, que não me movo de mim
because I ain´t no Peter Pan.
Meu amigo é muito bem provido de prosa. E fez um exercício bacana de hipnose em que procura se induzir, sair de si à francesa, como diz o próprio título de algo que ele escreveu. Diz quem “
você é” em relação ao ofício que ele mesmo – você, meu caro AMPereira – produz. Veja só que engraçado. Basta mudar o pronome, mover os períodos em seu favor para que a prosa assuma ares de hipnose. Meu amigo é muito bem provido de prosa. Ele gosta de
Oulipo. Ele faz voleios com Perec na cabeça e, não por acaso, é um homem que dorme. E por isso, fortemente deslocado. Deslocado? Leia você mesmo.
“
É um momento de pequeno horror, você sabe que as frases não são suas, mas você não sabe de quem são, e afinal você também duvida, pode ser que sejam suas mesmo, um artifício de combinatória qualquer que você ignora e, de repente, elas saltam aos olhos porque fazem sentido, porque lhe dizem que tudo que você pensa é usado e de segunda mão, tudo que você vive é mais ou menos caótico, mais ou menos obscuro – e, no entanto, digamos, tudo bem, lá vai você escrevendo a vida de um Autor que você admira e, afinal de contas, de onde vem a admiração senão de um momento de clareza fugaz mas ainda vívido na memória no qual, ao ler, você percebe uma zona de obscuridade em si mesmo, descobre que sabia algo que efetivamente não sabe, mas não importa, pois naquele momento você não se envergonha, você não sabe e nisso, sim, você se dilui, igual a todos e capaz de se esquecer de si mesmo por esse momento que seja, pelo menos.”
Quero perguntar muitas coisas para responder logo em seguida. Isso porque as perguntas são retóricas e, mais, porque quero dizer algumas coisas para AMPereira, meu amigo. Quero perguntar se o pequeno horror serve como versão masturbatória da
petite mort francesa, que não deixa de ser uma forma de sair de si. Isso porque o conteúdo seminal da obra ainda lhe vem como pertencimento que qualquer teste de DNA repete como assombração. É esta zona que faz com que sair de si tenha como garantia que é possível voltar à morada que é, por fim, inescapável ainda que renegada. É por isso que seu ensaio é, antes que uma confissão, um show de hipnose solo; e é por isso que eu escrever “você” aqui é tão diferente de você ter escrito “você”, lá. Esta é uma epístola; aquilo é um exercício de espelhamento, com relógio do avô em pêndulo.
Seu ensaio, meu amigo, diz respeito a sair de si para fazer o exercício básico da biografia como atividade de pesquisa e, mais, de prosa. O ensaio de meu amigo é um parêntese em sua vida como biógrafo de Juan José Saer, escritor cheio de vozes e que, ainda assim, não me vem tão bem. Mas por isso mesmo, li.
Nadie, nada, nunca, em português, traduzido pelo mentor de outros tempos do meu amigo. Mas decidi seguir até o
entenado, também sugerido pelo meu amigo Adevogado, porque sou antropólogo, e os antropólogos gostam de ler coisas de gente sozinha com índios. Ainda que seja muito falsa a afirmação, e ainda que os antropólogos, em geral sejam lesmas preguiçosas com a atividade da leitura, li. E no exercício de ler
O Enteado, traduzido por José Feres Sabino, encontrei meu amigo AMPereira dando uma banda nos trópicos. Saca só:
“
Nunca se sabe quando se nasce: o parto é uma simples convenção. Muitos morrem sem terem nascido; outros nascem apenas, outros mal nascem, como abortados. Alguns, por nascimentos sucessivos, vão passando de vida em vida, e se a morte não viesse interrompê-los, seriam capazes de esgotar o ramalhete de mundos possíveis à força de nascer uma vez após outra, como se possuíssem uma reserva inesgotável de inocência e abandono. Enteado também, eu nascia sem saber, e, como menino que sai, ensangüentado e atônito, dessa noite escura que é o ventre de sua mãe, não podia fazer outra coisa que começar a chorar. Do outro lado das árvores, vinha-me, constante, o rumor das vozes rápidas e estridentes e o odor matricial desse rio desmesurado, até que por fim adormeci” (na edição da Iluminuras de 2002; pg. 41)
Adormeceu, AM? O exercício lhe permitiu pegar no sono? Porque, ainda que cansativo esta voga de encontrar zonas obscurecidas em si mesmo, e ainda mais, deixar-se diluir, e se deslocar como só a água faz por frestas no chão da vila onde residiam os poemas de Herberto Helder; ainda que cansativo, não costuma deixar ninguém dormir. Você conseguiu dormir, meu amigo? O sono lhe fez bem? Você se esqueceu de si mesmo? A hipnose aconteceu e esta seria a razão de ela lhe ser desejável?
Moveste-te de ti?
Encontrar com os índios, me parece, é exercício diferente. Não buscando a si mesmo, nem esquecendo de nada, ser enteado, ou seja, no seio alheio é, mais que tudo, ver o que não se pode esquecer. Há quem diga, e o nome de quem diz é pouco popular, que a diferença só é importante quando ou beira o insupotável, ou é insuperável. Como quando, por exemplo, vemos a carne de nossos amigos ser devorada, assada por uma tribo de velhos imberbes e jovens sedentos e, por alguma razão vemos nossa carne sendo poupada enquanto ouvimos
Def-ghi. Sua carne foi poupada, não, meu amigo? A minha, até então, foi.
E por alguma razão, no exercício do meu amigo,
esquecer de si é algo diferente de
esquecer de mim. É porque, e meu amigo sabe disso, não importando como, não é possível que eu me esqueça de mim, entendendo que qualquer um possa dizê-lo
("eu me esqueço de mim"); não sou eu falando, mas alguém que pode falar em nome de
"eu"
. Meu amigo, enquanto
eu se esqueceu
dele; deu um jeito de declarar que "eu me esqueci dele" - dele quem? - "eu". Daí a hipnose. Daí o deslocamento. Daí o sono induzido. E houve de acordar.
“
Todos estavam ali e eram, aparentemente, reais: os assadores tranqüilos e experientes, a multidão, a qual algo intenso e sem nome consumia por dentro como o fogo a lenha, e , envolvendo-os, embaixo, em cima, em torno, a terra arenosa, as árvores que nenhuma brisa balançava e de onde os pássaros, como vôos imotivados e súbitos, entravam e saíam, o céu azul, sem uma só nuvem, o grande rio que tremeluzia e, sobretudo, subindo , lento, já quase no zênite, o sol árido, chamejante, do qual parecia que essas fogueiras que ardiam ali embaixo não erma mais que fragmentos perdidos e passageiros. Terra, céu vazio, carne degradada e delírio, com o sol em cima, passando, desdenhoso e periódico, pelos séculos dos séculos: assim se apresentava, essa manhã, ante meus olhos recém-nascidos, a realidade.” (idem.; pg. 51)
Percebeu que comecei a falar de nós, e não mais de você, meu amigo? Nos encontramos sem que eu tivesse que me mover de mim, porque não sei nada dos truques de hipnose. É assim que se sai de um sono de se
esquecer de si?
Acho que é hora de revelar que, sim. Pode ter sido eu. Posso ter devorado uma ou duas panturrilhas de seus companheiros de viagem.
E daí que eu li sua forma clara e límpida de não ensinar nada em outro ensaio – sendo os ensaios a forma maior de elogio dos canibais. E li que correu atrás de você mesmo. Parece que no sono, e ao acordar, ficou ainda mais difícil. Efeito delicado este, o de esquecer-se de si e ver que, nisto, deu vontade de correr atrás de você. Parece que você faz falta.
Eu? Sair de mim? Não. Prefiro sair dali. E aí, elogio o nomadismo pela enésima vez nesta vida.